"? só o escrito me faz existir nomeando-me".

Jacques Derrida
Moisés Peixoto*
Introdução


Evangélico é um termo, quer estando no singular ou no plural, no feminino ou no masculino está se tornando muito popular e até familiar hoje em dia. Quando se quer pôr todas as diferentes confissões cristãs, com exceção da Igreja Católica Apostólica Romana, num saco só como se todas fosse absolutamente a mesma coisa ou, com uma palavra só, querer abranger todas essas igrejas, o termo mais usado pelas pessoas ou meios de comunicação é "evangélico". Muitos são os lugares onde ele aparece citado. É nas inúmeras reportagens de revistas semanais, nos jornais de grande ou de pequena circulação, nos telejornais e nas pesquisas acadêmicas. Entre estas, a título de exemplo, existe a do sociólogo Ricardo Mariano que, genericamente chega a dizer que: "o termo evangélico, na América Latina, recobre o campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestantes européias do século XVI. Designa tanto as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) como as pentecostais (Congregação Cristã no Brasil, Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção, Universal do Reino de Deus etc.)" (1999:10). O fato é que o vocábulo "evangélico" é hoje de domínio público. Não há quem não o tenha ouvido ou lido por aí, mesmo que, se perguntados, não saibam defini-la com precisão. A proposta deste artigo é o de dialogar com alguns autores acerca disso que denominam de "evangélicos"; dialogando principalmente com alguns fragmentos do texto: "A força do Senhor" que foi publicada na revista Veja, edição 1758, ano 35- nº26 de 03 de julho de 2002 da editora Abril, da página 88 a 95.



1. Evangélicos, uma invenção recente.



Evangélico é uma invenção recente, moderna, cuja relação com o mítico cristianismo do primeiro século, não passa de uma ficção oriunda dessa outra ficção. Quando um evangélico se reporta aos "primeiros cristãos" da história como estivessem falando de se mesmo, como se eles e aqueles fossem termos sinônimos, na prática, está apenas fazendo um discurso político e reproduzindo a ideologia do seu grupo religioso, que precisa de reconhecimento e penetração social. É de fundamental importância para ele e seus pares esta conformidade com um "passado", que acreditam ser "real" e ter "acontecido de verdade". Isso cria uma sensação de pertencimento a um lugar da unidade [que é este "passado"], possibilitando uma identidade. A este respeito, podemos observar o exemplo de uma dessas igrejas chamadas também de evangélicas: a batista, que frente às demais, acredita ser a única que tem, de fato, sua origem em Jesus Cristo e na Igreja neotestamentária. Segundo a tese batista: "os discípulos de Jesus Cristo, que a partir dos Séculos XVII e XVIII passaram a ser conhecidos como Batistas, têm as mesmas doutrinas e práticas das igrejas cristãs do 1º século de nossa era" (Pereira, 1987:11). Como em qualquer comunidade, tribo ou sociedade, as igrejas construíram uma existência de si para si mesmo. Todavia, é preciso compreender que para todas elas, sua afinidade com Jesus Cristo e a Igreja Primitiva é indubitável. Por isso utilizam muito bem o discurso da História e a tem como sua mais fiel aliada. É pela mesma razão ["histórica"] que muitas igrejas acreditam serem herdeiras diretas de Jesus Cristo ou herdeiras da Reforma Protestante, teses estas defendidas por estudiosos como Clara Mafra, em Os evangélicos (2001:07), Ricardo Mariano, em Neopentecostais (1999:10), Ruben Alves, em Protestantismo e Religião (1982a) e Dogmatismo e Tolerância (1982b) entre outros, como forma de explicar suas eternas e convenientes divergências com o Catolicismo Romano e demais confissões cristãs.

Sem se distanciar muito desta perspectiva acima, mas procurando propor uma distinção dentro do próprio termo evangélico no que tange a tese da origem, das práticas e dos pensamentos é que, num artigo de 1992 intitulado: "Quem é evangélico no Brasil", o professor Antônio Gouvêia Mendonça, professor do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP); Doutor em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (USP), nos afirma que:



"Este termo surge na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII e se referia a uma das alas da igreja anglicana inglesa influenciadas pelo movimento metodista, chamada de ?evangélicos?, a outra tinha uma tendência católica romana. Essa ala se transformou em movimento e se espalhou pelo o resto do mundo ocidental, através das Alianças Evangélicas, principalmente por causa da franqueza do mundo protestante fragmentado diante da coesão e do avanço do catolicismo romano no século XIX e pelos efeitos do Iluminismo do século anterior. O objetivo desta Aliança era formar uma linha única para enfrentar o Catolicismo. [...] Evangélicos devem ou deveriam ser somente os adeptos dessa tradição ou corrente que se originou no século XVIII e que se espalhou através das Alianças e que se caracterizam pelo espírito conservador como ainda ocorre na Europa e nos Estados Unidos. Evangelicals significa conservador e adversário de tudo quanto cheire a liberalismo, modernismo e ecumenismo. Identifica uma ala muito forte do protestantismo atual e está presente em todas as denominações, abrangendo, às vezes, denominações inteiras. No Brasil este movimento chegou em São Paulo, em julho de 1903, com a fundação da Aliança Evangélica Brasileira, formada por pessoas de várias denominações protestantes, que fecharam um acordo em torno de pontos doutrinários comuns entre todas elas. Esta Aliança se transformou, pouco tempo depois na Confederação Evangélica do Brasil, que fracassou na tentativa de representar todos os cristãos não-católicos brasileiros. Porque, o ?espírito evangélico? só abrigava indivíduos e nada tinha a ver com as barreiras denominacionalistas. [...] Mas apesar de todas as diferenças entre as denominações e entre seus membros, estava consagrado o nome de evangélico para todos os cristãos não católicos no Brasil"(1992:04)".





Partindo do pressuposto que, "a história é o falso lugar da unidade, dos acontecimentos, do tempo: esse é o lugar do texto" (Caldas, 1999:35b). O texto acima citado, apenas está nos propondo apenas uma outra leitura histórica, um outro "falso lugar de unidade" textual desse termo, um outro modelo explicativo do que poderia vir a ser isto que chamam de evangélico no Brasil. A. G. Mendonça, apesar de partir de uma outra origem, não consegue fugir da velha explicação evolucionista da história, que vê o evangélico como um protestante abrasileirado. O evangélico, segundo podemos concluir do seu raciocínio, é o resultado ou a conseqüência de algo feito anteriormente, e não algo novo e diferente. Ele não consegue singularizar e sua tentativa de historicização é pífia, é medíocre, como medíocres são os que não conseguem se libertar das amarras da história, ir além ou transcender a este discurso fundador. A história para tais pensadores é o chão por onde pode caminhar, analisar e explicar os seus discursos e os dos outros. Ele, como os chamados evangélicos não percebem que:

"A História jamais serviu para formar a consciência; ou mesmo como exemplo. Nada pode dizer ao presente, por sua singularidade inescapável. Sempre serviu aos poderes, às mentalidades reacionárias, às imagens fascistas de mundo. Desde o começo, a história esconde sua essência de singularidade desencadeadas, de falta de ligações em todas as instâncias, da falta de repetibilidade (mundo do objeto); e desde o começo luta para estabelecer exemplo, modelo, paradigma, lição, estrutura, ordem, existência. A História é uma mentira institucionalizada e instrumentalizada das lógicas ocidentais do objeto dirigido ao ?mundo inteiro?" (1999:35a).



Para A. G. Mendonça e a maioria dos seus colegas intelectuais, os evangélicos no Brasil são filhos do movimento evangelical sob o ponto de vista da teologia e anticatólico sob o aspecto da estratégia. Assim, sua identidade é forjada principalmente, mas não exclusivamente, a partir do contraste, da diferenciação com os católicos romanos brasileiros. O evangélico ou o crente então, traz consigo um compromisso transparente de ser o oposto, a antítese do católico romano e dos outros credos religiosos, mesmo sendo de tradição cristã. "Era necessário identificar os recém-convertidos com um nome novo e esse foi ? crente em nosso Senhor Jesus Cristo?, ou simplesmente crente". (1992:05) Sem o outro, isto é, os católicos romanos, os evangélicos não teriam se constituído.

Diferentes denominações religiosas cristãs utilizam a palavra evangélica como uma marca, um pré-nome ou sobre-nome. É com ela que a maioria, quase que absoluta, das Igrejas se identificam e se distinguem entre si. Até as pessoas cristãs não-católicas identificam-se assim também individualmente, do mesmo modo que suas igrejas. São os próprios evangélicos que se identificam desta forma, com este nome. É assim que são chamados e conhecidos, apesar destas igrejas, que assim se denominam, terem experiências diferentes com a fé. Diferenças essas que nos faz pensar se evangélico é um nome ou um apelido. Esta é uma palavra inventada por eles e não pelos os outros [os seus adversários]. Eles é que espalharam e tornaram popular esta denominação. Os católicos que, segundo boa parte da literatura sobre os "evangélicos", classificavam os convertidos a recém chegada religião do exterior de "protestantes", "bode", "bíblia", "missa-seca" ou "crentes" e outros termos considerados pejorativos, refere-se aos membros dessa religião cristã pela mesma maneira como eles se autodenominam e costumam se identificar: de evangélicos.

Já quanto o nome "protestante", nome puramente europeu, não vingou. Ele foi pouco utilizado e caiu logo em desuso; foram os integrantes do clero católico que tomaram emprestado este termo estrangeiro importado da Europa, foram eles que fizeram o uso dela nos primeiros tempos, quando não havia uma classificação autóctone mais apropriada na ocasião. Era necessário inicialmente identificar a religião concorrente, era preciso dar-lhes um nome, assim nasceu, passou a existir o nome "protestantes" ou "protestantismo". Pouco tempo após, passou a ser empregado o termo "irmãos separados" e depois apareceu o termo recente: evangélico. Um novo personagem foi assim construído, uma ficcionalidade foi substituída por outra aqui no Brasil. "Evangélico" é o apelido mais freqüente, mais massificado e comum a todos os cristãos, mas não aplicado aos católicos brasileiros.



2. O evangélico da Revista Veja: uma análise.



Além da banalização do termo "evangélico" pelos próprios evangélicos no Brasil por todos os meios disponibilizados por eles, desde programas de rádio e de televisão, até todos os tipos de textos escritos a respeito, que circulam na sociedade através dos jornais, revistas especializadas, home pages, bate-papos eletrônicos, internet e etc. Apesar também da existência do "evangélico dos intelectuais", presente em muitos livros publicados, não há em nenhum desses lugares ou escritos, quem saiba precisar com certeza o que seria isto: evangélico. Diante também do fato da existência inúmeras igrejas com esta denominação e práticas diferentes, muitas até antagônicas entre si, que confunde qualquer pessoa, fica difícil saber se estamos lidando com um substantivo ou com um adjetivo, com uma singularidade ou uma pluralidade, com "ovinos" ou "ovíparos", com extraterrestres ou seres celestiais. Tratar a palavra evangélica, esta amálgama ilusória, esta abstração genérica, como se fosse um termo preciso e consensual é naturalizar construções sociais, é classificar o inclassificável, é pluralizar singularidades, generalizar individualidades é, por fim, tentar dar uma ordem ao caos. Um dos autores aqui citado, o Antônio Gouvêia Mendonça expressa muito bem essa dificuldade:

"No Brasil, o movimento evangélico entrou e ficou para fazer confusão. O Brasil, mais do que qualquer outro país da América Latina tem sido o destino de todos os sistemas de idéias religiosas alinhavadas noutro lugar. Aqui, descosturam-se, misturam-se e dão origem a esse caos protestante que dificulta, para não dizer impossibilita, qualquer tentativa de identificação ou classificação". (1992:04)



É por tudo isso que "evangélico" é algo inexistente em si mesmo; só existe quando é nomeado, escrito ou falado, conforme afirmava Derrida: "É, portanto simultaneamente verdade que as coisas chegam à existência e perdem a existência ao serem nomeadas. [...] Aliás, não basta ser escrito, é preciso escrever para ter um nome. É preciso chamar-se" (2002:62). É assim que o evangélico passa a existir ou deixa de existir. Este, como qualquer outro nome, é constituído com os outros, em dialogo, como também os seus inúmeros significados e sentidos. Nesse diálogo podemos confirmar ou contestar o que se é dito e os "não ditos" e fazer fluir o que a escritura faz existir. É nessa perspectiva que agora farei uma leitura de algumas citações ordenadas numericamente, extraídas da reportagem da supracitada Revista.

Eis então as citações com as minhas respectivas leituras:



1- "O país mais católico do mundo está ficando cada vez mais evangélico".[p.89]

* Nem todos que se tornam evangélicos, necessariamente, foram do Catolicismo Romano. Integram-se as igrejas denominadas evangélicas, pessoas das mais diversas origens sociais, religiosas, políticas e econômicas. Não há distinção de pessoas que entram e sai, embora, o processo de adesão [pois não há conversão] ocorra de diferentes formas em cada uma delas, com diferentes pessoas. Nem todos se sujeitam as propagandas proselitista que tais igrejas fazem, nem todas elas conseguem persuadir e recrutar novos "crentes", embora exista também quem se integre, conscientemente e por livre escolha pessoal, a essas comunidades religiosas tendo vindo ou não de uma outra experiência religiosa anterior. Por isso, ser de alguma igreja apelidada de evangélica, simplesmente, não significa ter sido antes de uma igreja católica. Pode ter vindo antes uma outra igreja evangélica ou até de uma comunidade mulçumana.

* Ficar cada vez mais evangélico não significa absolutamente ficar menos católico, pode-se ser tão católico quanto evangélico, afinal, ambas as religiões são cristãs. Afinal, a catolicidade não é pretensão exclusiva de uma única igreja ou denominação eclesiástica, mas de todas elas. É vocação do cristianismo querer ser universal, querer que só exista um só homem, uma humanidade, um planeta, um só deus, uma só terra para todos e um só céu e inferno. O que varia, não é para mudar, mas para dizer o mesmo, fazer o mesmo.

* Não há nenhuma diferença essencial entre um evangélico e um católico romano, só diferenças formais: ambas compartilham do mesmo mito fundador, Jesus Cristo e da sua Escritura, a Bíblia. Ver diferenças na essência de ambas manifestações religiosa é justificar a necessidade da existência dessas instituições e a continuidade do poder nelas existentes; é ajudar a muita gente a continuar: trabalhando de graça nessas Igrejas [os leigos ou "o rebanho"], a viver as custas da exploração alheia [a classe dirigente sacerdotal, o clero, os pastores, missionários e etc...] e ajudar o Estado na reprodução das relações de poder e de classe na sociedade.



2- "O resultado do censo demográfico no quesito religião,?, mostra que mais de 15% dos brasileiros ? um rebanho de 26 milhões de pessoas ? são protestantes". [p.89]

* A reportagem não distingue protestantes de evangélicos. Ela fundiu os termos, ou melhor, ela com-fundiu, fez uma con-fusão entre as duas palavras. É como se fossem a mesma coisa. É por isto, pelo tratamento ambíguo dado a essas palavras que podemos relativizar a conclusão do IBGE. A Revista Veja nos induz a entender: que ambos os termos são sinônimos, quando não são. ? O termo protestantismo caiu em desuso. Só é usado pelos pesquisadores do IBGE, que só vêem diferenças, fissuras entre protestantes e católicos e não dentro do próprio catolicismo e protestantismo. Não obstante, há quem veja nesses dois termos uma profunda ruptura conceitual e histórica ou uma ligação, como se o termo em voga hoje fosse resultado de uma evolução do termo anteriormente usado. No primeiro caso, por exemplo, a doutrina evangélica da conversão difere das doutrinas dos reformadores europeus e norte-americanos, como afirma Clara Mafra, em seu livro: Os evangélicos. Ela chega a dizer que: "a lógica, a conversionista dos protestantes que aqui chegaram ao Brasil sofreu suas transformações" (2001:18). Porém, o que chama a atenção mesmo nessa pesquisa do IBGE realizada no ano 2000, não é o crescimento do número de "protestantes" no Brasil, mas o crescimento do número dos que dizem ter fé, mas rejeitam ligações com instituições religiosas. São os que podemos chamar de "religiosos sem religião". Ora isso reflete o que? Que a nossa sociedade não está sendo protestantizada de fato, mas se tornando pluralizada.



3- "As conseqüências desse crescimento são muitas. Esse fenômeno pode levar a alterar o perfil das famílias brasileiras". [p.89]

* Os perfis das famílias formados por evangélicos não diferem daquelas formadas por não evangélicos. Na há nada de incomum em relação às demais famílias brasileiras, sua única peculiaridade seria o credo religioso. Este, por si só não determina nada, não torna uma família melhor que a outra e, muito menos, um cidadão melhor que outro. Esta constatação é feita também por Robinson Cavalcanti, bispo anglicano do Recife, quando reflete acerca do exercício da cidadania por parte dos cristãos no Brasil e chega a afirmar que: "? o aumento do número dos cristãos não tem diminuído o número dos nossos problemas" (2000:60). O crescimento das igrejas evangélicas não altera o perfil das famílias brasileiras, pelo o contrário, conserva-o. Pois, não parte da missão dessas comunidades revolucionar nada, mas conservar. As igrejas cristãs, sociologicamente falando, são as guardiãs da tradição numa sociedade; o seu trabalho é essencialmente ideológico no que diz respeito à conservação de uma dada mentalidade. Por isto, não promove mudanças, mas sim, são asujeitadas por elas. Até porque, a mentalidade é aquilo que muda mais lentamente.



4- "Os evangélicos, mesmo entre os menos escolarizados, têm menor número de filhos que seus vizinhos de outras religiões".[p.89]

* "Ter menos filhos" é uma opção determinada pelas condições econômica dos pais e não pelo seu credo religioso, que aliais, sugere o contrário: que cresça e se multiplique conforme orienta a Bíblia.



5- "Três quartos das mulheres evangélicas casadas usam contraceptivos".[p.89]

*desde quando o uso de contraceptivo é uma conseqüência da opção religiosa de uma pessoa? Não seria o caso de pensarmos que isto é fruto de uma melhora das propagandas educacionais veiculada pela televisão, rádio ou jornais e da crescente escolarização por parte da população brasileira nestes últimos tempos? O uso de contraceptivos industrializados é algo recente em nossa sociedade e ainda há muitas pessoas que resistem ao seu uso, justamente por motivos religiosos, por acreditarem na doutrina que diz, que o ato sexual deve ser praticado, exclusivamente, para a procriação. Além do mais, a história registra o uso de contraceptivos naturais pelas mulheres que não queriam ou não podiam ter filhos, antes, durante e depois do advento da pílula anticoncepcional, independente da filiação religiosa que ela esteja. Há, mulheres evangélicas não casadas também que usam contraceptivos. A reportagem ainda conserva a visão estilizada e pietista que os próprios evangélicos tem de se mesmo [a do purismo sexual].



6- "Quase 90% dos adeptos de igrejas evangélicas acreditam que a moral sexual do homem e da mulher deve ser igual, e 65% deles preferem casar-se com algum irmão de fé".[p.89]

* Não existe uma uniformidade moral, doutrinária, ética ou de espécie alguma, entre as igrejas que se vestem com este rótulo: "evangélica". A variação é grande e confusa, apesar das tentativas fúteis de se plasmar uma compreensão mútua. Não há uma ordem discursiva geral que caracterize e distinga os evangélicos; os diversos interesses em jogo impedem qualquer ecumenismo. Assim, aquilo que chamam de moral sexual é teoricamente compreendido de maneira particular por cada uma dessas igrejas, cada qual tem seu próprio discurso fundamentado numa interpretação particular da bíblia. Mas, na prática, o discurso é outro. E isso é visível quando observamos o dia a dia dos membros dessas referidas igrejas e os inúmeros relatos registrados pela imprensa. Muitos praticam relações sexuais antes do casamento, adulteram, exercitam livremente suas fantasias sexuais, tem relações homossexuais, assistem show de streep tease e etc, como as demais pessoas da sociedade sendo elas religiosas ou não. O discurso "moral" é "biblicamente" ideologizado e tem função apenas política: existe para controlar, adestrar e reprimir os membros dessas igrejas e existe, também, para diferenciar o grupo dos que estão de fora dele. A sexualidade humana, sempre foi o objeto preferido do controle eclesial desde a antiguidade e jamais deixará de ser, mesmo que a prática sempre arranje um meio de burlar esses controles.



7- "Ao contrário do que acontece com os católicos brasileiros, cuja maior parte nasce dentro da religião, mas na maioria dos casos não a segue completamente, os evangélicos levam a prática da fé a sério. Para começar, muitos evangélicos são convertidos ? ou seja, escolheram aderir a uma religião por contra própria. Por isso, tendem a se tornar militante da causa, envolvendo-se nos cultos e nas atividades comunitárias desenvolvidas em torno dos templos que freqüentam". [p.89]

* Não há quem leve qualquer fé a sério totalmente, porque não há quem esteja disposto a pagar todos os seus custos. O levar a sério não implica em uma ruptura com tudo aquilo que a fé do indivíduo entende ou prescreve como nocivo, como também, não implica em adesão absoluta aquilo que ela entende ser bom. Na prática, o que ocorre é sempre uma adaptação da fé às circunstâncias ou até mesmo uma relativização dela. Isto vai depender do contexto histórico em que esta fé é vivida. Por isto, este "levar a sério" tem diferentes compreensões. Não obstante, há em todos os grupos religiosos quem leve as práticas aceitas da fé a sério, como quem não as leve. Portanto, não é o tamanho e a largura da devoção que distingue as igrejas denominada evangélicas das que não são. Se considerarmos a tese da história que liga os evangélicos brasileiros de hoje aos protestantes europeus do século XVI e americanos do século XIX, poderíamos afirmar que os traços que os distinguiriam seria, justamente, a não existência de pastores em seu meio e de templos para se reunirem, visto que, as doutrinas históricas do protestantismo defendem o sacerdócio universal de todos os crente [este não precisa mais de nenhum mediador humano, seja este o guia, líder, padre ou pastor] e a individualidade da fé [o crente não depende do outro para crê e cultuar, ele pode fazer isso na privacidade de seu lar]. Se tais coisas fossem mesmo levadas a sério, poderíamos ver concretamente uma diferença entre evangélicos e não evangélicos. Mas não é assim que as coisas funcionam na prática.



8- "As religiões cristãs não-católicas, como as evangélicas, têm sua origem no começo do século XVI, quando um monge alemão chamado Martinho Lutero se insurgiu contra Roma. No ano 1517, revoltado com a venda de indulgências pelo papa, Lutero escreveu suas famosas 95 teses, que pregou na porta da catedral de Wittenberg".[p.90]

*Neste caso, ser evangélico significa ser apenas "um cristão não católico dentre muitos". Mas, é bom aqui salientar que, historicamente falando, antes mesmo do advento da chamada Reforma Protestante existiram grupos cristãos contrários a doutrina católica da época que foram considerados heréticos, parias e que experimentaram o anátema por parte da igreja hegemônica. Neste caso, a reportagem, ao localizar todas as religiões que contradiziam o catolicismo no século XVI, leva-nos a crer que antes deste período só havia uma religião cristã: o catolicismo romano e que o resto é pura e simplesmente uma dissidência. Logo, o evangélico seria, a priori, um dissidente. Ora, até que ponto se pode incluir os evangélicos nesta categoria? Ao dialogar com uma certa história e estabelecer um ponto de partida, uma origem para os evangélicos, a reportagem cria uma tradição que não existe em si mesma, e inventa um certo passado para que se possa identificar essa comunidade religiosa. É a partir deste diálogo com um passado que muitos forjam uma identidade para os evangélicos. Como este diálogo é dinâmico, bem como as concepções de passado, outras definições do que venha a ser os evangélicos poderão vir à tona.

*- Porém, o diálogo aqui, nesta reportagem, é travado com as vozes que vem de fora e de dentro das igrejas que se identificam como evangélicas. Há um intenso percurso social para o individual dessas vozes, que ainda hoje continua existindo. O diálogo não se extingue neste texto, ele continua em outros. São as vozes dos outros dialogando com as vozes dessas igrejas que dão existência, por meio da escritura, ao termo "evangélico": "a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro" (Bakhtin, 2000:313/314).





11- "Ao proliferarem em todas as camadas sociais, os evangélicos estão produzindo mudanças facilmente detectáveis. A mais visível dela acontece em público. Neste ano, o mais retumbante evento da Semana Santa, o Sermão da Montanha, aconteceu numa praça de nome católico, a Praça do Papa, em Belo Horizonte, mas foi liderado por evangélicos. Cerca de 100 000 protestantes de ramos diversos ali apresentaram ao Brasil um refrão que sinaliza os novos tempos:?Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos um evangélico presidente do Brasil?. Circunstancialmente, foi o presbiteriano Antony Garotinho, de 42 anos, quem se apresentou como candidato a esses votos". [p.92]



* Neste enunciado, o "evangélico" é aquele que provoca mudanças na sociedade porque ele também faz parte das suas diversas elites, desde a política a elite cultural e esportiva. Em todos os segmentos, ou quase todos, há evangélicos. Mas, não é necessariamente o número de adeptos que lhes dá visibilidade, mas a classe social de onde muito deles fazem parte. O evangélico pode ser qualquer classe social. [Mas qualquer um pode ser evangélico?] No mesmo enunciado, a reportagem diz que, mesmo sendo anticatólicos, os evangélicos usam espaços "católicos" e fazem coisas que eles fazem, inclusive: lançar candidato a um cargo político. Então, o que os distingue nesta hora? O discurso, a prática, ou ambos? Ou nenhum e nenhuma das duas coisas? Tendo o enunciado, como destinatário, um público de maioria católica, é possível fazer esta última leitura, a de que "evangélico" e católicos, na prática, não são tão diferentes assim. Embora esta leitura contradiga afirmações anteriores.

*-A única mudança social que as igrejas denominadas evangélicas provocam, é em si mesmo. Quando seus integrantes passam a fazer parte da elite social, deixam de ser estigmatizados como são estigmatizados os demais grupos que ficaram as margens do poder. Ser "evangélico" agora é chique. Uma vez que as classes sociais hegemônicas se tornaram evangélicas ou que muitos evangélicos passaram a fazer parte dela, querer promover uma mudança social, seria uma loucura. "À medida que cresce, vai se tornando mais parecida com a sociedade que a recebe" (Freston, 1994:14).



12- "Em todas as variantes do protestantismo, é missão do fiel e de seu pastor espalhar a palavra do Senhor. Em resumo, ele deve converter seu semelhante. Na maioria dos casos, quanto pior o currículo ético desse semelhante, maior será o esforço para salva-lo". [p.92]



*- O evangélico é alguém com uma missão. Ele existe para realizar algo. Este algo é se reproduzir. Isto implica em provocar a adesão de outras pessoas para sua fé. Ele é um propagandista; um cruzado em missão. Dentro da lógica do capital, ele é aquele que sai no mundo atrás de quem possa comprar o seu produto e consumir o que ele consome. É o seu "destino manifesto" fazer prosélitos. Como uma boa ovelha, tem que se reproduzir para que possa aumentar o rebanho e muitas ovelhas sejam tosquiadas e muita lã seja produzida. Mas, a melhor coisa que pode acontecer é quando um lobo é amansado ou transformado em ovelha, ou melhor, quando alguém que pensa como lobo, que tem um pensamento divergente passa a pensar como uma ovelha [para não dizer "Anta"]. A isto eles chamam de conversão, ou seja, processo de dosmeticação e transformação de lobos em ovelhas. Quanto mais lobo for ou divergente for o sujeito, melhor para ser convertido. Pois, o pensamento contrário ou diferente é muito mais perigoso para as instituições, em especial, para as igrejas que a moral desviante. Rubem Alves explica muito bem isso em seu livro Dogmatismo e Tolerância quando diz:

"? à primeira vista, a moral desviante possa parecer o comportamento mais perigoso para a unidade da sociedade, a verdade é que o pensamento divergente é aquele que apresenta maior periculosidade abalando a ordem social em questão nos seus próprios fundamentos. O ladrão, que atenta concretamente contra a propriedade privada, é menos perigoso que aquele que, não sendo ladrão, contesta, ao nível intelectual, a legitimidade da propriedade privada. O primeiro deseja apenas resolver um problema prático particular. O segundo nega a validez da ordem social como um todo. [...] A prostituta, igualmente, é menos perigosa que o eunuco que afirma uma filosofia de amor livre" (1982:109).



Sendo assim, portanto, conversão seria passar por uma domesticação, "pacificação" frente aos outros. Os membros dessas igrejas denominadas evangélicas seriam, portanto, aqueles que não romperiam com a sociedade, mas se aliariam a ela na prática apesar do seu apregoado asceticismo ou "moral religiosa" que em nada incomoda o funcionamento dela.

13- "A simplicidade facilita a evangelização". [p.92]



* O evangélico é uma espécie de católico simplificado, segundo a reportagem. Ele é alguém dês-burocratizado e é o seu próprio despachante junto a Deus. É alguém que, "aqui na terra" não precisa de mediações para "ser salvo" e realizar a sua missão, é uma espécie de "self-made man" religioso, isto é, "homens religiosos que se fizeram por si mesmos". É alguém que não precisa marcar audiência para poder falar diretamente com Deus. Contudo, não é isso que acontece na prática. Chamam de evangélicos, justamente as igrejas, as pessoas dessas igrejas, que precisam de mediadores pagos, tais como os pastores e de templos para cultuarem. Fica difícil ver alguma semelhança entre eles e os históricos protestantes quando constatamos isso. Sem falar também que, não é praxe entre os evangélicos a livre interpretação, apenas retórica. Sendo assim, como podem ser protestantes se não protestam? Como podem ser protestantes se não interpretam as escrituras livremente ou dependem de pastores pagos para os guiarem e lhes apascentarem e precisam de templo? Por isso, evangélico pode ser qualquer coisa, menos um protestante como nos diz certas histórias.



14- "Numa troca simples, a igreja evangélica propõe que sua ovelha se afaste do mal e siga um código duro de conduta, oferecendo em troca apoio e reconhecimento por seu sucesso na empreitada". [p.92-93]



* Ser evangélico, segundo indica a reportagem, é, contraditoriamente, alguém subserviente. Ao abraçar este código de conduta estará abrindo mão da sua liberdade de pensamento e de ação. Ele é alguém da igreja agora e não pode pensar e agir sem ela, sozinho. A sua linguagem é a linguagem dele. Ele tem que se submeter a uma "ordem do discurso" religioso compactuado por todos no grupo para que nele possa ser aceito.





BIBLIOGRAFIA:





ALVES, Rubem. PROTESTANTISMO E REPRESSÃO. 1ª Edição, 2ªImpressão, Ática, São Paulo, 1982.

____________. DOGMATISMO E TOLERÂNCIA. Edições Paulinas, São Paulo, 1982.



BAKHTIN, M. (1929). ESTÉTICA DA CRIAÇÃO VERBAL. Martins Fontes, 3ª Edição, São Paulo, 2000.



CALDAS, Alberto Lins. ORALIDADE TEXTO E HISTORIA: PARA LER A HISTÓRIA ORAL. Edições Loyola, São Paulo, 1999a e b.



CAVALCANTI, Robinson. A IGREJA, O PAÍS E O MUNDO: DESAFIOS A UMA FÉ ENGAJADA. Ultimato, Viçosa, 2000.



DERRIDA, Jacques. A ESCRITURA E A DIFERENÇA. Editora Perspectiva, 3ª edição, São Paulo, 2002.



EDWARD, José. A FORÇA DO SENHOR. Revista Veja, ano 35- nº26, p.88 a 95, Editora Abril, 03 de julho de 2002.



FRESTON, Paul. EVANGÉLICOS NA POLÍTICA BRASILEIRA: HISTÓRIA AMBÍGUA E DESAFIO ÉTICO. Encontrão Editora, Paraná, 1994.



MAFRA, Clara. OS EVANGÉLICOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001.



MARIANO, Ricardo. NEOPENTECOSTAIS. Edições Loyola, São Paulo, 1999.



MENDONÇA, Antônio Gouvêa. QUEM É EVANGÉLICO NO BRASIL? Debate, suplemento do Jornal Contexto Pastoral, nº8, maio/junho de 1992. Publicação do Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais ? Cebep. Campinas, São Paulo.

PEREIRA, José dos Reis. BREVE HISTÓRIA DOS BATISTAS. 3ª edição. Junta de Educação Religiosa e Publicações, Rio de Janeiro, 1987.



*EX-Membro do Centro de Hermenêutica do Presente e mestrando em Ciências Humanas ? UFRO.