Exploradores e explorados através de uma análise do filme "Quanto vale ou é por quilo?"

Por Midiane Venceslau dos Santos

O modelo de desenvolvimento adotado pela elite brasileira contribuiu para dificultar as condições de vida das classes menos favorecidas da sociedade brasileira, mascarando situações que reforçam a desigualdade em nosso país. Nesse contexto, o filme "Quanto vale ou é por quilo?" vem apresentar questões fundamentais para aqueles que desejam refletir mais seriamente sobre desigualdade, direitos sociais, principalmente ao apresentar um discurso solidário que oculta interesses que nada tem a ver com a melhora da qualidade de vida de uma parcela da população, parcela esta que vive à margem da sociedade, norteada pelo modelo de vida desenvolvido pelo capitalismo selvagem.

"Quanto vale ou é por quilo?" é um filme brasileiro dirigido por Sérgio Bianchi que tem como enredo uma analogia do comércio de escravos com a realidade de exploração do marketing social vivenciado na sociedade brasileira. Na participação da sociedade civil a favor de demandas não atendidas pelo Estado, as ONG?s se apresentam no filme como empresas, incorporando um discurso típico e objetivando o lucro; a responsabilidade social é exaltada como marketing dessa nova indústria que gerencia a miséria e os miseráveis. Como diz Romão:
...ao longo da nossa história, o que se observa é a hipertrofia dos executivos e o elevado grau de personalização do poder governamental, contagiando todas as instituições, agências, órgãos e entidades e públicas, nos quais o titular do cargo mais importante reproduz a rigidez da hierarquização à qual se submete, cassando a voz e a decisão dos demais atores com os quais administra, transformando-os em executores de suas sábias ordens e em beneficiado o público-alvo dos serviços por ele prestados. (2001, p.26)

Para Berger, na tradição de exclusão da parcela dos marginalizados, a omissão destes nos meios de comunicação se caracteriza como mais um exemplo de exclusão histórica e social; aparecem nos meios de comunicação quando se refere a casos de chacinas e massacres que contribui apenas para disseminar o sentimento de solidariedade, e quando ganham oportunidades nos noticiários são apresentados e representados através de estereótipos simplórios.

É impossível ficar diante de tal realidade vivenciada no filme sem choques e constrangimentos, principalmente quando iguala a violência registrada na lógica do sistema escravista no Brasil, ao que hoje é produzido com os excluídos e marginalizados na nossa sociedade, causando sentimentos que colaboram para tirar algumas pessoas de um mundo ilusório norteado de slogans, a favor da solidariedade e da responsabilidade social.

O processo de construção de cidadania como afirmação e reconhecimento de direitos é - em destaque a sociedade brasileira - um processo de transformação de práticas arraigadas na sociedade como um todo. Um formato mais igualitário de relações sociais em todos os níveis implica o reconhecimento do outro como sujeito portador de interesses válidos e de direitos legítimos (TELLES, 1994). Constatamos que o Estado tem desempenhado a função de propriedade particular das oligarquias (não esquecendo também que tal postura é histórica), absorvendo os recursos econômicos em proveito próprio, caracterizando assim como um estado paternalista, clientelista, que usa os bens públicos para beneficiar certos grupos privilegiados, através de barganhas políticas, bem como transformando certos órgãos em cabide de emprego, segundo interesses próprios.

Podemos perceber em todo o drama que envolve o filme "Quanto vale ou é por quilo?" a inércia social que se encontra o país, onde são representadas as mazelas e contradições de uma sociedade em crise, a relação entre a elite econômica e os excluídos do subúrbio, os desmandos de uma sociedade alienada, de corrupção, violência, desigualdades, e nesse panorama a participação e inserção dos marginalizados, principalmente dos negros, na sociedade brasileira nunca foi condizente com a contribuição histórica dos mesmos ao longo dos anos. Aos negros no Brasil sempre restaram os papeis secundários, quer na distribuição como nas oportunidades e privilégios, consolidando assim sua exclusão em todas as esferas sociais, atrofiando a sua cidadania.

O sistema ainda continua servindo aos interesses de classes privilegiadas e dominantes. Não é à toa que os meios de comunicação não ampliam o debate e não se preocupam em ouvir as vozes da sociedade civil, que sustentam que as reformas mínimas que ocorrem (o "pão e circo" da modernidade pode-se assim dizer) é insuficiente para atender às reais necessidades dos cidadãos. Mais do que a possibilidade de tais reformas não darem conta de reivindicações históricas, corre-se o risco de criar ainda mais barreiras para uma real reforma social que elimine com o patriarcado, o patrimonialismo, as oligarquias, o racismo, o nepotismo, o clientelismo, e a corrupção em nosso país.

Num país em que para muitos a única participação política consiste na troca clientelista de favores, o exercício da cidadania implica uma gigantesca luta política na transformação das estruturas sociais e na criação de novos condutos da manifestação da vontade do povo, sobretudo em forma de movimentos mais ágeis.

Referência

BERGER, Christa. Dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais ? a esperança dos excluídos. Disponível em: http://www.versoereverso.unisinos.br/index.php?e=8&s=9&a=65.

BIANCHI, Sérgio. Quanto vale ou é por quilo. Estúdio Versátil, 2005

ROMÃO, José Eustáquio. Gestão democrática do ensino público: condição da reforma educacional brasileira. In: GADOTTI, Moacir. Autonomia da escola: princípios e propostas. São Paulo: Cortez, 2001

TELLES, Vera da Silva. Sociedade civil, direitos e espaços públicos. São Paulo: Instituto Polis, 1994