FERNANDO PESSOA E O EFEITO BORBOLETA

"Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez da direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio do sono elaboro ?
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente outro também."
Fernando Pessoa ― Poesias de Álvaro de Campos
***

Quando eu tinha dezesseis anos apaixonei-me por uma colega de trabalho. Éramos ambos operários numa fábrica de máquinas de costura. Eu trabalhava na linha de produção, operando uma máquina de fazer roscas para parafusos, ela na linha de montagem, pregando etiquetas nas máquinas montadas.

Era a menina mais bonita da fábrica. Pelo menos eu acha-va que era. Tinha um rosto redondo e pálido como uma lua cheia. Pernas grossas e roliças como colunas de um templo coríntio. Narizinho arrebitado, cútis branquinhas, lábios grossos, feitos especialmente para um longo e suculento beijo.
Parecia uma boneca de porcelana. Nos anos sessenta meninas com essa aparência eram muito apreciadas no mercado da beleza feminina. Lembravam aquelas cândidas princesas dos contos de fadas, ou as românticas musas dos saudosos tempos das serestas.
Acho que essa minha primeira paixão durou cerca de um ano. Foi muito legal se sentir assim. Era uma ansiedade incontrolável que me batia no peito à noite, para que logo chegasse o dia seguinte e eu pudesse vê-la. Isso me fazia amar a fábrica e o trabalho como se fossem o único lugar onde eu queria estar e a única coisa que eu gostaria de fazer na vida.
Ah! Que magnífica âncora neurológica é o amor, que con-segue transformar um barracão sujo, quente e barulhento num castelo encantado, e uma atividade maçante, repetitiva e embrutecedora, numa lúdica e prazerosa aventura!
Só havia um problema nisso tudo. Eu era muito tímido. Sofria de uma timidez doentia que me fazia mudar de calçada para não passar em frente a um grupo de garotas.
Morria de vergonha quando elas olhavam para mim e ficavam cochichando. Sempre me parecia que elas estavam debochando do meu jeito de andar ou das roupas que eu usava.
Acho que foi por isso que nunca falei com ela e jamais lhe confessei a minha louca paixão. Não tive coragem. Ela parecia tão inacessível, tão distante, tão bonita em contraste com o patinho feio que eu era, que jamais consegui romper o limite do "oi" diário que eu lhe dava e que ela sempre respondia com outro "oi", que hoje eu sei, na sua linguagem não verbal tão pronunciada, era matreiro, convidativo e pleno de significados, mas que eu, nos meus dezesseis anos de inexperiência e imaturidade nunca soube interpretar.

Não obstante, passei noites e noites planejando, sonhando, me torturando, buscando o meio de dizer para ela o que eu sentia. Mas, sem coragem para dar a cara para o tapa ― que na época tinha certeza que ia levar ―, imaginei um estratagema: escrever para ela um poema, dizendo o quanto a amava, e pedir para o João, um colega que trabalhava com ela no mesmo setor, entregar.
Dito e feito, o poema saiu mais ou menos assim.

"De que sonho você veio,
E esse sorriso, em que sol comprou?
Era você que se agitava
No inconsciente do meu tempo,
Era você que eu pressentia,
Presença informe numa ausência,
Sempre real, nunca atingível?
Ah! Eu a sonhei em uma lenda
Onde tudo acontecia.
Eu fui cipreste na colina
Você singela flor silvestre.
A minha sombra a envolvia
O seu perfume me embriagava.
Você cresceu ante meus olhos
Como o pé de feijão da lenda.
Por um momento eu vislumbrei
Um tesouro nos seus olhos.
Mas tive medo do condor
E não ousei voar tão alto.
Agora estou aqui na terra
Aguardando o seu chamado.
Se você me convidar,
Eu então serei ousado,
Esteja você onde estiver
"Estarei sempre do seu lado."
Joãozinho

Joãozinho era o nome pelo qual todos me conheciam. O poema não era lá essas coisas, mas eu tinha certeza que ela ia gostar. Afinal de contas, ela aparentava ter aquele jeitinho de menina que se derretia com alguns versos lidos ao pé do ouvido.
Pelo menos era o que me parecia. Ela me lembrava a Roxane, a musa do filósofo Cirano de Bergerac. E a nossa história não era muito diferente. Cirano não tinha coragem para se declarar para Roxane porque tinha nariz de mais. Eu não me declarava para ela porque talvez pensasse ter nariz de menos. Eu tinha medo de ser insuficiente, e quando chegasse a hora de consumar o amor, não conseguisse dar conta do recado.
Receios de adolescente, do qual muito homem maduro nunca se liberta. Sei lá. A cabeça da gente tem dessas coisas. Fantasias de mais, certezas de menos.
Não foram poucas as vezes que eu me imaginei na penumbra do jardim da casa dela, embaixo da janela, recitando poesias e desfiando um rosário de frases de amor, enquanto ela suspirava e suspirava, com os olhos perdidos na noite pontilhada de estrelas, como Cirano fazia com sua amada Roxane. Cirano também fez como eu. Como era feio demais, escrevia os diálo-gos e mandava um amigo recitá-los em baixo da janela da sua musa. Só podia dar no que deu e eu, se tivesse conhecimento da história dele naquele tempo, com certeza teria agido de outra forma. É nessas horas que entra em consideração o Efeito Borboleta.

Bom, como já disse, eu tinha um amigo que também se chamava João. Ele trabalhava na linha de montagem, bem próximo dela. Nunca confessei para ele a paixão desesperada que eu sentia pela sua colega de trabalho. Na verdade, eu tinha vergonha de comentar sobre o assunto e talvez ele também sequer desconfiasse disso. Não sei bem o que era, mas o fato é que nunca me veio à baila falar disso com ele até o dia em que eu tomei coragem e lhe passei o poema para que ele o entregasse a ela.
Ele achou graça, riu, debochou de mim, mas sem ofender. Por fim, concordou gentilmente em entregar o poema para a menina. Fiquei esperando para ver no que dava.
Os dias se passaram e o jeito dela não mudou. Era o mesmo "oi" de sempre, mas pareceu-me que agora havia uma conotação diferente nele. Senti que ficou mais frio, mais distante, mais formal. Parecia um "oi" de pura educação, de mera cortesia. Não transmitia mais aquela impressão de convite, de faceiri-ce, algo assim que me dizia, "hei cara, quando é que você vai sair de cima desse muro?", convite que eu, na minha exagerada timidez, não conseguia encarar.
Mas não difícil descobrir o motivo daquele "oi" ter mudado de sentido. A danadinha tinha arrumado um namorado. Alguns dias depois do tal poema eu a vi chegar de mãos dadas com um cara. E o cara era justamente o meu amigo João.
Dois anos depois eles se casaram e eu fui ao casamento deles. Afinal, o João era meu amigo. Reprogramei o fato. Reconheci que ele foi mais competente que eu e pronto. Nunca fui de ficar chorando pitangas pelos cantos. Não nascemos para trilhar um único caminho, ou para viver de uma única alternativa.
É claro que fiquei magoado um tempinho, afinal eu sou humano, mas depois relevei. Mágoas são fardos pesados demais para a gente carregar pela vida inteira.
O tempo passou, eles sumiram do meu mundo e eu do deles. Mudei de emprego, de cidade, de amigos, de valores, crenças, de quase tudo, menos de time. Corintiano é eternamente corintiano. Alguns anos depois eu também casei e a vida seguiu seu curso. O episódio em que eu fui Cirano de Bergerac foi arquivado numa das gavetas mais fundas da minha memória e eu já nem me lembrava de um dia ter vivido uma experiência dessas.

Algumas décadas mais tarde nós nos encontramos num sarau de poetas da cidade. Reconhecia-a logo pelo narizinho arrebitado e pelas pernas grossas e roliças. Eram inesquecíveis e inconfundíveis. Não me enganei quando imaginei que ela gostasse de poesia. Só não pensei que ela também fosse do ramo. Foi uma agradável surpresa saber que ela não só gostava, mas também sabia fazer versos e contar histórias. Ela era agora uma bonita e elegante senhora, simpática e culta, com belos e interessantes casos para contar.
Não nos víamos há mais de trinta anos. Ela também me reconheceu de pronto. Lembramos os velhos tempos de operários. Falamos dos amigos daquela época, recuperamos a memó-ria de alguns, rimos, recordamos.
Depois de um tempo perguntei pelo meu amigo João.
―Você não sabia? Respondeu ela ― Nós nos separamos já faz uns dez anos.
―Ah é? E o que foi feito dele?
― Anda por ai. Casou de novo. Está gordo como um capado. Você não o reconheceria se o visse agora.
― Você está muito bem― eu disse. E não estava sendo apenas gentil. Ela estava mesmo.
― Eu me cuido ― disse ela.
― Estou vendo ― respondi.
Rimos. Conversamos banalidades. Declamamos poesias, ela as dela, eu as minhas.
Lá pelas tantas eu puxei da minha pasta uns velhos versos e comecei a declamá-los.

"De que sonho você veio,
E esse sorriso em que sol comprou?"(...)

― Hei, acho que eu conheço esses versos. Onde é que você os leu? ― ela perguntou.
― Por acaso fui eu que os escrevi quando tinha uns de-zesseis ou dezessete anos ―, respondi.
― Não acredito. Não me diga que o Joãozinho era você.
― Era ― respondi, meio constrangido.
― Bem que eu desconfiava. O João nunca foi de escrever nada.
― Eu sei, mas vocês estavam tão apaixonados que eu não tive coragem de confessar.
― Meu Deus, podia ter sido tudo tão diferente ― disse ela.
***
"Uma borboleta batendo asas na Amazônia pode causar um tufão no Texas."
Teoria do Caos ─ James Gluck

O Efeito borboleta é uma idéia curiosa e quem teve essa intuição deve ter deixado muitos filósofos em dificuldades. A questão é a seguinte: Se você pudesse voltar no tempo e mudar as decisões que tomou, o que teria acontecido com o universo em que você vive? Com quantas pessoas você não mexeria, quantas vidas não mudaria, quanto desarranjo não provocaria com essa simples decisão pessoal? Já pensou nisso? Todo o desenho do universo teria que ser mudado por causa de uma mera decisão sua.
Se uma única pessoa no mundo pudesse fazer isso, em que a sua vida e a minha seriam afetadas? E com a vida do resto da humanidade, o que aconteceria? Não é uma coisa maluca um negócio desses?
Naquela noite fui para casa pensando no poema do Fernando Pessoa. O que teria acontecido no universo se ele tivesse se voltado para a direita ao invés de para a esquerda? Se dissesse sim em vez de não ou não em vez de sim? Relembrei quantas vezes eu também fiz isso. Se tivesse feito diferente, o que teria acontecido?
Talvez eu nem tivesse nascido por conta disso. Pensei como estaríamos hoje se o coronel Joaquim Silvério dos Reis não fosse o "traíra" que era e não tivesse denunciado os seus companheiros da Inconfidência Mineira, o Desembargador Gonzaga teria sido o nosso primeiro presidente. Se a Alemanha tivesse ganhado a guerra mundial e ao invés dos Estados Unidos fosse o Japão que tivesse produzido primeiro a bomba atômica, hoje estaríamos falando alemão ou japonês. Pensei em como estaria hoje se não tivesse sido reprovado naquela prova do Senai e me tornasse um torneiro-mecânico, como pretendia naquele tempo; O Lula seria eu, ou eu seria o Lula? E se o Jânio Quadros não tivesse renunciado ao cargo de presidente e o Getúlio Vargas não tivesse se suicidado, teria havido uma ditadura militar no Brasil? E se o Pelé, ao invés de ir para o Santos, fosse parar no Corinthians; Se o escravo-gladiador Espártaco tivesse vencido a
sua guerra contra os romanos; Se Napoleão não tivesse perdido a batalha de Waterloo. Se o Silvio Santos fosse o meu pai...
Ah! Essa inconcebível sabedoria do universo, que não nos permite calcular em que lugar do tempo e do espaço a incompreensível partícula de energia que somos poderá estar no momento seguinte! Nem qual será a nossa próxima interação e o que dela resultará.
Nem Karma nem Mak Tub, mas apenas a imprevisível e inescapável conseqüência das nossas escolhas!
O que teria acontecido se eu tivesse me declarado pessoalmente para aquela menina e ela tivesse me aceitado? Hoje, os filhos dela seriam os meus e os meus seriam de outro cara qualquer.
Ou talvez não tivessem nem nascido. Senti um arrepio na espinha.
Eu então seria algo diferente do que sou e você também seria algo diferente do que é só por causa disso. Todos nós seríamos, o universo inteiro também. Isso é o que diz o efeito borboleta. Isso foi o que Fernando Pessoa intuiu naquela noite de angústia e desconsolo em que ele escreveu os versos desesperados que me inspiraram este texto.

"Na noite terrível, substância natural de todas as noites, Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noi-tes, Relembro, velando em modorra incômoda, Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida."

Eu também relembro. Coisas assim nos desequilibram. Tira-nos o chão. Arremete-nos num vazio cósmico, onde a única realidade é saber que tudo é possível, mas que também tudo é mera ilusão.
Pensei que um drinque me cairia bem naquela hora, mas logo desisti. Eu poderia modificar a conformação estrutural do universo com esse ato. Se eu beber o futuro será de um jeito; se eu não beber ele ocorrerá de outro. Tenho que escolher. O meu desejo, satisfeito ou insatisfeito, poderia causar uma catástrofe em um lugar qualquer. Tive outro arrepio na espinha pensando na responsabilidade que estava sendo jogada nas minhas costas.
Sim. Se eu pudesse voltar ao passado e mudar uma única vírgula na história da minha vida, ou se você pudesse fazer isso, ou outra pessoa qualquer pudesse, tudo seria diferente para mim, para você e para o resto do mundo.
Einsten achava que viagens no tempo são possíveis porque o espaço é curvo e deve haver algum ponto no infinito em que ele se encontra consigo mesmo. Então tudo começaria de novo. Isso justificaria o insensato mito do eterno retorno e outras especulações malucas que podem tirar o sono de caras como eu, que gostam de ficar vagando por essas charnecas metafísicas, e às vezes se perdem no labirinto dos próprios pensamentos.
O cosmo se parece com uma cobra que morde o próprio rabo. Por isso os filósofos gnósticos e os alquimistas usavam o símbolo de uma serpente que engole a si mesma para representar o ciclo da energia universal que nunca se esgota porque se alimenta da própria consistência.
Stephen Hawking, (um cara que conseguiu a façanha de colocar o universo numa casca de noz e contar a história do tempo em um livro inteligível até para um leigo como eu) também disse acreditar nessa possibilidade, mas sob certas condições. Ele diz que se pudéssemos voltar ao passado, nós não po-deríamos interferir na História, por que ela é feita de atos que se despregam dos seus executores tão logo eles são realizados.
Isso quer dizer que os personagens passam, a história fica. São algo assim como os quadros de um pintor, as estátuas de um escultor, os textos de um escritor.
Pessoas e coisas são energia ― matéria sutil― que se condensa em formas sólidas. Isso quer dizer que as nossas ações também são energia que são consumidas. Umas se manifestam e passam para o momento seguinte como resultados. Outras não. Perdem-se na voragem da entropia, que é igual ao limbo do esquecimento.

De qualquer forma, é confortador saber que os nossos atos despregam-se de nós tão logo são produzidos. Seria extremamente difícil ter que carregar o peso de cada ato para o momento seguinte. Chegaria o dia em que o peso ficaria tão grande que não conseguiríamos dar um único passo adiante. Por isso tudo é fugaz nesse mundo em que vivemos. Nossas dores, nossas alegrias, nossos amores e nossos ódios, são como fotos que amare-lecem com o tempo, e com as cores vão-se também as emoções que grudamos nela no momento em que as tiramos.
Nossos atos são como os nossos filhos. Setas lançadas de um arco em direção a um alvo. Nem sempre os atingem, mas jamais voltam ao arco para serem lançadas novamente. Resta-nos apenas administrar as suas conseqüências.
As pessoas desaparecem no limbo; suas ações repercutem no tempo, denunciando sua sensatez ou insensatez. Então nos vem a cruel constatação: nós não temos importância alguma, os nossos atos sim.
O que está feito está feito, não pode ser mudado. Ainda bem que é assim, pois senão o universo continuaria sendo um eterno caos, e se bem me lembro, alguém me disse que Deus deu uma mente ao homem para que ele botasse ordem no caos.

Ordo ab Chaos. Foi por isso que Ele, o Grande Arquiteto do Universo, como gostam de chamá-lo os maçons, mandou Adão dar nome aos animais. O nome que Adão colocou em cada bicho, esse é o seu nome, diz a Bíblia. Cão, gato, macaco, cobra, elefante, urubu. Se não fosse Adão ter rotulado cada um deles, todos seriam a mesma coisa, embora com forma diferentes; vidas sem identidade a perambular por um mundo sem ordem nem finalidade.
Ele fez isso para que nada fosse aleatório, nada ficasse por conta do acaso. Por isso também essa nossa mania de por rótulos em tudo. Inventamos o princípio da identidade para ter a ilusão de que vivemos num mundo coerente. Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa. Dessa forma separamos, identificamos, catalogamos. Damos um nome para todas as coisas e chamamos isso de lógica. Lógica é ciência, é razão, é sabedoria.
E se fosse possível, eu poderia voltar ao passado e matar o meu pai, porque inconscientemente eu o odeio e tenho ciúme dele pelo fato de ele estar dormindo com a minha mãe. É o que Freud dizia. E isso também é ciência, embora não seja nada racional.

Fiquei com pena do Fernando. Não fez as escolhas certas na vida e por isso se sentia tão infeliz.

"O que falhei deveras não tem esperança nenhuma Em sistema metafísico nenhum. Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei. Mas poderei eu levar para o outro mundo o que esqueci de sonhar?"

Amargas conjecturas. Mas o que são escolhas certas e quem é que sempre as faz? Mais um pouco e também começaria a sentir pena de mim mesmo. Pensei em todas as bobagens que fiz, nas perdas que contabilizei, no que deixei de ganhar, nas lutas que não lutei. Sonhos que sonhei e decidi que eram apenas sonhos. Por isso deixei que se diluíssem num oceano de quimeras, que é para onde vão todas essas águas da imaginação que não ousamos navegar na realidade.

"Estes sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver."Enterro-os no meu coração para sempre para todo o tempo, para todos os universos."

Pobre Fernando. Ainda bem que sou menos sentimental que ele. Bem mais prático também. Odeio pensar que eu durmo com cadáveres. Por isso logo resolvi deixá-lo de lado e sai em busca de outro poeta, o Omar Kayan, que escreveu algo mais ou menos assim:

"O dedo que se move escreve; e tendo escrito, continua. Nem todo o seu entendimento, nem todo o seu arrependimento, pode fazer com que ele volte para apagar uma só linha do que já foi escrito."

O passado jamais voltará e o futuro é uma incógnita. Essa é a única constatação verdadeira em tudo isso. Afinal, é muito bom que na composição estrutural do universo exista um princípio da incerteza. Nunca saberemos o que o momento seguinte nos reserva e isso é muito bom. Seria horrível saber o que vai me acontecer amanhã.
Por outro lado, só poderemos voltar ao passado se um dia conseguirmos nos deslocar mais rápido do que a luz. Como essa é uma possibilidade matematicamente improvável, posso dormir tranqüilo.
E também não preciso temer o pesadelo de Nietzsche. O eterno retorno é uma possibilidade inexeqüível porque as condições ambientais serão sempre diferentes em cada momento no tempo. Assim, quando a borboleta bater as asas de novo na floresta amazônica, as coisas no universo todo serão diferentes também e os mesmos efeitos que ela provocou com o rufar anterior não se repetirão.
Essa idéia me conforta. O princípio da incerteza foi a melhor descoberta que os cientistas do átomo até hoje já fizeram. Não há como prever o futuro porque jamais poderemos calcular em que lugar do tempo e do espaço estaremos no momento seguinte. Nós nos movemos junto com o universo e ele é como uma bola que uma criança chuta a esmo. Por isso Jesus disse que só entraríamos no Reino dos Céus se fossemos como crian-ças. Deus é uma criança. O resto é só filosofia.