DIREITO CONSTITUCIONAL II

Curso: Direito Noturno
Professora: Eliane
Aluno: Walleson de Andrade Lessa
Semestre: 4º Turno: Noturno

Tribunal Penal Internacional
Federalização dos crimes contra Direitos Humanos

Corte Penal Internacional
O Tribunal Penal Internacional (TPI) ou Corte Penal Internacional (CPI) é o primeiro tribunal penal internacional permanente. Foi estabelecido em 2002 na Haia, cidade nos Países Baixos, onde inclusive fica a sede do Tribunal, conforme estabelece o artigo 3º do Estatuto de Roma, documento aprovado no Brasil pelo Decreto Nº 4.388 de 25 de setembro de 2002.
Objetivo
O objetivo da CPI é promover o Direito internacional, e seu mandato é de julgar os indivíduos e não os Estados (tarefa do Tribunal Internacional de Justiça). Ela é competente somente para os crimes mais graves cometidos por indivíduos: (genocídios, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e talvez os crimes de agressão quando estes tiverem sido definidos), tais que definidos por diversos acordos internacionais, principalmente o estatuto de Roma.
O nascimento de uma jurisdição permanente universal é um grande passo em direção da universalidade dos Direitos humanos e do respeito do direito internacional.
Nota: não confundir a Corte penal internacional com o Tribunal Internacional de Justiça, também com sede na Haia.
Atuação
Segundo Resolução XXVIII da ONU (Princípios da Cooperação Internacional na Identificação, Detenção, Extradição e Punição dos Culpados por Crimes contra a Humanidade), adotada em 1973, todos os Estados devem colaborar para processar os responsáveis por esses crimes. Mas a organização estabelece dois tribunais internacionais temporários, ambos na década de 1990, por avaliar que a jurisdição doméstica se mostrou falha ou omissa no cumprimento da justiça. Um deles é criado em 1993, na Haia, nos Países Baixos, para julgar os culpados pelos crimes praticados durante a guerra civil na ex-Iugoslávia (1991-1995). É a primeira corte internacional desde os tribunais de Nuremberga e Tóquio, instituídos pelos aliados para punir os crimes cometidos por alemães e japoneses na Segunda Guerra Mundial. O tribunal só inicia seus trabalhos em maio de 1996 e, até o fim de 1997, indicia setenta e oito suspeitos (cinquenta e sete sérvios, dezoito croatas e três árabes) e condena dois deles ? o croata-bósnio Drazen Erdemovic, sentenciado a dez anos de prisão em novembro de 1996, e o sérvio-bósnio Dusan Tadic, a vinte anos em julho de 1997. O líder nacionalista sérvio-bósnio Radovan Karadzic estava foragido desde a decretação de sua prisão, em julho de 1996, mais foi preso em julho de 2008.
Outro tribunal internacional é estabelecido em Arusha, na Tanzânia, e está encarregado de julgar os responsáveis pelo genocídio de mais de um milhão de pessoas ocorrido em Ruanda em 1994. Desde a primeira sessão, em setembro de 1996, até setembro de 1998, o tribunal indiciou trinta e cinco suspeitos e condenou à prisão perpétua o ex-primeiro-ministro ruandês Jean Kanbanda ? o que é considerado insuficiente pelas organizações de defesa dos direitos humanos. Por outro lado, as cortes nacionais do governo instalado em Ruanda após a guerra civil já haviam condenado cento e vinte e duas pessoas à morte até o fim de 1997. As primeiras vinte e duas execuções, assistidas por cerca de trinta mil pessoas, ocorrem em abril de 1998, na capital ruandesa, Kigali, apesar da reprovação internacional.
Em julho de 1998, representantes de cento e vinte países reunidos em uma conferência em Roma aprovaram o projeto de criação de um Tribunal Penal Internacional Permanente, também com sede na Haia, nos Países Baixos.
A corte tem competência para julgar os responsáveis por crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade quando os tribunais nacionais não puderem ou não quiserem processar os criminosos. Sete nações votaram contra o projeto (EUA, China, Israel, Iêmen, Iraque, Líbia e Quatar) e outras vinte e uma se abstiveram. Os EUA justificam seu veto por não concordarem com a independência do tribunal em relação ao Conselho de Segurança da ONU ? ainda que essa autonomia não seja total. Pelo documento aprovado, o Conselho de Segurança poderá bloquear uma investigação se houver consenso entre seus membros permanentes. O governo americano também teme que seus soldados envolvidos em guerras como as do Afeganistão e Iraque venham a ser julgados pelo tribunal.
Lista de Estados membros do tratado
Em outubro de 2008, os seguintes 108 países haviam ratificado ou acedido ao estatuto de países membros da CPI:
? Na Europa: Albânia, Andorra, Áustria, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha,, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Islândia, Irlanda, Itália, Geórgia, Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia, Madagascar, Malta, Montenegro, Noruega, Países Baixos, Polônia, Portugal, Romênia, San Marino, Sérvia, Suécia, Suíça, Reino Unido
? Na África: África do Sul, Benim, Botswana, Burkina Faso, Burundi, Chade, Comores, Congo, Djibouti, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Lesoto, Libéria, Malawi, Mali, Maurícia, Namíbia, Níger, Nigéria, Quênia, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Senegal, Serra Leoa, Tanzânia, Uganda, Zâmbia.
? Na América: Antígua e Barbuda, Argentina, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, Guiana, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trindade e Tobago, Uruguai, Venezuela
? Na Ásia: Afeganistão, Camboja, Coréia do Sul, Japão, Jordânia, Mongólia, Tadjiquistão
? Na Oceania: Austrália, Fiji, Ilhas Cook, Ilhas Marshall, Nauru, Nova Zelândia, Samoa, Timor-Leste
Além dos Estados acima, há 41 outros Estados que assinaram mas ainda não ratificaram o tratado. Como assinar um tratado não tem efeito legal sem a ratificação, esses Estados não fazem parte do tratado, a menos que o ratifiquem.
Algumas pessoas afirmam que não é possível para um Estado retirar sua assinatura de tal tratado, mas como o efeito legal de um tratado segue sua ratificação, e não sua assinatura, há pouca diferença entre retirar-se de um tratado e afirmar que não se tem a intenção de ratificá-lo.
Para a proteção da pessoa humana
Durante toda a história da humanidade, tem sido possível se cometer crimes atrozes que permanecem impunes, o que tem, de certa forma, dado "carta branca" aos criminosos para cometerem delitos. Está claro, portanto, que o sistema de repressão baseado apenas no Direito Internacional apresenta graves deficiências, especialmente por não garantir o julgamento de indivíduos. Sentia-se, portanto, a necessidade de adotar novas normas e criar novas instituições capazes de garantir punições efetivas para os crimes internacionais, introduzindo, sobretudo, o indivíduo nas questões penais internacionais.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) é a tentativa da comunidade internacional de julgar e punir pessoas que cometam crimes contra a humanidade, tendo, portanto, o objetivo de evitar a impunidade, lembrando-se sempre das lições do passado. O impacto potencial desse tribunal é enorme. Ele pode significar um mecanismo extremamente poderoso de contenção de novos genocídios, crimes contra a humanidade e sérios crimes de guerra que têm atormentado a humanidade durante o curso do século 21.
O estabelecimento do TPI não é apenas uma oportunidade para compensar as vítimas e sobreviventes de crimes bárbaros, mas também, um meio potencial para poupar vítimas dos horrores de tais atrocidades, no futuro. Efetivamente, o Tribunal Penal Internacional vai ampliar e melhorar o sistema do Direito Internacional, levando os sistemas nacionais a investigar e julgar os mais cruéis crimes contra a espécie humana. Afinal, ele provavelmente garantirá que, em caso de falha dos sistemas nacionais, tais crimes não ficarão impunes. Desta forma, o TPI operará para garantir que a justiça prevaleça sobre a impunidade.
Histórico


A primeira notícia do estabelecimento de um tribunal penal internacional data do ano de 1474. O tribunal, estabelecido pelo Sacro Império Romano, aplicaria "leis divinas e humanas".
Na modernidade, foi a partir do Tratado de Versalhes (1919) que o surgimento de uma jurisdição internacional começou a ser cogitado. As atrocidades cometidas em conflitos internacionais e sua impunidade remetem à necessidade de um Tribunal Penal Internacional livre de interesses políticos.


Entre 1919 e 1994, em razão, em parte, da demanda da opinião pública (chocada por trágicos eventos), foram cria das comissões internacionais ad hoc (para investigar casos particulares) e tribunais penais internacionais ad hoc.
Os meios pelos quais foram criados variam. Cabe lembrar que, até recentemente, apenas os conflitos internacionais foram objeto de investigação.
Conflitos domésticos brutais, excetuando o caso de Ruanda, não suscitaram atenção para punir as atrocidades. Vários entraves impediram um maior avanço das comissões e tribunais internacionais, sobretudo a forte influência política exercida pelos Estados nacionais (dificuldades logísticas, legais e burocráticas).

As Comissões Internacionais ad hoc de investigação
A primeira comissão de investigação foi criada em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, pelos seus vencedores. Seu propósito era condenar os derrotados naquele conflito (imperador Guilherme II, da Alemanha, e oficiais turcos) por "crimes contra as leis da humanidade". A comissão criou um tribunal penal internacional para julgar Guilherme II. Os turcos foram anistiados em razão da implementação de um outro tratado que não continha nenhum instrumento para a condenação. Essa decisão política, evidenciando a fragilidade dos tribunais, deu-se em virtude da subordinação por parte da Turquia a interesses ocidentais. O imperador alemão, condenado, refugiou-se na Holanda.
Apesar da incapacidade de se estabelecer um sistema internacional penal de justiça (os acusados foram julgados à luz do direito interno), houve um grande avanço na direção do estabelecimento de uma jurisdição penal internacional.

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg


O "tribunal dos vencedores" foi criado em agosto de 1945 pela Declaração de Moscou e tinha o objetivo de punir os criminosos de guerra, particularmente líderes nazistas. A abertura do processo aconteceu no dia 20 de novembro de 1945. O tribunal criou um importante precedente para futuras ações em direção de normas criminais internacionais.
No entanto, apresentou problemas e limitações. Ainda na elaboração do esboço da carta do tribunal, os diferentes sistemas criminais dos aliados (EUA, URSS, Reino Unido e França) foram um delicado entrave. Outra dificuldade, devido à falta de precedentes, foi quanto à definição dos crimes.

No total, estavam presentes 22 imputados, todos altos hierarcas nazistas do Estado e do exército. À eles foram dirigidas quatro imputações: complô, crimes contra a paz, crimes contra a guerra e contra a humanidade. A sentença final infligiu 12 condenações à morte, três prisões perpétuas, duas penas a 20 anos de prisão, uma a 15 anos, uma a 10 anos e duas absolvições.
A carta do Tribunal foi um enorme avanço do direito internacional humanitário, em virtude da introdução do indivíduo nas questões penais internacionais e do abandono do dogma da soberania do Estado, abrindo o direito à ingerência. As obrigações internacionais e de consciência do indivíduo prevalecem sobre sua obediência ao Estado.
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia
Já desde o início da guerra na ex-Iugoslávia, em 1991, tiveram vasta ressonância os horrores e crimes realizados de maneira não episódica (foram calculados 150 mil homicídios): massacres, "limpeza étnica", estupros, "desaparecidos", transferências em massa golpearam a população civil, enquanto também os soldados presos sofriam muitas vezes tratamentos inumanos nos campos de concentração. Em 1993, o Conselho de Segurança da ONU estabelece o Tribunal Penal Internacional ad hoc para julgar essas violações ao direito internacional humanitário.
A criação do Tribunal foi uma questão bastante controversa. Como os tribunais militares, sua criação foi determinada por um órgão político e não por um tratado multilateral. Contudo, o Tribunal reafirmou a responsabilidade penal individual por violações ao direito internacional humanitário e contribuiu para o processo de construção de um ordenamento jurídico internacional, como a ampliação a certas violações (por ex. o estupro, considerado entre os crimes contra a humanidade).
O Tribunal Penal Internacional ad hoc para Ruanda


Mais de 3 mil pessoas foram mortas na igreja paroquial de Mukarange, (Ruanda) em poucas horas. Até um milhão de pessoas foram mortas no país entre abril e julho de 1994. Para conter e punir esses excessos, em 1994, o Conselho de Segurança da ONU adotou o estatuto do Tribunal Penal Internacional ad hoc para Ruanda, adaptando o estatuto do Tribunal para a ex-Iugoslávia.
A contribuição maior desse Tribunal foi a definição do crime de genocídio, especificado em dois sentidos: 1) o ato criminal foi realizado com a intenção de destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, embora possa ser cometido até contra um só indivíduo; 2) a lesão grave à integridade física ou mental dos membros de um grupo e a violência sexual contra as mulheres, realizadas sempre com a mesma intenção.

Em 1990, por iniciativa de Trinidad e Tobago, a Assembléia Geral da ONU propôs à Comissão de Direito Internacional (CDI) a elaboração de um projeto de estatuto para o futuro Tribunal Penal Internacional.
Depois de vários passos preparatórios, chegou-se à convocação de uma Conferência de Plenipotenciários, em Roma, para concluir as negociações do Estatuto (1997).
A Conferência de Roma
O TPI foi criado com base no Estatuto de Roma, um tratado adotado com o voto de 120 nações a favor e 7 contra (com 21 abstenções), em 17 de julho de 1998, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, celebrada em Roma. O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1 de julho de 2002, quando superou as 60 ratificações necessárias.
Os crimes previstos pelo Estatuto
a) Crimes de genocídio: matar membros de um grupo ou comunidade étnica; provocar lesões a membros do mesmo grupo; submeter a maus tratos que comportam a destruição física total ou parcial do grupo étnico; impor medidas anticoncepcionais ou capazes de causar a esterilidade; transferir forçadamente grupos de crianças para um grupo diferente.
b) Crimes contra a humanidade: homicídio; extermínio; escravidão; deportação; aprisionamento com violação das normas do direito internacional; torturas; estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, violência sexual; perseguição de grupos ou comunidades por motivos políticos, raciais, culturais, religiosos; desaparecimento forçado de uma ou mais pessoas; apartheid; atos inumanos que provocam graves sofrimentos.
Os tribunais anteriores não mencionavam a pena de morte, pois as penas máximas dos países envolvidos não a consideravam; a mesma não foi incluída de forma explícita no Estatuto.

As dificuldades mais expressivas em Roma foram: chegar a um acordo sobre a definição de cada um dos atos listados e decidir sobre inclusão ou não de alguns desses atos no Estatuto (pontos centrais da discussão foram os denominados "crimes sexuais"). A conseqüência foi que as definições são bastante genéricas, vagas, deixando espaço para interpretações desfavoráveis à aplicação da jurisdição da Corte.
c) Crimes de guerra: para tal definição, foram utilizados os instrumentos jurídicos de Direito Internacional Humanitário, em particular a Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949. Era do interesse de diversas delegações evitar que a prática isolada de crimes de guerra viesse a ser julgada pelo TPI, em contraste com a preocupação de outras em não retroceder em relação ao Direito Humanitário existente. Um lamentável resultado das controvérsias nesse ponto foi o denominado "Dispositivo Transitório". Segundo este, os Estados que ratificam o Estatuto podem declarar que não aceitam a jurisdição da Corte para crimes de guerra por um período de 7 anos (este artigo será revisto na Primeira Conferência de Revisão).
d) Crimes de agressão: esses crimes são de natureza política por excelência. Devido a isso, argumenta-se que a inclusão de tais crimes no Estatuto da Corte implicaria na "politização" dos seus trabalhos, colocando em risco a sua independência. Por isso, os Crimes de Agressão não tiveram, no Estatuto, uma definição precisa.
O que resultou das discussões foi a superposição entre áreas de competência da Corte e do Conselho de Segurança. O exercício da jurisdição do Tribunal estará condicionado à aprovação de uma emenda ao Estatuto, isolada ou no contexto de uma conferência de revisão, que contenha a definição de um determinado crime e estabeleça o papel a ser desempenhado pelo Conselho de Segurança.

Os motivos podem ser vários: o medo de que o ex-ditador iraquiano revele segredos do apoio que, no passado, os EUA deram a seu regime; o temor de que, num tribunal imparcial, os EUA acabem incriminados por crimes de guerra. Tudo pode ser resumido no medo de os americanos perderem qualquer controle sobre um tribunal internacional.Cabe ressaltar ainda que o TPI, ao contrário do que o governo norte-americano defende, não representa uma ameaça à soberania dos Estados, pelo contrário, representa o fortalecimento do sistema jurídico internacional.
Os aspectos favoráveis do Estatuto da Corte
Um dos aspectos favoráveis que resultam do Estatuto da Corte é a competência automática da mesma, pois a sua jurisdição é aceita pelo Estado Parte, a partir do momento da ratificação do Estatuto, não sendo necessária qualquer outra "autorização". Também os poderes da promotoria para iniciar investigações "proprio motu" (de própria iniciativa) representam um avanço. Algumas delegações alertavam para o risco de que apenas uns poucos Estados viessem a oferecer denúncias, visto que estas poderiam ser interpretadas como interferência na soberania do Estado-alvo ou prejudicar as relações diplomáticas com o mesmo. Também há o fato de que poucos Estados têm utilizado os mecanismos de denúncia previstos em instrumentos jurídicos internacionais de Direitos Humanos. Além disso, o Conselho de Segurança, por ser um órgão político, não agiria de modo isento e imparcial na apresentação de denúncias. A inclusão de conflitos armados internos na definição de crimes de guerra e dos dispositivos para proteção de vítimas e testemunhas, no Estatuto, são outros avanços desse processo.
A mobilização da sociedade civil
Como visto, a Corte Penal Internacional constitui um dos maiores avanços da comunidade internacional no sentido de efetivar e realmente proteger os direitos da pessoa humana. Afinal, ela vem a ser um tribunal justo que garantirá um processo justo e, assim, evitará a impunidade. A sociedade civil tem exercido um importante papel perante o estabelecimento da corte. Várias ONGs têm lutado a favor do TPI, argumentando que os direitos humanos e a cooperação internacional serão salvaguardados de forma mais efetiva.
Casos recentemente noticiados pela imprensa em todo mundo também são fatores que têm fortalecido e mobilizado a opinião da sociedade civil em favor da TPI. O julgamento de Pinochet, a denúncia de Milosevic perante a Corte de Haia e a indefinição sobre quem é o responsável pelo julgamento de Saddam Hussein nos fazem ter uma maior percepção da necessidade de um tribunal penal supranacional, uma vez que, se na época do cometimento de seus crimes já existisse um tribunal como a TPI, eles não ficariam impunes.
Contudo, a TPI não é unanimidade. Vários setores da sociedade civil, principalmente nos Estados Unidos, têm se manifestado contra. Para eles, o tribunal ainda não foi organizado de forma satisfatória. A inexistência de uma "Bill of Rights" (declaração dos direitos); a definição "vaga" de certos crimes; a falta de uma real presunção de inocência e a participação política que o podem tornar um tribunal partidário, são os principais argumentos usados contra o estabelecimento da TPI, o que configura uma posição bastante contraditória, tendo em vista que a maioria desses "defeitos" apontados pela sociedade civil norte-americana são derivados da ação de seus representantes.
Perante essa variedade de interesses, a Corte Penal Internacional é uma grande vitória porque vem a suprir uma das maiores lacunas institucionais existentes, isto é, a falta de um sistema internacional capaz de punir indivíduos. É claro que, no entanto, para uma efetiva legitimidade desse tribunal, seria necessária a ratificação de seu estatuto por parte da maioria das nações, o que lhe garantiria uma autoridade de fato.
Situação atual do TPI
Com a entrada em vigor do Estatuto de Roma, a Assembléia dos Estados Partes do TPI, o órgão governamental do Tribunal, integrado pelos países que o ratificaram, vem se reunindo desde setembro de 2002. Desde então, a sociedade civil tem concentrado seus esforços em assegurar que a eleição e a nomeação dos magistrados e funcionários sejam realizadas de maneira justa e transparente, respeitando o Estatuto de Roma. Por outro lado, estão sendo desenvolvidos programas de capacitação de pessoal e funcionários da Corte.
Cabe destacar, contudo, que, internamente aos Estados, será necessário capacitar funcionários do governo encarregados de cumprir as leis, os membros do poder judiciário e outros funcionários sobre o TPI e seu dever de cooperar com ele. Além disso, deve-se assegurar que aqueles que possam vir a ter contato com vítimas potenciais e testemunhas tenham condições de informar sobre o funcionamento do TPI. Com o objetivo de lograr o apoio universal para a Corte, faz-se imprescindível continuar com a campanha pela ratificação do Estatuto. No que se refere aos países que já o ratificaram, eles deverão adotar uma legislação interna complementar, que lhes permita cooperar plenamente com o TPI.
A importância do TPI para a proteção da pessoa humana
Como visto, a árdua e meticulosa tarefa de implementação do TPI pode e deve satisfazer aos mais altos padrões de justiça e transparência. Assim, o TPI representa um tributo aos milhões de inocentes que perderam a vida, vítimas de algumas das mais atrozes violações aos direitos humanos em séculos passados. Já que possui resguardos legais, inclusive no que se refere ao princípio da complementaridade, e conta com o respaldo das ações das Nações Unidas, de distintos governos e de organizações da sociedade civil de todas as regiões do mundo, o TPI será, certamente, uma ferramenta efetiva para acabar com a impunidade no século 21.
Poderá garantir que os Estados respondam por seus atos, ressaltando o conceito de "responsabilidade", por meio da qual devem assegurar a seus cidadãos condições que não os obriguem a fugir em conseqüência do medo ou da miséria. Tal responsabilidade deve ser entendida em seu sentido amplo, estendendo-se a todas as demais pessoas que participam nos assuntos nacionais e internacionais, tais como grupos rebeldes, dirigentes de partidos políticos, senhores da guerra e facções militares, entre outros.
Porém, esse conceito de responsabilidade coletiva deve estar harmonizado com o de responsabilidade individual, toda vez que os crimes a serem submetidos ao julgamento do TPI não sejam produtos do acaso nem fruto de forças históricas abstratas ou anônimas; ocorrem porque determinados indivíduos decidem violar os direitos de outros, colocar em perigo as vidas, tornando impossível viver em segurança em seus próprios lares.

Federalização dos crimes contra Direitos Humanos

"Justiça tardia não é Justiça, é injustiça manifesta" (Rui Barbosa)
"A demora na administração da justiça constitui, na verdade, pura denegação de justiça", conforme conhecida parêmia, atribuída ao Conselheiro De la Bruyère" (José Rogério Cruz e Tucci, em Tempo e processo).

1. Introdução
A Emenda Constitucional nº 45, que reformou parcialmente o Judiciário brasileiro, foi promulgada em dezembro de 2004 e, desde então, tem rendido várias e boas polêmicas. Uma das mais interessantes diz respeito ao incidente de deslocamento de competência, instituto criado por meio da introdução de um novo inciso e de um novo parágrafo ao artigo 109 da Constituição Federal, que cuida da competência dos juízes federais.
Com efeito, o artigo 109, inciso V-A, passou a prever que também compete aos juízes federais processar e julgar "as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo". E o parágrafo 5º estatui:
"§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".
É justamente nesse parágrafo que estaria uma relevante e controvertida questão constitucional, no entendimento da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Tanto que esta última, no início de maio de 2005, ajuizou a ADIN 3486/DF, com pedido de medida cautelar, para que o STF venha a declarar a inconstitucionalidade da EC 45/04 exatamente na parte em que instituiu o incidente de deslocamento de competência (IDC). Foi sorteado relator da ação o ministro Cezar Peluso, oriundo da magistratura paulista.
Várias organizações não-governamentais de direitos humanos e organismos internacionais, assim como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), são favoráveis ao incidente de deslocamento. A expectativa é de que o Supremo Tribunal Federal defina os limites e pressupostos do IDC, mas rejeite a ADIN. Aliás, a posição da AMB não surpreende, já que, durante a tramitação da PEC 29/00 (Reforma do Judiciário), a associação de magistrados sugeriu emenda para suprimir o IDC do texto original e, alternativamente, tentou modificar o incidente para que só fosse possível sua instauração durante a fase pré-processual.
A seguir, analisaremos algumas características do incidente de deslocamento de competência e apontaremos razões pelas quais esse novo e importante instituto deve ser mantido no ordenamento jurídico.
2. O incidente de deslocamento de competência (IDC)
É antiga a luta de organizações de defesa da pessoa humana para instituir no Brasil a federalização dos crimes contra os direitos humanos, o que resultou na inclusão da proposta no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) de 1996. No espaço legislativo, a primeira iniciativa materializou-se com a PEC 368-A/96, do Poder Executivo, que acabou sendo incorporada à PEC 96/92 (mais tarde PEC 29/00, no Senado), da Reforma do Judiciário, convertendo-se, oito anos depois, na EC 45/04.
A construção da tese da federalização dos delitos contra os direitos humanos encontrou substrato na escalada da violência e da impunidade em várias regiões do País. São exemplos os massacres, chacinas e crimes de mando ocorridos em Eldorado dos Carajás, Vigário Geral, Carandiru, Parauapebas, Xapuri, Candelária e Queimados, só para citar alguns dos mais recentes. A atuação de grupos de extermínio em várias cidades brasileiras, somada à impunidade generalizada, fez crescer as pressões internacionais sobre a União, responsável, no plano externo (artigo 21, inciso I, da Constituição Federal), pelo cumprimento das obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos.
Esse cenário negativo acabou por ser o catalizador que faltava para o efetivo estabelecimento de uma nova vertente processual para a defesa dos direitos da pessoa humana, quando violados no Brasil, em consonância com a internacionalização do direito humanitário e com a admissão da personalidade jurídica internacional da pessoa humana.
Pode-se conceituar o IDC como um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte. Cuida-se de ferramenta processual criada para assegurar um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e para preservar um dos princípios pelos quais se guia o País nas suas relações internacionais e obviamente também no plano interno: a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF).
Sendo também, como me parece, uma garantia individual, o IDC tem aplicação imediata, por força do artigo 5º, §1º, da Constituição Republicana. Essa sua natureza decorre da sua própria finalidade, qual seja, a efetiva prestação da jurisdição nos casos de crimes contra os direitos humanos, servindo primordialmente aos interesses da vítima e da sociedade, no ideal de segurança jurídica e de reparação, mas também prestando-se a resguardar a posição jurídica de autores de delitos, no que diz respeito à duração razoável do processo e ao respeito aos seus direitos fundamentais por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal.
Alvo de severas críticas, o incidente de deslocamento não revela, como alguns querem ver, qualquer nota de desconfiança preconcebida quanto à atuação da Justiça das unidades da Federação. Trata-se tão-somente de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Organização dos Estados Americanos e, por via indireta, o Tribunal Penal Internacional e de efetiva proteção aos direitos humanos em nosso território, em virtude da internacionalização do direito humanitário e das obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo País, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José, 1969), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o recente Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, e as convenções da ONU contra a tortura e para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por exemplo.
A federalização de crimes desta ordem encontra respaldo no direito comparado. Segundo FRANCISCO REZEK, "Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações".
Como instituto processual penal, o IDC deve ser visto em consonância com o novo inciso LXXVIII do artigo 5º da CF, também introduzido pela EC 45/04, que a todos assegura, no âmbito judicial e administrativo, "a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Tais dispositivos coexistem no plano genético com a regra do §3º do artigo 5º da Constituição, que equiparou a emendas constitucionais os tratados de direitos humanos que venham a ser aprovados, em dois turnos de votação, por maioria qualificada de três quintos dos membros das duas casas do Congresso.
Neste sentido, o deslocamento de causas de competência da Justiça estadual para a Justiça federal é justamente mais um desses meios que garantem a celeridade da tramitação de processos. Trata-se de uma garantia individual posta à disposição tanto de acusados quanto de vítimas de delitos. Em caso de arquivamentos indevidos, omissão ou demora injustificável na prestação jurisdicional em causas de direitos humanos, podem os interessados provocar a federalização, dirigindo-se ao Procurador Geral da República, que, então, decidirá sobre a instauração do incidente, não sem antes realizar uma apuração preliminar.
De fato, cabe ao Procurador-Geral da República, na condição de promotor natural, em qualquer fase da investigação ou do processo, suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, quando presentes três pressupostos objetivos: a) prática de grave crime contra os direitos humanos; b) possibilidade de responsabilização internacional do Brasil; c) omissão, leniência, excessiva demora, conluio ou conivência dos órgãos de persecução criminal do Estado-membro ou do Distrito Federal.
Citando a professora FLÁVIA PIOVESAN, o Procurador-Geral da República CLÁUDIO FONTELES afirma "[...] a possibilidade de se promover o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, verificando como preenchido os requisitos acima mencionados na excepcional situação de demora injustificada na investigação, processo ou julgamento de graves violações de direitos humanos ou quando haja fundado receito de comprometimento da apuração dos fatos ou da atuação da Justiça local, argumentando que tal hipótese ?está em absoluta consonância com a sistemática processual vigente (vide o instituto do desaforamento), como também com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos (que admite seja um caso submetido à apreciação de organismos internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no dever de proteger os direitos humanos?)" .
Embora ainda não exista norma regimental regulamentando o procedimento do novo instituto, a Resolução n. 06/05 da Presidência do Superior Tribunal de Justiça, determinou que o incidente deve ser apreciado pela 3ª Seção do STJ, composta pelos ministros da 5ª e 6ª Turmas do tribunal, entre os quais se escolherá o relator. Ouvida a autoridade judiciária estadual suscitada, o procedimento será submetido a julgamento colegiado.
Entendemos que deve ser conferida oportunidade ao Ministério Público Estadual e ao réu ou investigado para se manifestarem no incidente, em nome do contraditório, da ampla defesa (art. 5º, LV, CF) e do devido processo legal, porque são ou serão partes na relação jurídica processual estadual. Afinal, no que diz respeito ao Ministério Público Estadual, que até então era o dominus litis, ter-se-á a supressão da atribuição constitucional para a persecução (art. 129, I, CF), razão pela qual deverá ser ouvido para exercer a defesa de seu espaço de atuação. E, no que se refere ao suposto autor do delito, deve-se assegurar em todos os eventos processuais a oportunidade de manifestação e contra-argumentação, já que está em jogo o seu jus libertatis. Não seria demasiado permitir oportunidade para que as vítimas ou seus representantes legais se fizessem ouvir no incidente, nos mesmos moldes em que se admite a assistência de acusação nas ações penais públicas.
Em síntese, o IDC pode ser conceituado como:
a)incidente processual penal objetivo, de base constitucional, para modificação horizontal da competência criminal em causas relativas a direitos humanos (ratione materiae);
b)garantia individual de efetividade da Justiça Criminal e de razoável duração do processo penal;
c)mecanismo de sucessão ou substituição da atividade da Justiça dos Estados ou do Distrito Federal pela Justiça da União, dentro do esquema de federalismo cooperativo , nos casos de violação a direitos humanos;
d)instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União;
e)incidente processual que tem em mira a redução da impunidade e a concreta proteção dos direitos humanos.
3. O IDC, a ação interventiva e outros "deslocamentos"
Não é nova no sistema constitucional brasileiro a possibilidade de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal para a garantia dos direitos humanos.
Em situação similar à autorizada pelo IDC, o artigo 34, inciso VII, alínea ?b?, da Constituição Federal permite à União intervir nos Estados e no Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana. Conforme o artigo 36, inciso III, a decretação da intervenção dependerá de provimento pelo STF de representação do Procurador-Geral da República.
Como se percebe, o incidente de deslocamento é uma forma alternativa, mais sutil e menos traumática, de intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal, para atender aos mesmos objetivos já consagrados no artigo 34 da Constituição. Na verdade, não se tem propriamente uma intervenção. Trata-se de atuação complementar da Justiça Federal, em virtude de negativa ou retardo de prestação jurisdicional pelos entes subnacionais. Da mesma forma que na intervenção federal, o legitimado para provocar o incidente é o Procurador-Geral da República, que deve dirigir-se, todavia, ao Superior Tribunal de Justiça para a fixação final da competência. Esta sempre será federal em potência. Vale dizer: doravante todos os crimes contra os direitos humanos previstos em tratados internacionais são virtualmente de competência federal. Basta que estejam presentes os pressupostos do deslocamento, para que se dê a substituição da jurisdição estadual/distrital pela federal. Cuida-se então de uma assunção de competência condicionada ao atendimento de certos requisitos, ordenada pelo Superior Tribunal de Justiça.
A opção do constituinte derivado pelo STJ (e não pelo STF) no julgamento do IDC deve-se ao próprio regime de distribuição de competências dos tribunais superiores na Constituição de 1988. Pois o STJ, tribunal encarregado da uniformização da interpretação da lei federal em todo o País, é a corte competente para decidir conflitos de competência entre juízes vinculados a tribunais diversos (artigo 105, inciso I, alínea ?d?, da CF). E é exatamente uma espécie de "conflito" de competência que o STJ decide quando julga o incidente de deslocamento, pois, nos casos de grave violação a direitos humanos previstos em tratados internacionais, há uma competência virtual ou potencial da Justiça Federal que se pospõe à competência tradicional da Justiça Estadual, para esses mesmos delitos, caso esta se revele ineficiente.
Verificada a similitude do IDC com o sistema de intervenção federal, é válido realçar que o novo incidente tem outros precursores constitucionais. De fato, por força do artigo 144, §1º, inciso I, da Constituição, a Polícia Federal, que é a polícia judiciária da União, pode apurar "infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme". O texto deste dispositivo atende ao dever internacional de persecução dos crimes previstos em tratados internacionais, dado o evidente interesse da União na preservação de sua responsabilidade perante a comunidade das nações.
A Lei n. 10.446/02, no seu artigo 1º, inciso III, regulamentou essa atribuição da Polícia Federal, concorrente com a da Polícia Civil, de investigar infrações penais "relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte". Note-se que aqui não se trata de substituição da atuação da Polícia Civil pela investigação da Polícia Federal, mas de persecução conjunta por ambas as corporações policiais em dois inquéritos simultâneos. Coisa bem diferente se dá no incidente de deslocamento de competência, em que o Ministério Público Federal e a Justiça Federal efetivamente substituem os órgãos estaduais respectivos, já que não faria sentido permitir duas ações penais com o mesmo objeto (bis in idem).
Pode-se ainda argumentar, em favor do IDC, que há no sistema jurídico brasileiro outros instrumentos processuais que acarretam modificações, seja de atribuição seja de competência.
É o caso da ação penal privada subsidiária, garantia individual que se coaduna com o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (artigo 5º, XXXV, CF) (25), e está prevista no artigo 29 do Código de Processo Penal. Assim, em caso de inércia absoluta do Ministério Público, faculta-se ao particular ofendido ou a seu representante legal, manejar queixa-crime para a persecução criminal de delitos originariamente de ação penal pública. O caso é, pois, de substituição de legitimado. Como aqui estamos diante de um direito fundamental talhado para garantir o acesso à Justiça e à prestação jurisdicional, ninguém ousa inquiná-lo de violador do princípio do promotor natural ou do princípio acusatório. Nesta medida, a ação privada subsidiária da pública é um dos meios que se presta a garantir a célere tramitação dos feitos criminais, diante da demora injustificada ou da inércia do Ministério Público em promover a ação penal.
Situação de claro deslocamento de competência da justiça estadual para a federal ocorre nos casos de conexão entre crimes de competência federal e crimes de competência estadual. A questão está hoje sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça no enunciado n. 122:
"Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ?a?, do Código de Processo Penal".
Com isso, o STJ pacificou o entendimento de que, no concurso de "jurisdições" de igual categoria (juiz de Direito vs. juiz federal), a competência federal prepondera sobre a competência estadual. A primeira é expressa na Constituição, ao passo que a segunda é residual, embora mais ampla.
Ainda no que concerne à competência, as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos são defesas processuais tradicionais, que ocorrem no curso de ações penais e cíveis. Tais instrumentos processuais jamais foram contestados ao argumento de que ofendem o princípio do juiz natural (art. 5º, LVIII, CF). Quantas são as exceções de incompetência (em razão da função, material e territorial), de suspeição e de impedimento que alteram o juízo ou afastam juízes antes acreditados como "naturais"? Evidentemente, essas ferramentas de processo, como também o IDC, não afetam a segurança jurídica na atividade jurisdicional, pelo simples fato de alteraram o juízo tido como competente. E isto é óbvio, porque todos os órgãos jurisdicionais envolvidos, tanto nas velhas exceções como no novo incidente de deslocamento, são pré-existentes e pré-estabelecidos, não existindo qualquer juízo ex post factum) ou tribunal de exceção. Como antes se disse, o juiz federal que receberá a causa deslocada é também juiz natural porque, desde o início, segundo a própria Constituição brasileira, aquele juízo era virtualmente ou condicionalmente competente para os processos relativos a graves violações a direitos humanos. Trata-se então de juiz natural potencial.
Ainda pode-se argumentar mais. Do mesmo modo que nas exceções processuais e nos conflitos de competência, também não há violação aos princípios da segurança jurídica e do juiz natural nos casos de remoção ex officio de magistrados. Tais remoções, como é óbvio, atendem ao interesse público, e nenhum réu dirá que a substituição de um determinado magistrado, por razões de ordem pública, ofende qualquer garantia individual. Neste passo, não se pode esquecer que a EC 45/04 conferiu ao Conselho Nacional de Justiça a faculdade de remover magistrados (artigo 103-B, §4º, inciso III, da CF), em decisão administrativa, sempre que presentes graves razões de ordem pública. Logo, não há porque temer a mera substituição de um juiz estadual por juiz federal, presentes determinados requisitos, e em situações excepcionais, também motivadas pelo interesse público e estribadas em princípios fundamentais do Estado brasileiro, como são a dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos humanos.
Mais oposição e mobilização deveria haver contra a instituição de listas precárias de juízes substitutos e de juízes eleitorais, elaboradas sem qualquer parâmetro objetivo, numa prática que enseja fixações indevidas e alterações arbitrárias e imotivadas de juiz natural em determinados Estados. Trata-se, aí sim, de praxe deletéria e claramente inconstitucional que permite a alguns Tribunais literalmente escolher a dedo certos magistrados, fora da lista regular de substituição ou abandonando a premissa territorial, em regra para atender a critérios pouco ou nada republicanos.
Por fim, ainda no que se refere ao princípio do juiz natural, há que se considerar que o objetivo do incidente de deslocamento é proteger direitos fundamentais das vítimas e assegurar o interesse público da persecução criminal, para redução da impunidade. O instituto presta-se também, como antes mencionado, à proteção de autores de delitos, já condenados ou não, e que venham a ter seus direitos individuais gravemente violados pelo Estado. Neste sentido, ainda que se pudesse falar em afastamento do princípio do juiz natural (o que não é efetivamente o caso), a adequada ponderação dos interesses contrapostos permitiria perfeita harmonização do aparente conflito, em favor do reconhecimento da constitucionalidade do deslocamento da competência, já que tudo é feito de forma a ampliar a efetividade da Justiça, reduzir a impunidade e garantir direitos da pessoa humana. Em síntese, o constituinte derivado não reduziu a esfera de proteção dos direitos do cidadão, mas sim a ampliou por meio de um novo instrumento garantista, o incidente de deslocamento de competência.