Expedição científica redescobre a atividade dos mangabeiros na região do Jalapão
Publicado em 30 de novembro de 2009 por Ivan Brscan
Josué Francisco da Silva Junior*
Raquel Fernandes de Araújo Rodrigues
Isso mesmo, a planta que dá a frutinha que faz a delícia dos moradores do litoral do Nordeste também ocorre no cerrado, mas não é lá tão aproveitada. A razão é que o seu uso não é exatamente para a finalidade que se pensa, como veremos mais na frente.
Isso mesmo, a planta que dá a frutinha que faz a delícia dos moradores do litoral do Nordeste também ocorre no cerrado, mas não é lá tão aproveitada. A razão é que o seu uso não é exatamente para a finalidade que se pensa, como veremos mais na frente.
Para descobrir isso, subimos serras e chapadas, cruzamos rios,
atravessamos cerrados, cerradões e campinas, e enfrentamos estradas de
areia que parecia estarmos andando em dunas. Topamos com magníficas
mangabeiras eretas no platô da Serra do Espírito Santo, retorcidas na
Chapada das Mangabeiras, isoladas no Capão e bosques delas em Novo
Acordo, um dos quatro municípios esmiuçados (os outros foram Mateiros,
Ponte Alta do Tocantins e São Félix do Jalapão). O saldo disso? Muitas
populações naturais mapeadas, várias entrevistas, inúmeras surpresas
(às vezes boas, como as diversas unidades de conservação criadas na
região, outras nem tanto, como as gigantescas lavouras de soja e milho
cercando o Jalapão) e uma (re)descoberta...
Já sabíamos que o lobo-guará adora mangaba, que ela gosta de sol e de
solo fraco (areia e pedra), que as populações tradicionais usam o seu
látex para remédio e que um dia esse “leite” foi usado (isso já desde o
final do século XIX) para a fabricação de um tipo de borracha exportado
durante e após as duas guerras mundiais. O que não estava no roteiro
(ou até estava, mas encarávamos como um prêmio) foi o encontro com os
lendários “mangabeiros”, que trouxe à baila inúmeras histórias sobre o
período conhecido como “Ciclo da Borracha de Mangabeira”, em cujo
apogeu floresceram cidades como Formosa do Rio Preto, Santa Rita de
Cássia, Barreiras e São Desidério (BA); Januária (MG); Corrente (PI);
Porto Nacional (TO) e muitas outras. Os “mangabeiros” eram a população
(normalmente de homens, mas algumas mulheres da vanguarda da época
também praticavam) que vivia do extrativismo do látex da planta nos
cerrados de mangabal (com o “l” final bem pronunciado no melhor sotaque
do Jalapão).
O “garimpo da mangaba”, como era conhecida a exploração das mangabeiras
nativas para extração do látex, foi durante décadas a mais importante
atividade econômica daqueles “gerais” e era tão lucrativa que, como se
viu, tinha até o nome de “garimpo”. Foi fonte de sustento para inúmeras
famílias e fez nascer povoações nos lugares mais remotos. “Mangabar”
era o verbo que designava o trabalho duro, mas prazeroso, como afirmou
Seu Domingos Ribeiro, filho, neto e ele mesmo “mangabeiro”. Maravilhosa
mesmo foi a sua descrição sobre a arrumação de um “mangabeiro” ― “Eita
arrumação feia!”, disse com sua graça peculiar e simpatia típica dos
“jalapoeiros”. Colocavam o cofo (bolsa de palha de buriti) nas costas,
carregado com a “lega” e o “trisco” (instrumentos para “riscar” a
planta), copos de flandres, cabaças e panelas. Vestiam-se de roupas
velhas, “alpercata de três pontos” e “carocha” (capa de folha de
buriti).
Uma equipe boquiaberta (era assim que ficávamos a cada história que
ouvíamos) e emocionada via surgir um passado registrado somente na
memória de alguns senhorinhos, hoje com mais de 80 anos. Pegamos o
túnel do tempo para uma viagem às décadas de 1940 e 1950, quando nos
deparamos com tropeiros, saindo antes do sol nascer, conduzindo
jumentos e burros e carregando mantimentos para passar semanas no
cerrado, “riscando” os pés de mangaba para extração do “leite” que
escorria até os copos de flandres. Bom mesmo era quando o entardecer
chegava, pois era hora de voltar ao acampamento feito de folha de
buriti, naturalmente. O trabalho continuava, mas agora era regado a uma
cachacinha. O látex era despejado numa panela de ferro e levado ao fogo
para coalhar e virar uma grande bola de borracha. Depois era só pisar
até virar uma “manta”.
Com o tempo e o fim da Segunda Guerra, a atividade entrou em decadência
¯ borrachas de seringueira de excelente qualidade e maior rendimento
tomaram o lugar da de mangabeira. Alguns “jalapoeiros” ainda
confeccionam maravilhosas bolas de brinquedo a partir do “leite”, mas
“mangabar” virou um verbo que não se conjuga mais e os “mangabeiros”
ficaram apenas na saudade de pessoas como Seu Tomé, Seu Tonico, Seu
Olavo e, claro, Seu Domingos.
* Os autores são, respectivamente, pesquisador e analista da
Embrapa Tabuleiros Costeiros (Aracaju, SE). Além deles, participaram da
expedição os pesquisadores Dalva Maria da Mota, da Embrapa Amazônia
Oriental, e Heribert Schmitz, da UFPA, ambas em Belém, PA.