UNIVERSIDADE FEDERAL DE BUENOS AIRES – UBA

CURSO DE DOUTORADO INTENSIVO EM DIREITO – JAN/2013

MAESTRA: DRA. MARISA HERRERA –

TRADUTOR: ANTÔNIO DOMINGOS ARAÚJO CUNHA

           FAMÍLIA E POLÍTICAS PÚBLICAS[1] (Texto original em Espanhol)

 

            Todo o edifício social – tanto no plano microsocial da divisão do trabalho como nas políticas sociais - está baseado na existência e no funcionamento da organização doméstica e a família. Frente ao diagnóstico contemporâneo que expressa à crise da família m, se levantam vozes que demandam intervenções públicas para salvar-la desta situação de crise.  Geralmente, estas vozes, são as da tradição e da religião, com a carga de policiamento moral da vida privada, que reclamam políticas para fortalecer a família.  Como pressuposto ideológico fundamental desta linha de pensamento, singularmente admite apenas um modelo possível que deve ser fortalecido, ou seja, a baseada na formada por heterossexuais, monogâmica e seus filhos, com a lógica de funcionamento tradicional. Os demais modelos de família e convivência são perversões, desvios, indicadores justamente do estado de crise.

            Obviamente não é esta a postura que aceitaremos aqui para investigar alguns temas e idéias vinculadas às políticas públicas. Ou melhor, resulta em pensar necessariamente nas intervenções públicas da família em outra perspectiva, que consiste em promover a democracia e a igualdade. Para tanto, é preciso tomar como ponto de partida, um diagnóstico das tensões e problemas sociais associados às famílias, com o propósito de delinear políticas públicas corretivas, compensadoras e transformadoras. Uma primeira consideração é clara e já está suficientemente analisada: A necessidade de se aplicar a equidade entre gêneros como um dos critérios regedores das políticas públicas, com o objetivo de reverter situações injustas e onerosas para as mulheres. A tarefa não é das mais fáceis já que as políticas de compensação afirmativa de desigualdades de gênero podem ter efeitos perversos. Sem uma reestruturação das relações econômicas, estes tipos de políticas tendem a ser assistencialistas. Ainda que se tente promover a igualdade, embora reforcem a diferença e promovam a estigmatização da população (de mulheres) que recebem esta ajuda. 

            Em segundo plano, está a defesa dos direitos humanos que implica necessariamente na intervenção no interior das famílias, nesta vida privada, aonde com mais freqüência do desejável, estes direitos são violados. A inclusão do âmbito familiar no mundo regido por princípios de direito que são aceitos na comunidade internacional, manifestada tanto na condenação da violência doméstica, como no reconhecimento dos direitos dos filhos, outorga a justificação e a legitimidade para esta intervenção protetora e preventiva. O desafio consiste em manter o frágil equilíbrio que supõe a necessidade de proteger a privacidade e a intimidade, explicando os limites da intervenção pública.

            Em terceiro plano, se apresenta a relação entre a família e as políticas de equidade e igualdade mais amplas e de largo prazo. A família é uma instituição formadora de futuras gerações. Neste sentido é uma instância mediadora entre a estrutura social num momento histórico dado e o futuro desta estrutura social. A partir desta função reprodutora da sociedade, a instituição familiar tende a transmitir e reforçar padrões de desigualdade existentes. Este assumir uma direção mais equitativa requer uma ação afirmativa do Estado e outras instâncias de ação coletiva.

            A afirmação precedente exige uma explicação. Pensemos na posição de bons pais e boas mães de classe média. O que queremos para nossos filhos (as)? O melhor! Trataremos de dar-lhes a melhor educação e preparação para o mundo futuro, trataremos que sua saúde seja ótima, prevenindo e antecipando possíveis mal-estares e tentaremos transmitir nosso capital social, cultural, e econômico. Nossas sociedades e famílias estão organizadas para facilitar este processo. As propriedades e riquezas se transmitem por herança, os climas educacionais familiares têm um efeito altamente significativo sobre os níveis educacionais das crianças e jovens, as redes de relações sociais são acumuladas e transmitidas.  Ou seja, existe uma forte tendência dirigida a que a instituição familiar perpetue os privilégios de quem os tem.

            Em outro extremo, quando há carências e riscos, a instituição familiar tende a reproduzir o circulo vicioso da pobreza, da marginalidade e da violência. Os danos podem ser irreversíveis e acumulados. Sabe-se que a desnutrição infantil produz efeitos irreversíveis sobre a saúde física e do desempenho mental das pessoas. Existem dados que indicam que os homens onde há violência doméstica tendem a pertencer a lugares onde a violência era praticada como forma de vida, e também foram vitimas de violência durante a infância.  Também se começa a pensar que nos casos m que há gravidez muito cedo – os de meninas de10 a14 anos – são na maioria dos casos produto de violação intrafamiliares. E que as adolescentes convertidas em mães muito precocemente, são filhas de mulheres que também começaram precocemente suas vidas reprodutivas. A conclusão é muito simples e direta: para promover a equidade social e diminuir as desigualdades sociais, se requere a intervenção ativa de instituições extrafamiliares compensadoras e transformadoras.  Por uma perspectiva intergeracional, a ampliação das oportunidades que podem gerar maior equidade – oportunidades educativas, laborais, de qualidade de vida, em termos mais amplos – necessita de ações afirmativas, fundamentalmente por parte do Estado, através de políticas fiscais e sociais.

            Neste plano, solicitar a intervenção pública supõe orientar a ação e os sentidos: por um lado a aplicação das garantias públicas relacionadas com os direitos de cidadania social, no qual implica uma política igualitária e universalista.  Por outro lado, ações dirigidas a detenção anterior de populações de risco. Tomemos alguns exemplos da larga lista de problemas sociais, cuja incidência é muito notória nos grupos de adolescentes e de jovens; má nutrição, HIV, gravidez de adolescentes, quando falamos de sexualidade, abandono escolar e desemprego juvenil, menores de rua, e violência doméstica, uniões, violência e drogadição. Isto permitirá explorar o campo de interação que pode manifestar-se entre as políticas do Estado e da família.

            Habitualmente se pensa em todos estes fenômenos como em condutas problema, separadas que devem ser atacadas uma a uma. Uma perspectiva alternativa parte de recuperar a unidade da experiência pessoal do jovem, incorporando a noção de dano que afeta o projeto de vida dos jovens e tende a ser cumulativo. Este dano se refere a graves dificuldades que impede que os indivíduos desempenhem suas potencialidades, como pessoa, em distintos âmbitos da vida social (trabalho, família cidadania). Estas dificuldades afetam tanto o presente como o futuro pessoal, restringindo suas capacidades e seus horizontes de oportunidades. O dano é antes de qualquer coisa, um processo de deterioração pessoal, mas tem uma origem propriamente social, ligado a permanência do individuo num entorno conflitivo e carente. Sua manifestação extrema é a autodestruição, nas drogas e HIV).

            O risco juvenil existe em todas as classes sociais, já que o conflito e a carência - material e afetiva - não são nenhum privilégio.  No entanto, a pobreza aumenta a vulnerabilidade, ao contar com menos recursos e menor proteção diante destes riscos. Daí, a maior probabilidade de acumular danos. Para encarar esta problemática, tem-se que partir do pressuposto de que família é boa ou má, sendo necessário contar com instrumentos para detectar os contextos sociais de proteção e prevenção de danos. O ambiente familiar pode atuar em amplas direções segundo o caso: quando se transmitem práticas e normas de cuidado e responsabilidade sobre si e sobre outros; quando o que se transmite é a carência e a vulnerabilidade.

            Neste sentido, a família sempre forma parte de um contexto social mais amplo, que inclui as demais instituições nas quais o/a jovem está inserido/a ação pública, estatal e social deveria compensar as deficiências familiares na capacidade de socialização e reforçar as capacidades existentes. Daí a importância de desenhar políticas sociais integradas neste campo, não dirigida exclusivamente a um sintoma (digamos, a drogadição ou dependência química), ou a uma instituição (familiar, por exemplo).

            Esta reflexão, formulada em um torno normativo do que deveria ser feito permite investigar um dilema importante neste campo. Quem é o foco da ação? A quem se ajuda ou se fortalece neste tipo de intervenção?  Está claro que colocamos o problema como tal, ou a jovem que o enfrenta, a partir de seus direitos humanos básicos, e de suas responsabilidades sociais[2].  O objetivo consiste na proteção e fortalecimento das capacidades individuais, contextualizadas no marco de seus vínculos de sociabilidade. A família pode ser, pois, parte de uma estratégia protetiva, como não ser, se é nela que se produz e reproduz o dano e a vulnerabilidade.

            Em síntese, os desafios que se investigam à intervenção pública são múltiplos: em primeiro lugar ; buscar a democracia na família , reconhecendo os direitos de seus membros e os princípios de igualdade que deveriam governar seu funcionamento, o qual implica levar a sério, a equidade e as relações entre gêneros e gerações dentro da família, com reconhecimento dos direitos das crianças, dos princípios de não discriminação das mulheres, da violência doméstica como violação dos direitos humanos (princípios expostos e aceitos no plano dos documentos internacionais da Constituição Argentina). NO plano mais global, é preciso apontar à reversão das tendências à crescente desigualdade social, com políticas compensadoras e transformadoras, dos mecanismos de transmissão intergerativa desta desigualdade.

Conclusões

   

            A intenção deste trabalho foi discutir os aportes que, a partir de diversas perspectivas, contribuem a problematizar e repensar a temática da família e a organização domestica. Não pretendíamos formular um esquema teórico coerente e integrado, senão, resgatar e colocar em evidência, mecanismos e processos de organização social básicos, da forma como se manifestam no cotidiano. Se tentou investigar questões e perguntas que poderiam guiar investigações futuras, assim como reflexão individual e grupal sobre o lugar das experiências familiares pessoais no contexto social de nossas vidas.

            Por tudo que analisamos, fica claro que estamos falando de uma realidade cotidiana multidimensional e complexa. Vista por dentro, a dinâmica intradoméstica cotidiana constitui um aspecto central da vida familiar, e requer uma consideração explícita, tanto no que se refere aos patrões de divisão do trabalho como as interações e decisões vinculadas às promessas de recompensa, do consumo, e do pressuposto (de dinheiro, de tempo, e de respeito). Na vida cotidiana, as decisões referidas e os gastos (o que se vai comprar e para quem) fazem parte de um complexo que se discute ao mesmo tempo, a divisão do trabalho (quem faz o que e se responsabiliza pelo que) e os critérios de autoridade e controle. Tudo isso ocorre num âmbito em que também estão em jogo os amores, as paixões, e os afetos, assim como as obrigações e deveres mútuos. Neste complexo conjunto de relações é possível distinguir analiticamente, duas linhas básicas de conflitos e alianças intradomésticas – a geração e o gênero -. A democratização da família implica em trocas fundamentais das relações de autoridade e controle ancoradas nestas distinções.

            Colocamos especial ênfase na interpretação da família e na dinâmica intradoméstica e no mundo social e político mais amplo. A linha de demarcação bastante variável, entre o privado e o público é um ponto de partida para indagar a presença do social na vida familiar. A família se constitui e se refina em função de suas interrelações com as demais instituições sociais; nunca foi e nem poderá ser um espaço alheio ou isolado das relações sociais mais amplas. Neste sentido, a família e a domesticidade não constituem um mundo privado. Mas sim, o mundo privado, e intimo de cada sujeito social se constrói a partir das relações sociais dentro das quais se desenvolve sua via cotidiana.

            Finalmente, as transformações da família ao longo do séc. XX foram muito profundas:

- A gradual eliminação do rol como unidade produtiva, devido às transformações na unidade produtiva

- Os processos de crescente individuação e autonomia dos jovens e mulheres, que debilitam o poder patriarcal, provocando maior instabilidade temporal da estrutura familiar tradicional, e maior espaço para a expressão de oposições individuais alternativas.

- A separação entre sexualidade e procriação, que leva a uma diversidade de formas de expressão da sexualidade fora do contexto familiar e a transformações nos padrões de formação de famílias.

Tudo isso aponta para uma instituição que vai perdendo funções, que vai deixando de ser uma instituição total. A partir da perspectiva do individuo e de seu curso de vida, muito mais que falar sobre família, o que permanece é uma série de vínculos familiares: vínculos entre mães, pais, e filhos ou filhas, vínculos entre irmãos e outros vínculos de parentesco mais afastados. Nestes vínculos anexos existem obrigações e direitos, embora relativamente limitados. O restante entra no campo do eleito e do opcional.

            Esta relativa fragilidade e limitação dos vínculos familiares não está acompanhada por um individualismo isolado, autosuficiente. Bem se sabe que para seu bem estar físico, psicológico e social, o indivíduo requer sua integração em redes sociais, comunitárias, redes que contém e canalizam a afetividade e nas que se despoje da capacidade e da responsabilidade sobre o outro, com redes que conferem identidade e sentido. Se em tempos passados esta função estava depositada fundamentalmente em um tipo quase único de família, sem alternativas e opções, na atualidade as transformações dos vínculos familiares indicam a necessidade de promover e apoiar a gestação de espaços múltiplos de sociabilidade em distintos tipos e formas de famílias, assim como em organizações intermediárias alternativas e complementares, que promovam o reconhecimento mútuo e a participação democrática.



[1] JELIN, Elizabeth. Pan y afectos. La transformación de las familias. Fondo de Cultura  Económica de Argentina S.A., 1998. Cap. Familia y Políticas Públicas,  p.129 a 138.

[2] Cecília P. Grosman, “Los Derechos Del Niño en la Familia”, en: Catalina H. Wainerman (ed.), Vivir en familia