EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS*

         Mittyz Fabíola Carneiro Rodrigues**

 

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Do Contrato; 2.1. Conceituação; 2.2. Princípios; 2.3 Extinção; 3. Contrato da Administração; 4. Cláusula Exceptio Non Adimpleti Contractus; 4.1.Caracterização; 4.1.2 Possibilidades de Aplicação; 5. Exceção do Contrato não Cumprido e a  Cláusula Solve et Repete; 6. Considerações Finais.

 

 

RESUMO

Neste trabalho, buscar-se-á fazer uma breve abordagem sucinta acerca dos contratos, sua conceituação, princípios, bem como as suas formas de extinção, enfatizando-se a possibilidade de aplicação ou não da cláusula “exceptio non adimpleti contractus” (exceção do contrato não cumprido) em contratos que versem sobre prestação de serviços públicos.

 

1. Introdução

Atualmente, não se pode imaginar o mundo sem o contrato, uma vez que superado o estágio primitivo da barbárie, onde as apropriações dos bens da vida se davam pela força ou violência implantou-se a convivência pacífica, fazendo-se o contrato presente a partir daí. Com isso, houve o crescimento da civilização e o aumento das relações negociais, mostrando-se, o contrato, um importante instrumento no sentido de harmonizar vontades não coincidentes, passando a ser, portanto, um valioso aliado para o desenvolvimento econômico dos povos.

Antes de adentrarmos no assunto objeto deste trabalho, faz-se necessária a análise de algumas questões objetivando-se contextualizar os comentários tecidos acerca da cláusula de exceção do contrato não cumprido.

 

2. DO CONTRATO

2.1. Conceituação

Contrato, do latim “contractu”, é trato com. É a combinação de interesses de pessoas sobre determinada coisa, é mútuo consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto.

Pode-se também definir contrato, no aspecto gramatical, como sendo um vínculo jurídico entre dois ou mais sujeitos de direito correspondido pela vontade, consoante com a ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de criar, modificar ou extinguir direitos.

Vários são os autores a conceituar contrato. Para Caio Mário da Silva Pereira, (Pereira, 1990), entende que "contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar ou modificar direitos". [1]

Já no dizer de Orlando Gomes “o contrato é uma espécie de negócio jurídico que se distingue, na formação, por exigir a presença pelo menos de duas partes. Contrato é, portanto, negócio jurídico bilateral, ou plurilateral.”[2]

No entanto, independentemente do conceito de contrato utilizado, necessariamente há de conter os princípios basilares desse instituto,    que são: a autonomia da vontade, a força obrigatória do contrato e a relatividade. Onde se pode depreender que o efeito do contrato é criar obrigações entre as partes contratantes, visando dar segurança do seu cumprimento e buscando vincular a esta obrigação apenas às partes contratantes.

 

2.2 Princípios

Todos os contratos devem conter certos princípios, onde estes, segundo Miguel Reale, são entendidos como sendo verdades fundamentais que servem de suporte ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos[3].

Dentre os princípios existentes, alguns deles podem ser considerados como sendo imprescindíveis à existência do contrato, como o princípio da autonomia da vontade que está relacionado com a liberdade que os cidadãos possuem para regular a matéria e a extensão de suas convenções. Segundo Humberto Teodoro Junior essa liberdade de contratar “pode ser vista sob três aspectos: pela faculdade de contratar ou não contratar, pela liberdade de escolha da pessoa com quem contratar e pela liberdade de fixar o conteúdo do contrato”.[4]

Porém, essa autonomia da vontade deve está submetida às regras impostas pela lei de forma que seus fins coincidam com o interesse geral, ou pelo menos não o contradigam. Dessa forma, esse princípio deve estar de acordo com as leis de ordem pública e com os bons costumes. A primeira limitação tem a finalidade de preservar o interesse público sobre o privado e a segunda faz referência às condições de moralidade.

O princípio da força obrigatória dos contratos, que pode ser entendido como sendo uma conseqüência natural do princípio da autonomia da vontade, onde o que foi contratado passa a valer como lei entre as partes. Assim, conclui-se que a partir do momento que as vontades convertem-se em contrato, este passa a existir no mundo jurídico.

O princípio da relatividade do contrato, que consagra a idéia de que os efeitos do contrato, que nada mais é do que gerar obrigações alcançam apenas as partes contratantes.

Por fim, têm-se a função social do contrato, onde o Estado intervém no campo contratual, qualificando seu conteúdo visando garantir os direitos de segunda geração, os quais estão diretamente ligados ao respeito à dignidade do contratante, mas desde que este não venha a violar o interesse da coletividade.  

 

2.3. Extinção

Antes de se abordar a cláusula de exceção do contrato não cumprido, tema desse artigo científico, faz-se necessário uma breve análise acerca das formas de extinção contratual, tendo em vista aquela ser um instituto de grande aplicabilidade prática, devido a sua importância jurisprudencial, quando se trata de por fim a um contrato de modo diferente aos que serão elencados neste item .

Todo contrato possui um ciclo de vida, nasce, desenvolve-se e “morre”(extingue-se)e, essa morte ou extinção pode-se dar por diversas formas, uma vez que existem variadas previsões legais acerca do assunto.

Têm-se a extinção natural, como uma causa esperada pelas partes, pois verificando-se a ocorrência de eventos previamente acordados, quando da celebração do contrato, e com isso havendo o cumprimento do que foi pactuado considera-se o mesmo extinto. Mas, existem também determinadas situações fáticas que somente se verificam após a celebração do contrato e que trazem como consequência jurídica a extinção do mesmo, ainda que essas causas sejam anteriores ou mesmo contemporâneas à formação do contrato.

Pode-se então relacionar as formas de extinção dos contratos como sendo:

● Natural (cumprimento do que foi pactuado)

● Posterior (causas anteriores ou contemporâneas e causas posteriores à celebração)

- Causas anteriores ou contemporâneas à celebração (nulidade, cláusula resolutória, direito de arrependimento, redibição)

- Causa posterior à celebração (resilição, resolução, rescisão, morte do contratante, caso fortuito ou força maior)

Ademais, dentre as diversas formas de extinção contratual, existem importantes questões correlatas que hão de ser consideradas, como a exceção do contrato não cumprido com a responsabilidade civil dela decorrente.

 

3. CONTRATOS DA ADMINISTRAÇÃO

Nem todos os contratos pactuados pela Administração Pública são considerados como sendo um Contrato Administrativo, uma vez que estes quando celebrados pela Administração, são contratos “da Administração”, mas não obrigatoriamente Contratos Administrativos, tendo em vista que aquela pode vir a celebrar tanto contratos públicos quanto privados, diferenciando-se estes pela condição assumida pela Administração, pois no primeiro caso a participação desta na relação jurídica se dá com preponderância de poder, há uma supremacia dela em relação à outra parte envolvida, enquanto que nos contratos particulares, regidos pelo direito civil, celebrados pela administração pública, esta assume posição de igualdade para com os demais envolvidos nesta relação jurídica.

 

4. CLÁUSULA EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS 

Essa cláusula é uma defesa contratual que surgiu e se difundiu no âmbito do Direito Privado, sendo inclusive positivada no Código Civil em seu art. 476. Refere-se a um instrumento, através do qual, um dos pólos do contrato se escusa de adimplir sua obrigação enquanto o outro não executar a que lhe cabe. Somente pode ser aplicada nos chamados contratos bilaterais, sinalagmáticos ou de prestações correlatas, onde se tem ao mesmo tempo produção de prestações para todos os contratantes pela natureza recíproca das obrigações. Sua natureza jurídica fundamenta-se no ato da vontade das partes, onde estas buscam basear-se na equidade, no justo equilíbrio dos contratantes no cumprimento das prestações.

Para Silvio Rodrigues, essa cláusula pode ser invocada, “qualquer que seja a causa geradora do inadimplemento do contrato. Quer a recusa de cumprimento se funde na má vontade do contratante, quer na força maior ou no caso fortuito, em ambas as hipóteses a outra parte pode aduzir a exceção. Porque, tendo uma prestação sua causa na outra, deixando aquela de ser cumprida, seja qual for o motivo, cessa de exigir a causa de cumprimento da segunda”[5].

 

4.1.1 Caracterização

No entendimento de Pablo Stolze, para que essa cláusula possa ser caracterizada, é necessária a existência de alguns elementos: “que o contrato seja bilateral, onde há uma dependência recíproca das obrigações; que haja a demanda de uma das partes pelo cumprimento do pactuado, onde há uma exigência de que se cumpra o que foi acordado, visto que se houver inércia das partes não há que se falar em defesa; e por fim que haja o prévio descumprimento da prestação pela parte demandante, sendo este justamente o fator autorizatório para que se valha o excipiente dessa cláusula, uma vez que tendo havido o cumprimento da prestação, da maneira pactuada, a demanda pelo seu cumprimento constitui o regular exercício de um direito potestativo.” [6]  

4.1.2 Possibilidades de Aplicação

No campo do Direito privado é comum a utilização desta cláusula, no entanto, parte da doutrina, a mais conservadora, não admitia o uso da mesma frente à Administração Pública, alegando que com isso estar-se-ia contrariando princípios basilares como o da continuidade do serviço público e o da supremacia do interesse público sobre o particular, onde a este não era dada tal prerrogativa de interromper a execução do contrato, ficando esta a cargo apenas da Administração, tendo o contratado que requerer administrativamente ou judicialmente a rescisão contratual. 

No entanto, devido à evolução do Direito, tanto a doutrina quanto a jurisprudência passaram a ser mais flexíveis em relação a tal proibição, uma vez que se observou que em muitos casos o Ente público, por estar amparado pela utilização dessa cláusula, agia de maneira arbitrária, locupletando-se de forma indevida, fato condenável num Estado Democrático de Direito. Pode-se ter ainda, o advento da Lei 8.666/93 como uma evidência de possibilidade de utilização desta cláusula como defesa, o que pode ser verificado em seu Art. 78, incs. XIV a XVI.[7]

Como bem nos explica Marçal Justen Filho que, na hipótese do inciso XIV, do art. 78 da Lei 8666/93, devido às “imprevistas desmobilizações e mobilizações”, a que deu causa a Administração, é facultado ao contratante suspender a execução do contrato até que seja normalizada a situação. Já no caso de prestação continuada, em que o ente público incorre em atraso superior a 90 dias, é aceita expressamente a suspensão da execução pelo contratado (art. 78, inc. XV, Lei 8666/93), relevando se houve imposição de ônus insuportável. E finalmente quanto ao inc. XVI, do artigo citado, Marçal comenta que “[...] o particular não pode ser constrangido a executar sua prestação quando ela dependa, causalmente, de providência prévia a cargo da Administração. Aliás a permanência desse estado de coisas autoriza, inclusive, a rescisão do contrato [...].”[8]

Então, sempre que a Administração deixar de cumprir determinação legal, no que tange ao adimplemento de suas obrigações no contrato administrativo, deve-se considerar a recusa do particular em executar a prestação que lhe cabe. Pois, a inadimplência do Poder Público deve ser analisada com a devida parcimônia, não podendo aquela ser de tal forma relevante a acarretar prejuízos insuportáveis ao particular, de modo a desestabilizá-lo.

 

5. "EXCEÇÃO DO CONTRATO NAO CUMPRIDO" E A CLÁUSULA "SOLVE ET REPETE"

A cláusula "solve et repete", significa "pague e depois reclame", pode-se estabelecê-la num contrato, com o objetivo de tornar a exigibilidade de sua prestação ainda que haja qualquer intenção contrária do devedor, só podendo este efetuar reclamação acerca desta cláusula em outra ação, visando-se dessa forma o pagamento ao credor sem qualquer outra oposição.

Essa cláusula age em sentido contrário a exceção do contrato não cumprido, pois a exceção age visando paralisar a ação do autor condicionando o pagamento da outra prestação devida ao réu, sendo que a "solve et repete" paralisa qualquer oposição do réu, que nessas condições não terá outra saída a não ser o de solver o débito, com a possibilidade de que em outra ação possa reaver o que indevidamente pagou.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, conclui-se que deve ser expurgada do direito brasileiro a idéia da impossibilidade de aplicação da exceptio non adimpleti contractus em face da Administração Pública, não se pode mais aceitar tal retrocesso, nem arbitrariedades camufladas sob a desculpa de manutenção de princípios, como o da continuidade do serviço público e do interesse coletivo, uma vez que também é de interesse público garantir aos particulares confiança em contratar com o Poder Público, este é o causador e maior prejudicado pela insegurança crescente da iniciativa privada em contratá-lo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BÁSICA

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, vol. IV: contratos, tomo I: teoria geral/ Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 4ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008.

PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1990.

 

COMPLEMENTAR

 

GOMES, Orlando. Contratos. Forense. 12ª ed. Rio de Janeiro: [s.ed]. 1990.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética. 2005.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

* Artigo apresentado ao curso de Direito, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, para obtenção de 2ª nota da disciplina Contratos Cíveis.  

 

* * Aluna do 4º período, do Curso de Direito noturno, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

 

 

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 8ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1990, v. III, nº 185, p. 9.

[2] GOMES, Orlando. Contratos. Forense. 12ª ed. Rio de Janeiro: [s.ed]. 1990.

 

[3] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 54;

[4] TEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: Aide ed., 1993, p. 16.

 

[5] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil -Dos Contratos e Declarações Unilaterais de Vontade, 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 3, p. 77.

[6] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, vol. IV: contratos, tomo I: teoria geral/ Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 4ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 258.

[7] Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:

(...)

XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja normalizada a situação;

XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;

XVI - a não liberação, por parte da Administração, de área, local ou objeto para execução de obra, serviço ou fornecimento, nos prazos contratuais, bem como das fontes de materiais naturais especificadas no projeto;

 

[8] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética. 2005. p. 599.