WERNER SCHROR LEBER

Este escrito é uma síntese do texto abaixo citado, feito pelo professor de filosofia Werner Schrör Leber.

HABERMAS, Jürgen. Fé e saber. [Tradução de Fernando Costa Mattos]. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2013. O texto é uma palestra proferida em 2001 quando o Habermas ganhou o Prêmio da Paz, pela Associação dos Livreiros da Alemanha, páginas 01-26.

Além de uma apresentação à edição brasileira feita por Luiz Bernardo Leite Araujo, nas páginas 27 a 53 surge um comentário de Jan Philipp Reemstma, LAUDATIO, em que o autor apresenta um panorama da trajetória da filosofia de Habermas como o “filósofo da República Federal Alemã”. A menção a páginas, quando for o caso, refere-se sempre somente à edição acima referida.

Cito aqui a passagem com que a Editora da Unesp comenta o livro por ela editado. Assim vai o texto:

“[...] este texto reproduz um discurso do filósofo proferido cerca de um mês após o 11 de setembro de 2001. Embora circunstancial, é de grande importância no conjunto da obra do filósofo que, ao retomar o clássico tema fé e saber, adota uma nova expressão – “pós-secular” – que imprime mudanças em sua teoria da modernidade e torna-se presente em suas obras posteriores. Para o filósofo, o novo milênio está culturalmente dividido entre duas tendências opostas: uma propaga imagens de mundo naturalistas; outra revitaliza de modo inesperado comunidades de fé e tradições religiosas, politizando-as em escala mundial. A partir desta percepção ele propõe uma reavaliação da tese da secularização,passando a questionar o secularismo como visão de mundo. Ele permanece fiel, porém, às proposições pós-metafísicas e seculares do pensamento moderno.  Assim, a expressão “pós-secular” não traduz uma alternativa à pós-metafísica que norteia a modernidade. Esta permanece “secular”. “Pós-secular” remete a uma mudança de mentalidade das sociedades secularistas, que se tornam conscientes da inevitabilidade do convívio com as religiões, as quais, admite o filósofo, permanecem na cena como atores sociais importantes. A era pós-secular nada mais significa, então, do que o reconhecimento de que se tornou impossível à estrutura secular seguir adiante sozinha. “Para Habermas, o pensamento pós-metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente agnóstica e receptiva diante da religião, ou seja, que se oponha a uma determinação estritamente secularista das razões publicamente aceitáveis sem, com isso, comprometer sua autocompreensão secular”, escreve, na apresentação do livro, Luiz Bernardo Leite Araújo. (Conforme: http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788539304035,fe-e-saber)

Segue o comentário de minha leitura.

PRIMEIRO ATO: OS CONTORNOS DO PROBLEMA DE FÉ E SABER

Embora a parte introdutória seja apenas uma aporia para o desenvolvimento posterior, vou me ater com mais detalhamentos sobre ela porque é nela que consta o panorama de fundo desta palestra proferida em 2001. Habermas inicia seu texto nos informando que o século XXI começou confuso e cheio de dúvidas. Não só pelo 11 de Setembro de 2001, mas porque as pesquisas científicas avançam rapidamente e também porque, por todos entenderem pouco das transformações que se avizinhavam. Como informa Habermas, todos se comportarem “[...] como verdadeiros John Waynes, competir para ver quem saca a atira mais rápido” (HABERMAS, 2013, p. 01). Parecia, conforme o autor, que a luta intelectual e filosófica se daria em torno da engenharia genética e seu processo de auto-otimização, conforme termos que emprega. Mas a situação mudou rápido. Surgiu uma luta entre valores últimos das ciências e das Igrejas (ou seria da Fé?). De um lado, a ciência temia que a fé só alimentaria obscurantismo sentimentos arcaicos em relação às descobertas científicas. Já a religião e as Igrejas viam a ciência como um progresso desenfreado, um naturalismo cru, como diz Habermas, que se afastaria da moral e, mais que isso, a sepultaria de vez. Mas depois de 11.09.2001 “[...] a tensão entre sociedade secular e a religião explodiu de um modo inteiramente diverso”, informa Habermas (Op. cit., p. 02).  Bem esse jogo é velho. O conhecemos desde, pelo menos, o Renascimento europeu do século XVI, agravado que foi pelo Positivismo do século XIX. O que há de novo nessa relação então? Habermas argumenta que o fundamentalismo religioso, tal como ele vem dos países onde predomina a religião islâmica, é um fenômeno recente. Há, de certo modo, uma condenação geral do modo ocidental de ser e viver pelos islâmicos dos países árabes e do Médio Oriente. Qual é a causa desse ódio coletivo muçulmano contra o Ocidente? A modernidade capitalista ocidental foi vista pela turma de Osama Bin Laden, conforme nosso autor, como o Grande Satã. (Vejam que Habermas aqui está se referindo ao momento de 2001; não está em questão o que veio depois). Mas do lado Ocidental também houve, em 2001, quem invocasse textos bíblicos e apocalípticos, procurando vingança e transformando Igrejas e Sinagogas em palcos que se assemelhavam às batalhas descritas no Velho Testamento. No entanto, a comunidade americana, mesmo sofrendo um duro golpe, não se transformou em uma sociedade do ódio contra islâmicos ou árabes. Ainda que alguns quisessem inicialmente vingança, não houve nem nos americanos e nem em qualquer país ocidental um praguejamento de ódio coletivo. Porém, não é assim que as coisas são vistas nos países que querem ver o Ocidente destruído, na visão de Habermas. Vai aqui uma citação que ilustra o ponto de vista de nosso autor sobre o problema:

O que chama particularmente a atenção nos terroristas islâmicos é a assincronia entre os motivos e os meios. Reflete-se nisso a assincronia entre cultura e sociedade nos países natais desses terroristas, algo que só se constituiu em decorrência de uma modernização acelerada e fortemente desenraizadora. Aquilo que em condições mais favoráveis poderia ser vivido, entre nós, como um processo de destruição CRIADORA, não ofereceu por lá qualquer compensação perceptível para a dor que acompanha o declínio das formas de vida tradicionais. Nesses países, a perspectiva de uma melhoria das condições materiais de vida é apenas uma perspectiva. O mais decisivo é que se bloqueia, por meio dos sentimentos de degradação, a transformação espiritual que se expressaria politicamente na separação entre religião e Estado (HABERMAS, 2013, p. 03).

Como interpretar essa passagem de Habermas? O que seria uma “destruição CRIADORA”? Lembro que a palavra “criadora” está grafada no texto traduzido da edição brasileira. A meu ver, o que nosso autor está a dizer é que a complexificação dos modos de vida na sociedade atuais é sentida de dois modos distintos: a)  nas sociedades ocidentais, a separação entre religião e Estado é fruto de uma racionalização em que ciência (saber = Wissen; e Ciência = Wissenschaft) e religião (fé; Glauben) não entram em tensão porque se organizou as coisas de tal modo que eu, Werner Leber, designo como “cada um sabe onde é seu lugar” (bem, esse é meu entendimento e esse grifo são meus; não sou o dono da verdade e deixo ao meu estudante interpretar como bem lhe aprouver, caso considere a minha interpretação destituída de validade); b) nas sociedades islâmicas a secularização não trouxe separação entre religião e Estado, além de destruir as formas tradicionais de organização social. No Ocidente houve uma compensação material trazida pelos modos de vida e pela ascensão social que o capitalismo, bem ou mal, proporciona. Seria essa a “Destruição Criadora” de que Habermas fala? Seria uma espécie de troca: perde-se o espaço religioso para a secularização, mas ganha uma compensação material em termos de conforto e renda? Parece-me que sim. Mas no mundo islâmico, sumiu a vida tradicional, impôs-se uma secularização técnica e científica, sem que as condições materiais e o acesso às riquezas produzidas fossem permitidos à população daqueles países. Isso gerou uma total falta de perspectiva nos países islâmicos, situação não observada nos países capitalistas ocidentais. Mas não que no Ocidente tudo esteja resolvido e que a secularização não tenha deixado feridas e discórdias. Há disputas ambivalentes entre as consequências da secularização como se pode observar nas disputas sobre a engenharia genética, entre cientistas (os arautos do saber – Wissen) e a turma das igrejas (fé; Glaube), nos informa Habermas (cf., p. 04). Além disso, assim me parece, Habermas está sugerindo, conforme se pode inferir da citação, que a secularização é um processo necessário e importante em uma sociedade tecnológica e cada vez mais sofisticada pelos conhecimentos advindos das descobertas e aplicações científicas. Mas é essa separação, entre o religioso e o secular, o problema no islamismo árabe do Médio Oriente: ele não existe e eles precisam conviver com uma perspectiva de vida que é, grosso modo, cristã porque advinda das regiões em que o cristianismo se desenvolveu. Há então, assim interpreto eu, uma dupla humilhação: a) o capitalismo é cristão; b) e ele impõe seu padrão técnico e científico de modo inexorável ao mundo todo, incluindo as populações islâmicas. Do ponto de vista religioso, para um islâmico, bem essa é outra vez a minha interpretação, isso pode ser visto como Cristo está vencendo Al’áh. Porque, como indica Habermas, as perspectivas do lado islâmico foram solapadas, seja, por um lado, pelo mercado sem limites e ávido pela exploração de toda sorte (“[...] uma globalização imposta por meio de mercados sem limites [...]” op. cit., p. 04), seja por uma visão cultural que relegou à religião um papel menor nas relações sociais. Para os islâmicos não sobrou a perspectiva de um mundo melhor. E esse é o problema religioso deles: eles não têm perspectivas. Habermas fala agora que os ocidentais são pós-seculares. Não explica em suas páginas iniciais o que seria “pós-secularização” ou “pós-secular”. Talvez porque trata desses assuntos em vários outros de seus textos recentes, supõe que os leitores saibam o sentido com que ele o emprega. “Pós-secular” seria então aceitar pacificamente o lugar que as ciências e o mercado capitalista relegam à fé e à religião? Estou supondo que sim. Habermas não o diz com letras garrafais, contudo, pelo teor de seu escrito, parece evidente que assim seja. Prestem atenção ao Habermas escreve na página 04. Ele afirma que se quisermos entender (“evitar uma guerra de culturas” p. 04) os conflitos gerados precisamos primeiro ver como a secularização ocorreu no Ocidente e ter consciência de que ela é um processo em movimento e inconcluso. Habermas fala aqui em “[...] choque desastrosamente silencioso de dois mundos que precisam desenvolver uma linguagem comum [...]” (op. cit., p. 04).

 

SEGUNDO ATO: SECULARIZAÇÃO NA SOCIEDADE PÓS-SECULAR

Habermas esclarece (ou quer esclarecer) que o termo SECULARIZAÇÃO significa (significava) uma coisa, porém na cultura ocidentalizada ele é empregado em um sentido diferente do original. Em sentido técnico, secularização seria tão somente a transferência dos bens eclesiásticos ao poder civil, chamado por ele “poder público popular (mundano; secular). Ou, como se lê no texto “[...] significado jurídico de uma transferência compulsória dos bens da Igreja para o poder público secular” (HABERMAS, 2013, p. 05). Entretanto, houve uma associação entre esse processo e as formas de vida advindas do desenvolvimento tecnológico que foi se impondo como padrão nas sociedades capitalistas. Habermas chama a esse emprego do termo secularização “apropriação ilícita”. Mas do que se trata, afinal? É que a forma de vida ocidental passou a ser considerada secularizada a partir do momento em que se entendeu que as autoridades eclesiásticas foram como que domesticadas pelo poder civil, pela visão de mundo laica, cientificista e tecnológica. Assim, secularização passou a ser visto como o modo de ser – o desenvolvimento cultural – da sociedade ocidental. Erroneamente emprega-se “secularização” como sinônimo para o modelo cultural das sociedades capitalistas ocidentais, para as sociedades liberais de mercado. Habermas explica que isso está errado. Secularizado é o Estado e não as pessoas. Visto desta forma, a secularização produz uma apropriação indébita, algo como “furtar bens ilegitimamente”, por parte daqueles que não estão nos países ocidentalizados ou mesmo para aqueles que são religiosos no mundo ocidental (p. 05). Nosso autor então esclarece que

As duas explicações cometerem o mesmo erro. Elas consideram a secularização um jogo de soma zero entre, de um lado, as forças produtivas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo e, de outro, os poderes conservadores da religião e da Igreja. Um só pode ganhar à custa do outro, e isto segundo as regras liberais de um jogo que favorece as forças motrizes da modernidade (HABERMAS, op. cit., p. 06).

O conflito fica, portanto, polarizado. De um lado está: a) secularização vista como modelo cultural em que os valores religiosos são substituídos, por valores racionais equivalentes (caso das sociedades ocidentais); b) uma visão em que as modernas visões de mundo são desacreditadas, rechaçadas, vistas como ilegítimas e perigosamente ameaçadora das formas tradicionais de vida (seria essa a visão que se encontra no mundo islâmico, conforme nosso autor). O que precisa ficar claro é que a “apropriação indébita” não é bem vista nem nos países islâmicos e nem pelas pessoas religiosas ocidentais. A diferença é que no Ocidente se criou uma compensação racional que evita conflitos diretos, o que não ocorreu na maioria dos países islâmicos do Oriente próximo.

No mundo secular ocidental haveria algo como um consenso – um senso comum (COMMONSENSE) – funcionaria com um terceiro partido que estabelecendo uma ligação entre ciência e religião, diz Habermas (p. 06). Mas no mundo fundamentalista essa terceira via (esse COMMOSENSE) não existe. Daí se segue que a visão é sempre ou a Técnica e a Ciência ou a Religião. Os campos se excluem mutuamente. Devemos ver que Habermas se refere a um panorama de mais de uma década. De lá pra cá, esse acirramento entre a visão secular ocidental e a perspectiva religiosa islâmica se tornou ainda mais dramática. Uma determinada ala transformou a religião em Partido Político que deve eliminar o cristianismo que, nessa perspectiva engloba três coisas: a secularização, o capitalismo e o cristianismo. Todos devem ser eliminados – seríamos todos ocidentais e todos também cristãos -, conforme essa perspectiva que Habermas atribuiu ao fundamentalismo islâmico recente. Ainda que essa visão seja falsa em relação ao Ocidente e, quem sabe, completamente simplista, Habermas dá a entender que grande parte do mundo islâmico vê o Ocidente dessa forma. Pode ser um erro pensar assim? Talvez. Mas os acontecimentos que se seguiram depois daquele 11 de setembro dão mostras de que o fundamentalismo islâmico (ou parte dele) vê os ocidentais como Grande Satã. O agravante é que hoje sabemos que são incentivados por seus governantes a ver o mundo ocidental como inimigo. Se essa já era a visão de Bin Laden, hoje está ainda mais exacerbada naquela insanidade atende pelo nome de Jihad islâmica e outros religiosos grupos “fundamentalistas” assemelhados e ideologicamente alinhados a esse “islamismo revolucionário e messiânico”, que está decapitando “os filhos de satã” e exibindo seus troféus nos meios mediáticos para causar sentimentos de impacto e medo nos ocidentais.

O COMMENSE, o senso comum, tem papel civilizador no Ocidente. Assim, chega-se à seguinte situação entre religião e saber no Estado Liberal do Ocidente:  a) a consciência religiosa tem de assimilar o encontro conflitivo (dissonante) causado pela presença de outras religiões; b) a consciência religiosa tem de adaptar-se à autoridade das ciências – o monopólio social do saber mundano e secular; c) as pessoas, mesmo religiosas, precisam adaptar-se ao Estado Laico, Constitucional e fundado em uma moral profana (conforme página 07).

Segundo Habermas, esse senso comum, essa terceira via, teria uma função reflexiva, que ele denomina REFLEXIONSSCHUB (impulso reflexivo). Conforme nosso autor, o monoteísmo, sem esse Reflexionsschub acabaria por desenvolver um potencial destrutivo em “sociedades impiedosamente modernizadas” (Id. Ibid., p. 07). Eis que surge já uma dificuldade enorme no texto de Habermas. Ele informa que o processo secularizante não está concluído unilateralmente. O impulso reflexivo dá novos passos cada vez que algum conflito irrompe. Choque de visões de mundo afloram. Há colisões de perspectivas, agudas dissonâncias, enfim, a vivência entre fé e saber é conflitiva mesmo para quem desenvolveu a terceira via da Reflexionsschub. Pluralismo religioso implica também pluralismo de visões de mundo. Esses pluralismos, assim me parece, é que causam tanto ódio e falta de perspectivas no mundo islâmico, ou melhor, em uma grande parte dele. Habermas faz uma afirmação que expressa seu ponto de vista sobre essa relação, cujo teor é o que segue:

 

No conflito entre as pretensões do saber e as pretensões da fé, o Estado, sendo neutro no que diz respeito às visões de mundo, não tem qualquer predisposição a tomar decisões políticas em favor desta ou daquela parte. A razão pluralizada do público constituído pelos cidadãos do Estado só segue uma dinâmica de secularização na medida em que força, NO RESULTADO (grifo no original), a um distanciamento igual em relação às tradições fortes e aos conteúdos impregnados de visões de mundo. Sem renunciar à sua autonomia, ela permanece contudo aberta, como que osmoticamente, para a possibilidade de aprender com AMBAS (grifo no original) as partes do conflito (HABERMAS, 2013, p. 08).

 

Fiquemos de olho em passagens assim! Devemos ver, no entanto, que o Estado permanece e administra a vida religiosa e a ciência também. Saber e Fé, convivem, mas o Estado Constitucional é soberano sobre as questões. Nenhuma delas pode se sobrepor ao Estado, a instância jurídica maior, que controla todo poder, seja ele secular (científico) ou religioso (eclesiástico).

 

TERCEIRO ATO: O ESCLARECIMENTO CIENTÍFICO DO SENSO COMUM

 

Nossa autocompreensão se modifica quando aprendemos algo novo sobre o mundo e sobre nós mesmos. Como exemplo, Habermas fala do fim do geocentrismo e das descobertas biológicas de Darwin. O fim do geocentrismo foi menos impactante do que a descoberta de que não termos um lugar privilegiado na história do mundo – conforme o geneticismo darwinista. A destruição da imagem biológica causada pela teoria de Darwin foi mais influente e conflitiva com o mundo religioso que a descoberta de que a Terra não é o centro do Universo (p. 09). A naturalização explicativa das ciências pode ser bem assimilada ou não. Há sempre variáveis em questão. A ciência não substitui a nossa autoimagem de nós sempre. Conflitos dessa ordem não tendem a acabar. Na nossa era vivemos outra vez na crença de que a ciência poderia objetivamente explicar o ser humano, e desvendar até mesmo o que ele pensa (ver páginas 09 – 12). Habermas levanta uma série de argumentos de vários filósofos que puseram a pensar objetivamente sobre o papel esclarecedor da ciência no mundo secularizado. Em uma nota de rodapé em alemão por exemplo (nota 6, página 12) de um Senhor chamado DETEL, aparece o título de seu livro em alemão sem tradução. Mas eu o traduzo: “Sapos e brejeiros têm pensamentos?” Problemas da semântica teleológica”. Achei interessante o título Sumpfmenschen (homens do brejo; brejeiros). Habermas ficou seus últimos anos estudando engenharia genética. Isso transparece na palestra. Mas o que ele conclui dessa situação? Cito outra vez. “A crença cientificista em uma ciência que possa um dia não apenas complementar, mas substituir a autocompreensão pessoal por uma autodescrição objetivante, não é ciência. É má filosofia” (HABERMAS, op. cit., p. 13). A própria ciência alimenta-se de fontes que outrora foram religiosas e hoje estão profanadas (p. 13-14). Mas há sempre imposição também. (Vejam páginas 15-16). Ali nosso autor aponta que o Estado exige dos crentes (religiosos) que traduzam para a linguagem secular o que reivindicam, antes de quererem obter o consenso da maioria das pessoas (cientistas e intelectuais de toda ordem). Por isso também que o Estado Liberal levanta suspeitas de que a secularização possa ser uma via de mão única (p. 15). A exigência do Estado Liberal faz com que católicos e protestantes, por exemplo, quando tratam de óvulos fecundados fora do corpo, traduzam as questões religiosas (éticas e teológicas) envolvidas para a linguagem do direito constitucional. Mas Habermas adverte que esse tipo de ação termina por incluir a religião na esfera pública injustamente (p. 16-17). 

Prezados estudantes, atentem para a questão sobre Immanuel Kant (1724-1804). Habermas trata da filosofia deste pensador como um exemplo de como se age na esfera pública e religiosa sem fazer com que um dos lados perca seu poder ou sua importância. Quando Habermas fala aqui em pós-metafísica ele nada mais faz do que assumir os pressupostos que Kant determinou. Em nenhum momento Habermas fala abertamente do problema central daquela filosofia. Mas deixe entrever que é a filosofia de Kant, grosso modo, que ele leva em consideração quando emprega o termo pós-metafísico. Mas o que KANT fez, afinal? Vou simplificar. Ele, na Crítica da Razão Pura e em outros textos também, defendeu que categorias religiosas como, por exemplo, Infinitude, Graça, Fé, Salvação não são pensáveis sob os critérios tradicionais da razão. Somente podem ser cridas – são, portanto, são problemas de fé. Assim, diz Habermas “Kant não queria deixar o dever o dever categórico desaparecer sob a onda do interesse autoesclarecido” (p. 17). Já Kant havia determinado qual é o papel da ciência e o que cabe à religião. Lembro-me que Maurice Merleau-Ponty chamava Kant de “pastor Kant”, exatamente por salvaguardar os conteúdos da fé e da religião diante do esclarecimento e das revoluções científicas do século XVII e XVIII. Habermas considera a atitude filosófica de Kant secularizante e ao mesmo tempo salvadora das verdades da religião (da fé). Estudantes, observem que nas páginas 17, 18 e 19, Habermas fala desse desencantamento (o termo desencantamento – Entzauberung, em alemão -, vem de Max Weber) que a secularização provocou, relegando, no mais das vezes, a fé e seu conteúdo a uma esfera menos importante que as ciências – o saber público oficial de nosso tempo.

 

QUARTO ATO: FILOSOFIA E RELIGIÃO EM LUTA PELA HERANÇA

 

O helenismo combinou (simbiose, p. 20) metafísica e religião. Conforme entende Habermas, Kant as separou. Isso trouxe consequências sérias para se entender a religião no mundo secularizado e no mundo religioso. Observem que Habermas agora não fala mais dos islâmicos. Não foca mais nas diferenças entre Ocidente e Médio Oriente como no início de sua palestra. Por quê? Ele não deixa claro. Quem sabe, seu interesse era tratar de fé e saber a partir dessa visão de Senso Comum (COMMENSE) como Terceira Via e as expectativas e acordos que isso suscitou. De Kant, Habermas salta a Hegel (Habermas é mesmo um filósofo da República Federal Alemã). Sua filosofia retrata a luta de Hegel para transformar a Revelação cristã em uma espécie da concretização do Espírito de sua Dialética descrita na Phänomenologie des Geistes. Texto, segundo Hegel mesmo, escrito para ninguém entender. Vocês sabem o que é a dialética de Hegel? Conhecem o historicismo daqueles pressupostos? Foi de lá Karl Marx extraiu a sua visão profética da história, segundo a qual o capitalismo entraria em colapso e em seu lugar surgiria o Socialismo/Comunismo. Voltando a Hegel, para Habermas, conforme entendi, Hegel quer traduzir conteúdos religiosos em linguagem filosófica (p. 21). Os herdeiros de Hegel, Marx, Feuerbach, Bloch, Benjamim entre outros, queriam transformar os conteúdos religiosos, agora profanados, em um esforço solidário que mudasse as relações de produção (Marx; Feuerbach) ou em ações políticas que visem à maior liberdade humana em termos científicos sem perder de vista as questões proféticas e messiânicas (Horkheimer; Benjamim; Bloch). Habermas discursa agora sobre a filosofia iluminista e suas consequências. Consequências essas em que a filosofia se pergunta também sobre a redenção em um mundo secularizado. E assim, Habermas apenas resume em poucas palavras o trabalho de vários autores, como Jacques Derrida e Martin Heidegger (p. 22). Apenas menciona alguns elementos das teorias desses pensadores para dizer que são mais lamentos que glórias sobre o mundo desencantado (Max Weber) e desessencializado (Heidegger). O queria seria a Salvação de Deus na história (Redenção), transformou-se em História do Ser (Heidegger). Estudantes, repito, Habermas sai da discussão inicial e adentra à situação da religião no mundo ocidental, onde a filosofia da religião ocupou o lugar explicativo da teologia e da fé.  Peço que tenham atenção com essas passagens. Elas são traiçoeiras; traiçoeiras porque escritas de modo complexo e sintético (reduzido) por Habermas. Em várias das passagens Habermas desfila o corolário de seu cabedal de saber, pressupondo que seus leitores saibam em pormenores os contornos mais íntimos de suas teorias. Habermas, a meu ver, muda o tom do enfoque e fala agora somente para especialistas. Essa é a minha visão do texto. Resta verificar que a razão, a razão pós-metafísica, sabe que não se pode traduzir racionalmente todos os conteúdos de fé sob pena de destruí-los de sentido e significado. A profanação começou exatamente quando a razão cientificista, iluminista e desencantadora quis traduzir a fé e a religião para uma linguagem da filosofia da religião e da ciência. A posição ocidental atual é mais modesta. Por isso a razão agora “[...] pode guardar distância da religião, portanto, sem fechar-se para as suas perspectivas” (HABERMAS, 2013, p. 23).

QUINTO ATO: O EXEMPLO DA ENGENHARIA GENÉTICA

Uma secularização não aniquiladora se realiza no modo da tradução” (op. cit., p. 24). O que significa uma frase enigmática como esta? Vejo Habermas como otimista. Para ele há uma integração ente fé e saber que não vejo por aqui no Brasil e, talvez, na América toda. Ele vê na sociedade pós-secular uma espécie de continuação daquilo que a razão fez outrora com o mito, ou seja, tentou traduzir (ou traduziu?) para a linguagem profana os conteúdos religiosos. Até aí, tudo bem. Mas na pós-secularização há mais modéstia. Parece que não se trata de Ou razão Ou fé, mas de Isso + Aquilo, ou seja, razão + conteúdos religiosos. Habermas, na parte final, utiliza uma argumentação aproximativa entre religião (fé) e saber (razão) em que os princípios humanistas parecem prevalecer. O fato do ser humano ter sido “criado à imagem de Deus”, não impede que se tenha boas compreensões sobre a moderna manipulação genética (que Habermas chama Engenharia Genética) e a necessidade de amor e respeito pelo ser humano. Assim, a fé, sem precisar aceitar integralmente os pressupostos da ciência, e a engenharia genética (ciência), por seu lado, sem precisar aceitar os conteúdos míticos e cosmológicos da fé, atêm-se a um ponto comum que é a valorização da vida e a melhora das condições de vida daquele que é “criado à imagem de Deus”. Em seu trecho final, Habermas alerta que Criação e Criatura são coisas distintas. Essa abertura não dogmática, permite um diálogo entre religião e saber. O ser humano não foi criado junto com Deus. O ser humano e a criação apareceram depois. Ora, essa perspectiva abre espaço à ciência e à razão explicativa, sem necessariamente destruir o mistério da linguagem religiosa. “Deus só permanece UM DEUS DE HOMENS LIVRES na medida em que não desfaçamos a diferença absoluta entre criador e criatura” (op. cit., p. 25). Assim, razão e saber, pelo menos no Ocidente, mantém uma relação em que cada um preserva o outro, mesmo guardando distância.

Acesso em 20.08.2015.