"Não duvideis, tudo o que lançamos, física ou espiritualmente, alimenta alguém."

A madrugada se fazia fria. O céu, poucas estrelas expunha como que buscando poupar-lhes o brilho. Uma densa bruma encobria a rua escura e sombria com sua cortina fosca entrecortada por algumas vozes ébrias, alheias ao quadro urbano da modernidade febril.

Era Natal.

Singularizando o quadro que pretendo seja visualizado nesta história insólita, porém real, peço que pensem no imóvel localizado no número 66 da já aludida rua, por que passava naquele exato momento a senhorita Férrula, jovem de origem simples mas de coração solidário e honorável.

Fer (como Férrula era conhecida) passava pelo imóvel 66 e, ao lançar o olhar para tal sítio, notou que se tratava de um grande salão. Fausto Salão. Realmente um suntuoso salão de festas.

Muitas vozes provinham de lá. Vozes alegres. Alaridos estridentes. Uivos embriagados. Homens e mulheres pareciam divertir-se extremamente naquele local incandescente.

Luzes! Muitas luzes emanavam das janelas guarnecidas por vitrais representativos de figuras que lembravam deuses greco-romanos. Tudo lá dentro parecia ferver, tremer, zunir, extasiar, enfim.

Fer realmente estava impressionada. Somente ao sair de seu transe deu-se conta da figura estranha e humilde que estava sentada à porta de entrada do Baconiano salão de festas. Pensou Fer em seguir seu rumo mas a gélida madrugada e seu espírito Cristão acabaram por empurrá-la de encontro àquele pobre ser;àquele ser que trajava andrajos, que exalava mau cheiro a distância e que, surpreendentemente, doentiamente, ao ser vislumbrado mais de perto por nossaquerida dama altruísta, gargalhava a plenos pulmões, como que feliz por sua pobre existência.

Era um homem. Fer o notou apenas pela barba espessa, já que trazia na cabeça cabisbaixa um capuz negro e desbotado, caído até a altura de seu nariz.

Férrula inquiriu-o:

-Senhor o que fazes aqui nesta noite tão fria? Não tens para onde ir?

Lentamente, diminuindo o febril concerto de sua gargalhada, respondeu com grave voz:

-Aqui é meu lugar, querida. Estás percebendo o festim? São meus convidados. Não queres entrar?

Fer compadeceu-se da loucura do pobre homem. Após umsegundo de silêncio, redargüiu:

-Senhor, deves estar com fome e frio. Venha comigo até minha casa. É um refúgio singelo mas posso te arranjar algo para comer.

-Oh!, pequena, és tão boa e pura! Isso muito me comove! (risos). Ocorre que não seria um bom anfitrião se abandonasse minha festa. Não! Não posso deixar este lugar!.

A jovem, então, perguntou ao miserável se não lhe tinham oferecidoalgo para saciar a fome e a sede. Na festa por certo havia muito para se comer e beber:

-Ah!, pequena, como te preocupas com este pobre diabo! Roguei deveras por um pouco de comida e um cálido trago de vinho mas não me atenderam.

Pobre homem, pensou Férrula:

-Como não têm um mínimo de compaixão?!

-Não te iludas, menina. Cá estou porque assim o quero. Bem como porque sabia que negar-me-iam a compaixão de que falaste.

E o homem gargalhou com tal volúpia demente e desmesurada, que, por instantes, chegou a assustar Férrula.

"Pequena", disse o homem, "a atitude impiedosa dos seres que estão neste festim é o que sacia minha fome, o que mata minha sede e afasta o meu frio"

-Como?! Como podem fingir que não estás à porta deste exagero de festim e lançam-lhe as costas como se tu fosses um cão e não um ser humano?!

-Já não lhe disse, minha jovem? A cada minuto, mais sacio minha fome e minha sede. Sou o guardião deste lugar e estou deveras satisfeito!

Mas senhor... é Natal!

-Ouça, pequena, aprecio tua alma caridosa mas nem todos são como ti. Há muito mais maldade neste mundo do que teu sincero coração pode supor. Para muitos, o Natal é uma data como outra qualquer. E, mesmo que o nascimento de INRI fosse a oportunidade ideal para se cultivar o tal amor ao próximo, o homem acabaria por esquecer-se desse espírito de caridade no dia seguinte. A vida é assim. O bem e o mal se relacionam tão intimamente quanto a água e o fogo que, apesar de conflitantes, cada qual tem a sua função de salvar e destruir, só depende do momento. Pequena, parafraseando um pensador do teu mundo que chegou a flertar comigo por alguns momentos, há mais mistérios entre o Céu e a Terra do que pode supor a vã filosofia dos mortais. Eu lhes ensinarei que, mesmo com toda a falta de humanidade e complacência com o miserável estado deste que com ti entabula um diálogo, aprenderão algo importante sobre suas existências. "O bem ensina tanto quanto o mal", eis o que te digo. Eu, do meu modo, ensinar-lhes-ei o caminho. O meu caminho. O caminho do meu reino. Por mais que me julgues um demente, saberás que, em algum lugar no infinito surreal, impero com uma força tal, que nem o mais forte dos homens pode sobrepujá-la. Vá! Não necessitas de mim (pelo menos por enquanto, espero). Saiba que os convivas que se acabam neste salão estão mais próximos de encontrar meu reino do que podes imaginar. Não te preocupes comigo. Nem com eles. Eu os levarei quando me aceitarem de corpo e alma e, ainda que pareça loucura, estão no caminho certo.

"Meu Deus!", pensou Fer, esse pobre é um doidivanas!

-Pequena, uma última coisa. Conversamos madrugada adentro e nem sequer teu nome eu sei.

-Férrula. Mas pode me chamar de Fer.

Erguendo sua fronte para a jovem, surpreendeu-a com uma beleza inimaginável para ela até então. Chegava mesmo a beirar o inacreditável.

Com os olhos escarlates como brasa e exalando um fétido hálito de enxofre, o senhor falou-lhe com um sarcástico sorriso por entre os lábios:

-Que prazer! Meu nome é Lucilone. Mas pode me chamar de luci, Fer!