[Resenha] MOORE, Henrietta. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e diferença. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, n. 14, 2000: p.13-44.

Henrietta Moore está consciente que, apontar que a identidade de gênero é construída social e culturalmente para então ser vivida, não consiste em nenhuma novidade. No entanto, elucidar como essa construção se dá não é nada corriqueiro.

É indubitável que uma das inquietações mais perturbadoras que perpassam pelas ciências humanas é, a relação entre o indivíduo e a sociedade, ou melhor, até que ponto a sociedade molda o indivíduo e qual o grau de liberdade deste perante a cultura que o circunda.

Na França dos anos 1940, estava em voga o pensamento existencialista, liderado, sobretudo por Jean-Paul Sartre, o qual defende que "a existência precede e governa a essência." Essa definição funda a liberdade e a responsabilidade do homem, visto que esse existe sem que seu ser seja resultado da influência social e cultural na qual vive.

Anterior ao filósofo Sartre, um importante geógrafo alemão chamado Friedrich Ratzel vai centrar sua obra na preponderância do meio sobre o homem, sendo acusado pelo seu determinismo geográfico, que por sua vez, vai influenciar a obra do historiador frâncês ligado ao estruturalismo e contemporâneo de Sartre, Fernand Braudel. Assim como Ratzel, Braudel vai receber críticas referentes à importância que dá ao meio geográfico, social e cultural em detrimento da ação humana. A isto ele retruca ? "quando penso no indivíduo, sou sempre inclinado a vê-lo como prisioneiro de um destino sobre o qual pouco pode influir" (BRAUDEL, Fernand. 1949 p.1244).

A vertente estruturalista, inaugurada por Ferdinand Saussure na lingüística e muito em voga entre outras áreas das ciências humanas, mais ou menos entre a década de 1940 e 1960, se caracteriza, sobretudo, por supervalorizar as estruturas sociais, culturais e psicológicas em detrimento da liberdade individual, isto é, exatamente o oposto do que acreditava Sartre e o existencialismo.

Considerado um dos mais originais filósofos do século XX, representante do que entendemos hoje como pós-estruturalismo, Michel Foucault elabora teorias acerca poder, atentando para a idéia de que este está em todas as partes ? e não somente em uma instituição estatal, como muitos crêem, por exemplo. Defende que os indivíduos são permeados por relações de poder, sem ser possível fugir desses "micro-poderes". No entanto, e aí está uma importante contribuição de Foucault, o poder não somente reprime, mas também gera efeitos de verdade e saber, construindo verdades, práticas e subjetividades.

Concomitantemente a Foucault, e talvez em diálogo com sua obra, Michel De Certeau, em A invenção do cotidiano, pensa acerca das maneiras pelas quais as pessoas comuns (re)significam, subjetivam, alteram, subvertem coisas desde objetos utilitários, instituições, cultura de massa até planejamentos urbanos, leis e linguagens, estabelecendo relações de poder. Certeau critica que, em decorrência dessa amplidão de (re)apropriações, as ciências humanas enfocam os "ingredientes" que são jogados para as pessoas em detrimento de estudos que inscrevam como essas pessoas vão se apropriar e reelaborá-lo.

Na mesma esteira de Certeau está o historiador italiano Giovanni Levi, defendendo que "nenhum sistema normativo é de fato suficientemente estruturado para eliminar

Toda possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou interpretação das

Regras de "negociação."

Ainda neste mesmo campo, os sociólogos, britânico e francês respectivamente, Anthony Giddens e Pierre Bourdieu inscrevem a temática em questão no âmbito da educação. Giddens examina - embora reconheça que isso está gradualmente mudando - como a instituição educacional constroi e/ou reproduz determinadas práticas que visam caracterizar identidades de gênero vigentes na maioria das sociedades, como por exemplo, regulamentos que obrigam meninas a usarem vestidos ou saias na escola, e por conseqüência, sentar-se de determinada maneira, tornar-se inadequada a participar de algumas atividades esportivas mais ríspidas.

Ainda, como os livros da escola também ajudam a perpetuar imagens relacionadas ao gênero. Os livros de histórias, por exemplo, retratam meninos que demonstram iniciativa e autonomia, enquanto as meninas, quando aparecem, são mais "tranqüilas", cuidam dos seus irmãos ou simulam a maternidade e a vida doméstica através de bonecas e outros brinquedos. As histórias escritas especialmente para as meninas têm, em geral, como cenário, o ambiente doméstico e escolar, enquanto os contos de aventuras dos meninos são mais variados e amplos, com super-heróis que cometem façanhas e aventuram-se por lugares longínquos e fantásticos.

Bourdieu tem importantíssima contribuição, dentre outros campos, à sociologia da educação. Uma das aplicações que faz ao conceito de habitus concerne às formas de comportamentos sociais nascidos em processos de socialização, mediadas por a escola e outras instituições sociais, que visam dar continuidade a desigualdades econômica e social. Bourdieu, assim como Giddens, chama à atenção, por exemplo, para "currículos ocultos" como ferramentas para incutir valores e hábitos e atitudes, em geral, inscritos em uma hierarquia e a fim de perpetuá-la.

Bom, parece que essa problemática sobre o que conduz ações de resistência ou obediência vai continuar inquietando a muitos e por muito tempo. No entanto, é consensual que o caminho menos árduo será optando por respostas plurais, sempre tendo em vista o contexto e a imbricação dos diversos influenciadores, evitando privilegiar um em detrimento do outro, ou pior, isolá-lo na ilusão de que há ações autônomas. Outro problema, segundo Henrietta, seria deixar de levar em conta que, maneiras de resistência e obediência não são nulas de significado, e sim, expressões, representações de subjetividades.

Entretanto, o cerne da discussão é nas palavras de Moore, "a relação entre o gênero enquanto vivido e o gênero enquanto construído", isto é, como as pessoas subjetivam as tais construções.

O ponto de partida elementar é atentar para o fato de que, pelo menos unânime, a construção do feminino e masculino resulta em categorias opostas e incongruente cujos caracteres de um são justamente o contrário do outro.

Para vislumbrar tais caracteres de maneira mais clara, basta imaginar uma mulher, caminhando em uma rua durante a penumbra da noite e então surge um assaltante... Muito provavelmente ele vai pensar, -"presa fácil, não terei esforço algum para roubá-la". Isto porque a imagem feminina está comumente associada, de modo muito arraigado, à sensibilidade, fraqueza e submissão. Enquanto o homem emite justamente o contrário e isto se constata se, ao invés da mulher, o ladrão deparar-se a um homem. Acredita-se que ele hesitaria, faria uma prévia avaliação do porte físico e dos gestos e daí decidiria se este seria sua presa ou não. Esta é a visão que está geralmente impregnada ao senso-comum, de bandidos e mocinho (a)s, jovens e idosos.

No entanto, para reconhecer a multiplicidade de gêneros decorrentes de apriorísticas construções, deve-se trazer aos domínios outras categorias de análise que toquem o aspecto social e cultural, tais como a raça, a etnia e a religião. Esse tipo de correlação para com a análise dos gêneros, na maioria das vezes, fica de fora dos discursos do senso-comum, como se pensassem um bolo a partir de sua aparência homogênea esquecendo-se que no seu preparo há numerosos e diversos ingredientes que perpassam desde o recheio até a cobertura.

Entretanto, tais discursos promovidos pelo senso-comum se disseminam com sucesso. Isto ocorre menos por obedecerem aos anseios das pessoas do que por motivo de marcá-las, defini-las, forjando, por conseguinte, uma identidade que se legitima fundamentada na diferença. E não somente diferença entre o masculino e feminino, mais também diferenças entre indivíduos, pois embora os discursos empreendam-se de modo que simplificam os gêneros apenas em duas categorias - masculino e feminino -, a apropriação desse discurso, em geral, será tomada de maneira singular por cada um.

Levando em conta ? como já foi citado ? as imbricações que inscrevem os gêneros a uma raça, religião, etnia e classe, temos então uma pluralidade muito ampla de gêneros. Mas isto ainda é mais complexo, pois necessariamente deve-se ter em vista também a historicidade e o contexto que circunda e preenche esse amalgamado de situações.

Mais complexo e problemático ? senão impossível ? é tentar encadear como os indivíduos tomam para si representações de gênero bem como concebem representação dos outros, reproduzindo o que lhes é imposto.

Ao mencionar "reprodução", é importante ter alguns cuidados, pois é claramente incongruente apontar e reiterar as inúmeras subjetividades que são produzidas e decorrência da imposição dessas categorias, e ao mesmo tempo, referir-se à reprodução sem fazer ressalva à acepção corriqueira da palavra que remete à copiar, imitar, descrever, repetir.

Uma interessante questão é posta por Moore é "O que é exatamente que as categorias e discursos dominantes determinam? A que nível operam? Alguém realmente acredita identificar-se de todo coração com as categorias dominantes de gênero de sua própria sociedade?" (p.18)

Duas curiosas situações exemplificam ? mas, longe de responder ? essas problemáticas tão instigantes. Uma se refere a outro tipo de construção que é a da nacionalidade - neste caso, brasileira -. Ao assistir a um jogo de futebol de sua aclamada seleção, ali no início, quando é proferido o início nacional, o que faz com que grande parte dos torcedores se arrepie e alguns até mesmo chorem? O quê - e como é encadeado ? para resultar nesse sentimento de pertencimento a um espaço?

Uma situação prática mais pertinente pode ser, por exemplo, um passeio pelo shopping, perambulando por vitrines... O que faz com que uma mulher estagne em frente a uma loja de roupas dita feminina e aprecie aquele manequim vestido de tal modo que representada o ser feminino. Será que ela usa uma roupa desconfortável e espalhafatosa, um calçado com salto alto e fino que a faz tropeçar por pura identificação? Será que ela passa horas em um cabeleireiro, como uma máquina quente remexendo em seu cabelo por puro prazer?

E quando criança será que ela resistiu a andar de sandália, a vestir roupas e simplesmente cortar os cabelos, como muitas crianças fazem em seus primeiros anos de vida? São questões, a primeira vista, banais e indignas de serem mencionadas, porém revelam a ponta do iceberg dessa problemática toda colocada, no referido trecho acima, pela autora.

Outra questão bem colocada é "[...] qualquer teoria social deve dar conta tanto da reprodução das categorias e discursos dominantes quanto ocorrem casos de não reprodução, resistência e mudança." (p.18)

Isto é, dado que cada sociedade tem sua dinâmica de diversidade, tradição e inovação, não se deve perder de vista que, uma tradição pode ser poderosa em mascarar uma inovação e esta, haja vista coexistirem em mesmas sociedades a preservação da tradição material e imaterial e simultaneamente, o culto ao mais novo e atualizado, pode ocorrer também de uma inovação mascarar uma tradição. Daí, trabalhar com recortes temporais amplos levando em conta só as permanências, ofuscaria significativas rupturas e mudanças que se dá desde o decorrer de uma mesma geração até séculos.

No tocante à resistência, com a qual a teoria social tem também se ocupado, por exemplo, o caso do ator-culto como um indivíduo consciente de que a realidade é, antes de ser vivida, construída. Teóricos como Giddens, enquadram essas formas de resistência em três categorias que são: a inconsciente, prática e a discursiva. Moore aponta uma confusão na definição dessas categorias, pois, o inconsciente e a prática estão intimamente vinculados, já que, comumente, a prática é desenvolvida através de processos mecânicos de repetição condicionantes do inconsciente. A partir dessas inquietações é que Bourdieu formulou seu conceito de hábitus, citado acima.

No tocante ao corpo, embora algumas práticas sejam aparentemente conscientes, entende-se que é difícil manipular o corpo a partir, somente, da mente. Com o campo mental dá-se a mesma questão. Ou seja, é possível a mente consciente ser isolada do inconsciente? É mais ou menos consensual que são campos imbricados. Outra questão curiosa é: qual a natureza do inconsciente? Será que ele consiste, indiferente, a todos e assim constitui parte da essência humana?

Segundo Henrietta, é claro que não, porque o inconsciente é permeado pela experiência prática e discursiva, portanto influencia a ação dos sujeitos e logo, imbrica-se ao restante dos campos prático e discursivo.

Nessa perspectiva, conclui-se que, mesmo quando um sujeito age de maneira resistente para com as reproduções de categorias de gênero, raça e religião, por exemplo, deve-se ter em vista que este ator culto age de tal modo condicionado a um contexto. Portanto, sua ação de resistência não deve ser considerada como algo genial e sublime.

Delimitar o construído e vivenciado é algo complicado, haja vista que o inconsciente, o social e cultural que forjam a identidade estão imbricados. Entretanto, é coerente retificar e ratificar que esse processo de constituição da identidade de gênero não se dá de modo passivo, como um mero reflexo que se reproduz indissociável. Ao invés disso, produz subjetividades, e estas, por sua vez, não se isolam de seus condicionantes. Aliás, quase como um bumerangue que retorna para o mesmo lugar que foi atirado, as subjetividades incidem, influencia seus condicionantes.

Embora estas considerações sejam atualmente vigentes, até parecendo óbvia, para os estudos antropológicos vinculados ao pós?estruturalismo, e em outras áreas que inscrevem a problemática dos gêneros ? foi um longo trajeto até chegar a isso. Há décadas atrás, a temática dos gêneros não estimulava muita curiosidade e questões visto que se imaginava que os (dois) gêneros tinha sua raízes no fundamento biológico e que era desenvolvimento em processos de socialização, reproduzindo quase mecanicamente o que era aprendido.

Certamente uma das contribuições mais válidas da corrente pós-estruturalista é o reconhecimento do indivíduo e sua pluralidade. Diferente do que pressupunha o estruturalismo, as estruturas não preponderam e aprisionam as pessoas, e estas, não consistem por uma essência universal, como acreditavam os estruturalistas, retomando o pensamento iluminista.

Não vem ao caso fazer juízo de valor apontando uma ou outra corrente como a melhor e mais coerente. Todavia, é caro assinalar que um dos problemas presentes no estruturalismo, dentre outros, era deixar de levar em conta que as estruturas sociais e culturais não são fenômenos naturais (e mesmo nesse caso o homem consegue intervir) e sim construções do próprio homem. Logo, deve-se ter em vista que o indivíduo é passível de agir sobre as estruturas ao mesmo tempo em que é condicionado por ela. Grosso modo, tal qual uma relação de negociação permeada por reciprocidade.