EU SOU A LENDA – O ENALTECIMENTO ANTROPOCÊNTRICO EM DETRIMENTO DO VALOR DA NATUREZA

 

  Palavras-chave: Natureza, Antropocentrismo, Valor, Reificação, Biodiversidade, Biologia da Conservação

 

    Na Europa, no fim da idade média, surge uma ideia que coloca o homem no centro do cosmos, das ações, da expressão histórica, filosófica e cultural. Essa ideia, denominada antropocentrismo, representa a chegada de uma nova era, um tempo que valoriza a razão, o homem e a matéria, em que ter prazer em viver não é mais visto universalmente como pecado. O ser humano passa a ser a medida autorreferente de todo o universo e para todas as coisas. Às margens desse caos antropocêntrico que se instalou no século XIX, se escondia um egocentrismo absolutamente infundado, que não apenas enaltecia erroneamente o ser humano, mas o fazia em detrimento do valor das artes, filosofias, ciências e principalmente, da natureza.

  Em meados da mesma época, um naturalista chamado John Muir - precursor do ambientalismo e defensor da ética de preservação romântico-transcendental - espalhava a ideia de que o homem pertencia à natureza e que, por causa disso, era impossibilitado de ter direitos maiores que esta. Para ele, o contato com o ambiente aproximava as pessoas de D’’s (proporcionando assim uma experiência transcendental). Em seus embasamentos, acreditava que o meio deveria ser utilizado para cultos, contemplação estética, cura interior, descanso e relaxamento. Essas utilidades faziam um uso mais benéfico da natureza do que aqueles que a destruíam.  John repudiava a destruição do ambiente para satisfazer o ‘’apetite voraz do materialismo.’’

  Gifford Pinchot - engenheiro florestal e ativo idealizador dessa problemática homem-natureza - acreditava que o ser humano detinha uma necessidade de controle da natureza para satisfazer as necessidades humanas a longo prazo, ou seja, a natureza servia unicamente dos seus recursos naturais, que deveriam ser utilizados para proporcionar o ‘’maior bem para o maior número de pessoas por mais tempo’’. Ele acreditava que a conservação não é proteger ou preservar a natureza, mas o uso sábio e eficiente dos recursos naturais.

  Outro ambientalista da mesma época, Aldo Leopold, acreditava que a natureza é um sistema complexo em vez de um conjunto aleatório de espécies com valores positivos, negativos e neutros, sendo cada uma delas importante como um componente do conjunto. O valor delas advém de sua utilidade no ecossistema. Para ele é fundamental existir um manejo da natureza e a responsabilidade de se fazê-lo de um modo que se reconheça o valor intrínseco das outras espécies e da própria biodiversidade.

  Com o advento dessa problemática, surgiu uma ciência interdisciplinar conhecida como Biologia da Conservação, aplicada para a manutenção da diversidade biológica da terra, localizada entre as ciências biológicas básicas e as ciências dos recursos naturais. Dentro dessa disciplina, a natureza tem diversos valores, dentre eles: Valor intrínseco, quando o ecossistema é raro; Valor instrumental/econômico, quando os bens podem ser contabilizados pela soma dos bens fornecidos pelas espécies que o compõe; Valor instrumental ecológico, que depende do tamanho e da composição do ecossistema; e por fim, Valor instrumental/Estratégico, quando protegemos um conjunto representativo de ecossistemas de vários tipos, acabamos por proteger a maioria das espécies e da diversidade genética que o compõe.

  Partindo-se de outras diretrizes, é claro que, para muitos, a natureza ganha valor quando a transformamos em algo lucrativo, seja utilizando seus recursos, sua diversidade ou o próprio ambiente. ‘’Transformar uma ideia em uma coisa’’ é um conceito que foi trazido por Lukács, filósofo húngaro e se tornou amplamente conhecida pelos marxistas. Essa ideia recebe o nome de reificação e consiste de uma operação mental na qual se transforma conceitos abstratos em realidades concretas ou objetos. No marxismo, o conceito designa uma forma particular de alienação, característica do modo de produção capitalista. Implica a coisificação das relações sociais, de modo que a sua natureza é expressa através de relações entre objetos de troca.

  Esse conceito aplica-se perfeitamente ao modo com que nos relacionamos com a natureza. Primeiramente, vivemos num mundo globalizado, onde as relações sociais estão cada vez mais efêmeras e transitórias. Não podemos esperar um bom tratamento com o mundo natural quando nem ao próximo o ser humano é capaz de dar valor. O uso indiscriminado de todos os recursos que o meio ambiente nos proporciona e a mentalidade de desenvolvimento a qualquer custo é a maior de todas as provas de que o homem não sabe, e talvez nunca soube, qual o verdadeiro valor desse meio. A superexploração, o desmatamento, a poluição, a extinção de milhares de espécies e a escassez de recursos naturais são apenas algumas pequenas consequências da ignorância do ser humano.

  A perfeita aplicação da reificação dentro dos questionamentos levantados vem da questão primordial que a natureza tem valor. Um valor intrínseco que não tem relação alguma com qualquer homo sapiens. O valor da natureza é por si própria; Partindo-se desse fato, consideremos todas as criações humanas: a língua, a escrita, as ciências, os números, a lógica, o dinheiro, a culinária, etc. Todas essas magníficas e genuínas invenções não têm o mínimo valor e aplicação se, por algum acaso, o homem deixar de existir. Contudo, mesmo que não exista mais nenhum homem vivo, a natureza ainda continuará a existir, e todos os seus ciclos também. A diversidade continuará a utilizar seus recursos e a matéria e energia continuarão a ser passadas e repassadas através da complexa, porém extraordinária, rede de cadeia alimentar.

  O problema está muito além do fato de as pessoas não conseguirem dar valor à algo que claramente e obviamente é extremamente valoroso, mas na falácia de se atribuir um centrismo incorreto no homem. Não somos o centro do universo, nem do mundo e nem de lugar algum. Vivemos em um meio que já existia muito antes de pensarmos em aparecer e isso é apenas mais um dos motivos que deveriam clarear a realidade de que a natureza tem o seu próprio valor, independente das serventias e utilidades humanas. Aprisionamos animais, massacramos ecossistemas, dizimamos espécies, de fauna e flora, poluímos recursos que são escassos e finitos e tudo isso em prol de quê? O tão almejado desenvolvimento e enriquecimento não servirá de nada quando não existir mais água para beber, recursos para nos alimentar e ecossistemas para nós vivermos.

  Desde o primórdio da criação do ser humano e até o último homo sapiens estar vivo, seremos para sempre prisioneiros da natureza, e não o contrário, não importa o que aconteça. Em uma escala menor, o animal está enjaulado. Contudo, aumentando-se a miopia, a jaula é bem maior que um poço e o prisioneiro é muito mais numeroso que apenas um animal. E viva a reificação: uma grande verdade absoluta! Um dia o homem irá deixar de existir, e tudo o que ele criou e inventou irá junto dele. Entretanto, a natureza continuará de pé, assim como todas as ordens naturais dela, que o ser humano tanto acredita que dita.  Caso não queiramos acabar como no filme ‘’Eu sou a lenda’’, o melhor é começarmos a mudar nossos conceitos. Ninguém está imune.

 

Referências Bibliográficas:

ALVES, J.E.D. Do antropocentrismo ao ecocentrismo: uma mudança de paradigma. In: MARTINE, George (Ed.) População e sustentabilidade na era das mudanças ambientais globais: contribuições para uma agenda brasileira. Belo Horizonte: ABEP, 2012.

FÁBIO LUIZ TEZINI CROCCO. Georg lukács e a reificação: Teoria da constituição da realidade social - Kínesis, Vol. I, n° 02, Outubro-2009

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. Trad. Telma

Costa; Revisão Manuel A. Resende e Carlos Cruz – 2° Edição, Rio de Janeiro: Elfos Ed.;

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Lukács, um Galileu no século XX. 2 ed. São Paulo, Boitempo, 1996.

RICHARD B. PRIMACK, EFRAIM RODRIGUES. Biologia da conservação – Vol. I, 2001