Existirá relação harmônica entre Razão e Fé? Dirão alguns que sim. Outros, porém, dirão que não. O “sim” ou o “não” dependem, em primeiro lugar, da compreensão semântica atribuída aos termos Razão e Fé. Em segundo lugar, das posições ideológicas já fincadas por que debate a questão. Nenhuma das duas problemáticas aprofundarei aqui. Basta mencionar que a reflexão sobre a aproximação/afastamento entre estas duas vias de conhecimento tem sido historicamente marcada por embates e paradoxos.

   Na Idade média, Tomás de Aquino estabeleceu as bases da aproximação entre estas duas vias de conhecimento, estabelecendo o lastro para a constituição da moderna Teologia cristã católica, de modo que o catecismo da Igreja Católica afirma:

 

“ Ao defender a capacidade da razão humana de conhecer a Deus, a Igreja exprime sua confiança na possibilidade de falar de Deus a todos os homens e com todos os homens. Esta convicção está na base de seu diálogo com as outras religiões, com a Filosofia e com as Ciências, como também com os não-crentes e os ateus” (1).

 

   De modo geral, enquanto fincados no terreno do senso comum, a maior parte dos homens de fé, se não afirmam concordarem categoricamente com toda a extensão desta declaração, vive e age como sendo concordante.

   No século XIX, um certo pensador elaborou reflexões que colocavam em xeque a ideia de que a fé, a relação com Deus e o próprio Deus, poderiam ser apreendidos de modo racional e sistemático. Este pensador era Soren de Kierkgaard (1813 - ).

   Para Kierkgaard solidão e fé são inseparáveis. A angústia e a incerteza estão, também, indissoluvelmente unidas à experiência de fé. A solidão decorre do fato ou do entendimento de que cada indivíduo é único, singular, e esta “individualidade não deve portanto ser entendida como um conceito lógico, mas como a solidão característica do homem que se coloca como finito perante o infinito” (2). Tal solidão decorre da condição de existência do sujeito finito diante do infinito, limitado diante do ilimitado, de capacidade de conhecer condicionada diante do incognoscível. O homem diante de toda a criação e de Deus.

   Perante tais contrastes decorrem os sentimentos de solidão e angústia. Os objetos da fé não podem ser apreendidos racionalmente. A fé constitui-se como uma relação com o incompreensível e injustificável. A verdade que se abraça pela fé, apresenta-se a nós de modo imediato, como num salto, e não por um processo lógico-racional como o caminhar através de uma ponte. Assim, do ponto de vista lógico-racional a fé é crença no absurdo, posto que não se pode justificá-la nem pela lógica, nem pela moral, muitas vezes.

   O caso clássico ilustrativo dessas relações entre fé, solidão e angústia, é o sacrifício de Isaac requerido por Deus, afim de provar a fé de Abraão. Abraão prontamente atendeu à requisição do Senhor Deus. Baseado em que razão ou fundamento lógico? Em que princípio moral ou ético? Baseado em que certeza de conhecimento? A resposta para todas as perguntas é nenhum ou nenhuma. Qual a base, então, para a pronta decisão de agir? A crença no absurdo, este entendido como aquilo para o qual não tenho resposta lógica ou conhecimento certo.

   Abraão estava só, diante do incompreensível em termos lógicos. O que estava em xeque, naquele instante, era a relação pessoal de fé de Abraão com Deus. Ele estava mergulhado na angústia do desconhecimento, da ausência de respostas claras e inequívocas . Toda esta angústia em função de que a “fé representa um salto, a ausência de mediação humana, precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor” (2).

   Caso Abraão tivesse efetivamente sacrificado Isaac, ele não teria como justificar sua ação, a não ser em termos subjetivos e de sua condição existencial de fé singular. Seria um homicida, do ponto de vista moral, e um louco do ponto de vista lógico, uma vez que Isaac, de acordo com a narrativa bíblica, representava a continuidade do próprio Abraão por meio de sua descendência, o que estava estabelecido principalmente em sua relação de fé com o Deus da promessa.

   É esta a condição do homem de fé? Quais as implicações de uma fé vivida em tais termos? Penso que a ação dos homens-bomba responde a tais perguntas. A vida, porém, de homens e mulheres como Mahatma Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, Martin Luther king Jr, São Francisco de Assis, Saulo de Tarso, dentre outros, também responde a mesma questão, com as expressões da mesma radicalidade só que em sentidos contrários a dos primeiros. Mais uma vez a angústia da indefinição que caracteriza a existência humana.

   Em Kierkgaard a relação do homem com Deus é a via para superar a angústia da existência, mas nesta relação, necessariamente, deve o indivíduo lidar com o paradoxo de “compreender pela fé o que é incompreensível pela razão” (3).

 

 

Referência bibliográficas

  1. Catecismo da Igreja Católica. Edição típica vaticana. Edições Loyola, 1997. Art. 39, p.25. (Confita também: Razão e conhecimento de Deus – art. 35 a 39, 47, 237 286. Razão e fé – art. 50, 156 a 159, 274 e 1706).

  2. História da Filosofia. Coleção os pensadores. Abril cultural, 1999. pp. 404 a 411.

  3. COTRIN, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 1 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.