Euclides Neto: Pela construção da realidade

Ulisses Macêdo Júnior

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo maior a análise de algumas nuanças percebidas no conto, Última caçada, do escritor baiano Euclides Neto. Observando de sobremaneira as diversas realidades apresentadas, a existência ou não dos limites que as separam, assim como, a viagem no mundo das personagens como forma de compreensão da narrativa em si, e, porque não dizer, de alguns aspectos da própria natureza humana.

Palavra - chave: Realidade, imaginário, representação, relações humanas.

Introdução:

O ser humano, em todo o seu período de existência, sempre estabeleceu uma intensa, conflituosa (ou tranqüila) e imbricada relação com o mundo que o cerca. A arte, até bem pouco tempo, podia ser encarada tão somente como forma de representação dessa realidade já existente. No entanto, uma nova perspectiva agora se apresenta. Demasiadamente influenciado por esse meio, ao longo da história, o ser humano respondeu das formas mais diversas e diferenciadas. Ora assentindo ao conservadorismo representado pela acomodação "natural" do homem, outras vezes, aderindo às forças de ruptura e transgressão. Sempre reagindo de acordo com a conjuntura, fruto ou não do seu tempo.

Nesse contexto, conhecer sobre o ser humano e o período a que está inserido é fundamental para a compreensão da realidade de tempos passados e presentes. Mais ainda, perceber como se deu essa ligação e reações com o meio é extremamente importante para ampliação do conhecimento sobre tais realidades estabelecidas e construídas.

No entanto, como dar crédito as definições desses fatos e contextos se a capacidade humana torna-se minúscula em relação à complexidade do mundo e realidades apresentadas. Notório é o fato de que a linguagem humana, verbal ou não-verbal, não dá cabo de representar a totalidade do "universo". Ainda mais, levando-se em conta as diversas representações do real compreendidas até então.

Realidade (do latim realitas isto é, "coisa") significa em uso comum "tudo o que existe". Em seu sentido mais livre, o termo inclui tudo o que é, seja ou não perceptível, acessível ou entendido pela ciência, filosofia ou qualquer outro sistema de análise. Realidade significa a propriedade do que é real. Aquilo que é, que existe. Existência configurada não somente através da realidade exterior, o que é tangível e concreto; mas também, o que se refere ao onírico e ao intrínseco mundo da mente humana. Ou seja, enquanto ente fictício, imaginário, idealizado no sentido de tornar-se idéia, e ser idéia, pode - ou não - ser existente e real também no mundo externo. O que não nega a realidade da sua existência enquanto ente imaginário, idealizado. Logo o conceito de realidade e real assumem caracteres novos, diferentes de outros períodos anteriores.

Nesse viés, torna-se perceptível a grande amplitude conceitual a que a arte e algumas formas não-científicas de conhecimento adquiriram. Sendo agora mais "amplamente" compreendida, a arte, e aqui mais especificamente, a literatura assume o papel não somente como formas de representação da realidade. Mas, sobretudo, como construtoras da própria realidade.

Cid Seixas, em seu artigo: A arte como construção do real, comenta sobre esse "novo" redimensionamento da arte.

Não se insiste com a necessária ênfase que a literatura não é uma forma de representação da realidade, mas uma forma de conhecimento e construção da realidade. A maioria dos críticos e historiadores literários continua falando na obra de arte em geral, e literária em particular, como representação de alguma coisa preexistente.

Vista como mera representação, é evidente que a arte não teria nenhum compromisso com a sociedade, senão o de retratá-la fielmente.

(SEIXAS, 1998 p. 2)

Assim, revisto o conceito de realidade. Seguiremos para a análise de alguns desses aspectos no texto em questão. Trata-se do conto, Última caçada, do escritor baiano Euclides Neto.

Por essa narrativa é traçada a história do velho Clemente e seu fiel amigo, o cão Surubim. Convalescente, sofrendo há seis anos em uma cama, Clemente sente uma imensa nostalgia das épocas de caçadas com Surubim. E, em certo instante, quando os olhares dos amigos se cruzam e comunicam-se silenciosamente, é anunciada a, então, última caçada.

O conto transcorre, inicialmente, no ambiente do quarto, quando são narradas as primeiras cenas e caracterizações das personagens. No entanto, a partir da compreensão dos olhares tudo se transmuta para outro cenário, o ambiente da caçada. Mágico ? Vejamos:

O lampejo, naquele instante, continuava no olhar dos dois. Entenderam-se. O velho deve ter catingado a cheiro de quando ia caçar. Só percebido pelo companheiro. Surubim terminou vendo o amigo com a espingarda (...) disparando até o terreiro em tal velocidade que lá escorregou batendo os quartos no chão, riscando-o com os presuntos crescidos por falta de uso, voltando em cima do corpo enlouquecido de felicidade. Iam caçar !

(NETO, 1987 p. 102)

Por um saboroso caminho, através do discorrer do conto, o narrador nos conduz a dois ambientes de difícil delimitação: o externo, do quarto, quando da fase inicial, e o que se segue na ação da caçada. Na realidade, não se encontram marcas sobre a caçada em seu sentido "real" como ato concreto. Assim, teria o velho, através de uma força maior levantado e partido juntamente com o cão, ou simplesmente houve uma imersão no mundo da fantasia, pelos amigos, realizando a última façanha ?

A resposta se encontra aos olhos de cada leitor. Na verdade isso pouco importa. O que é relevante refletir aqui é sobre a abertura dada pelo autor, para a análise das várias possibilidades. Um mergulho por ambientes mágicos e sinestésicos. Perscrutando em um viés pela viagem através do onírico onde as realizações desejadas são plenamente possíveis. Uma inclinação verticalizada no reconhecimento dos "mundos" e estados da alma humana.

Transitando por ambientes, "reais" ou imaginários, mundos exteriores ou universos da mente, a personagem Clemente concretiza o seu, então, maior desejo.

Pungente, vigoroso e sintético são algumas características da mencionada obra. Ratificadora da definição de conto, por Cortazar[1], a narrativa de Euclides Neto, exibe as qualidades de um exímio contado de estórias.

Em a Última caçada percebemos, seja pelas ações "visíveis" ou através dos silêncios reveladores, a vida de um "velho", seu meio e suas últimas quimeras; A melancolia de quem já não possui as qualificações físicas dos tempos juvenis, as dores que soerguem ou arruínam o ser; o real multifacetado e reapresentado pelo caleidoscópio do olhar e da arte.

Por essa perspectiva, torna-se ainda mais percebível, a construção da realidade através da arte de um modo geral, como da literatura, pois através do processo de leitura e decodificação construímos paulatinamente um novo "real", edificado e assimilado.

É evidente também, em a Última caçada, elementos que denotam caracterizá-lo como conto fantástico, por essa imersão através de mundos verossímeis ou surreais. Colaborando assim, para vivificação, no imaginário coletivo, da beleza das "velhas" e doces estórias contadas a beira do fogo (ou em lugar qualquer) por uma afetuosa senhora (ou aquela que, para cada um das não tão antigas gerações, vem a representar essa simbologia).

Euclides Neto, através da sua narrativa, nos permite, além de perambular por mundos e possibilidades da ampla compreensão do ser humano, também, vislumbrar e saborear os caminhos "reais" ou encantados, por entre lembranças que existiram ou agora criadas, de um delicioso tempo de "conto de fadas". E assim, a realidade torna-se ainda mais sentida.

Referências:

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cutrix, 1994.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Debates, 1974.

NETO, Euclides. Última caçada. Novos contos da região cacaueira. Ilhéus: Editus, 1987.

SEIXAS, Cid. O mito como realidade do homem. Coluna "Leitura crítica". Salvador: Jornal A Tarde, 1996.



[1] Em Valise de cronópio, obra do escritor argentino Júlio Cortazar, apresentam-se definições e comparações que elucidam o caráter basilar do conto.