ESTUPRO: A CONSTANTE RELAÇÃO FAMILIAR ENTRE OS ENVOLVIDOS.

Lidiane Pinto Cassas de Araújo[1]

Marcos Maurício Reis de Souza

Mel dos Santos Trindade

  

Sumário: : 1  Introdução; 2 O Estupro e o Sistema de Justiça Criminal; 3 Agressor e vítima: uma relação de poder;  4 Consequências Individuais e Institucionais; 5 Conclusão; Referências.

RESUMO

Aborda-se o tema do estupro, com ênfase na perceptível relação de familiaridade entre autor e vítima do crime. Faz-se uma breve análise sobre a estigmatização que o Sistema de Justiça Criminal promove ao examinar os casos a que lhe são submetidos, objetivando uma reflexão sobre esta circunstância. Realiza-se um relato de consequências acarretadas à vítima pelo trauma do estupro.

PALAVRAS-CHAVE

Estupro. Sistema de Justiça Criminal. Dominação.

 

1 INTRODUÇÃO

            Alguns dados recorrentes das Nações Unidas estimam que um quarto de todas as mulheres do mundo já foram vítimas de estupro pelo menos uma vez na vida. Isto indica que os índices de estupro ocorrentes em todo o mundo são bem maiores que os notificados, visto que, analisando pelas vias de documentos como o Boletim de Ocorrência, estes dados são exorbitantes.

Na dimensão do atual contexto criminológico, é comum percebermos o estado de abusão dos critérios de discernimento empregados na análise de fatos. Nos casos de estupro, percebe-se esta aplicação além do caráter da punição. O senso comum criminal propaga crendices nos índices de estupro. A desmistificação de uma dessas ideias é um objetivo a que vamos nos voltar.

            Entende-se por estupro um ato de violência seguido pelo constrangimento da mulher à conjunção carnal. No entanto, o estupro não é uma espécie homogênea, os muitos casos que ocorrem são de diferentes tipologias[2]. Na análise que faremos a seguir, entenderemos que na maioria das vezes o indivíduo que comete o estupro já tem alguma relação com a vítima e o que de fato existe entre eles é uma relação de poder, em que o homem “concretiza” a sua superioridade diante a fragilidade da mulher.

 

2 O ESTUPRO E O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

            Primeiramente, é importante analisarmos a vitimação feminina de acordo com as situações ocorrentes dentro do Sistema de Justiça Criminal. A presença da lógica da seletividade na análise dos casos se dá por meio da estereotipização da mulher que se diz agredida e do suposto agressor.

            A ilusão do Direito Penal do fato, especialmente nos casos de estupro, é facilmente descaracterizada quando se concerne à diferença entre perfil de mulheres conceituadas como ‘honestas’ e ‘desonestas’. A lógica da honestidade está associada à moral sexual, ou seja, mulher honesta é somente aquela que se dedica ao espaço privado: são “mulheres do lar”, de comportamento socialmente previsíveis, que zelam por sua reputação sexual. Portanto, desonestidade, quando associado à mulher, é um termo que pressupõe promiscuidade nas relações sexuais. Mulheres desonestas são as prostitutas ou aquelas de fácil sedução.

            Um conceito não muito diferente aplica-se aos homens: existem os homens médios, que são aqueles dedicados ao mercado, à economia, à política, e que vivem uma vida “digna”, por terem boas condições de sobrevivência; e os homens criminosos, que não entram na esfera pública, pois não têm boas condições de vida e não participam ativamente da vida social.

            A maioria dos casos de estupro, como veremos a seguir, são protagonizados por pessoas conhecidas (familiares, colegas de profissão) e ocorrem nos próprios lares ou lugares de trabalho, onde não haja presença de testemunhas. Portanto, quando a mulher faz a denúncia, ela está se submetendo à sua própria análise criminológica e à do suspeito, pois geralmente não existem provas suficientes que possam culpar o suposto agressor, a não ser a palavra da mulher.

 

...se o conjunto probatório se reduz, muitas vezes, à própria palavra da vítima, então está a se exigir que sua palavra seja corroborada... por sua vida pregressa, por sua moral sexual ilibada, por seu recato e pudor. Existindo ou não laudo pericial, ou ainda prova testemunhal, mesmo em situações de flagrante delito, a palavra da vítima perde credibilidade se não for ela considerada “mulher honesta”, de acordo com a moral sexual patriarcal ainda vigente no SJC.[3]

 

As mulheres sentem medo da reação do agressor caso saibam da manifestação judicial, já que ele certamente não será punido, pois não se encaixa no estereótipo de estuprador. Talvez por isso os casos não sejam documentados em sua maioria. Além disso, se a denúncia for feita por uma mulher “desonesta”, sua palavra de nada valerá diante o sistema, visto que este está repleto de conceitos já descritos que estigmatizam a mulher.

 

A prevalência real de maus-tratos a mulheres não se conhece, uma vez que os casos de abuso continuam sendo pouco notificados, por vários motivos: porque a mulher se envergonha do fato, ou o aceita, teme represálias do companheiro, ou da família, ou porque não encontra apoio no sistema jurídico[4]

 

 

As denúncias de estupro muitas vezes não são feitas porque o Sistema de Justiça Criminal ainda utiliza o Direito Penal do autor para a avaliação do caso, ele não possui estrutura para dar apoio às mulheres vítimas, tampouco as incentiva para superar seus medos e anseios. Os direitos humanos fundamentais só são percebidos quando relacionados a mulheres que correspondem aos padrões sociais. A proteção do Estado é bem restrita quando relacionada às vítimas do estupro e de tantas violências contra a mulher.

 

3 AGRESSOR E VÍTIMA: UMA RELAÇÃO DE PODER

            Ao contrário do que se pensa no senso comum penal, existe uma frequente familiaridade nos casos de estupro. No entanto, verificamos nos Boletins de Ocorrência certo predomínio de denúncias contra desconhecidos, o porquê já retratado: o medo da vítima e a provável impunidade do agressor.

            Nas pesquisas e estudos de população, é perceptível a predominância da familiar relação entre os protagonistas do estupro. Na maioria das vezes, o estuprador é um parente (pai, padrasto, tio, marido, primo), chefe ou colega de trabalho, namorado ou outro conhecido.

            Algumas mulheres que não possuem muita informação sobre o assunto não admitem o estupro quando praticado por seu marido, pois, pelas convenções sociais, ele possui pleno “direito” de exigir suas satisfações sexuais a qualquer momento, a partir do ato do casamento. No entanto, é importante ratificar o que se prevê como estupro de acordo com a legislação penal: constranger a mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Portanto, se o ato sexual for feito sem consentimento da mulher – e, consequentemente, mediante violência ou ameaça-, este ato é considerado estupro, mesmo se o agressor for o próprio parceiro.

            Dentre os casos decalcados, o estupro não se trata de uma conduta de um marginal ou anormal, tampouco de um prazer, uma satisfação sexual. Entre vítima e agressor percebe-se uma relação de poder.

 

 ...a maioria dos estupros ocorrem dentro de um contexto de violência física em vez de paixão sexual ou como meio para a satisfação sexual. (...) constatamos que a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O estupro, então, é um ato pseudo-sexual, um padrão de comportamento sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento sexual a serviços de necessidades não sexuais.[5]

 

            O homem quer demonstrar-se superior, mantendo uma relação de domínio sobre a mulher aplicada através da força física. Ele utiliza suas características fenotípicas para satisfazer não um desejo sexual, mas um desejo de preeminência, tendo a certeza de que haverá a subordinação da mulher no ato. É a humilhação sofrida pela mulher que torna o estupro “prazeroso”.

            A construção histórica de que o homem é o protetor da mulher e agente ativo no ato sexual, faz com que a sociedade tenha a crença patriarcal de que o homem tem domínio sobre o corpo da mulher, como se fosse uma propriedade do indivíduo. É por isso que muitos maridos e namorados se sentem no direito de oprimir suas mulheres para satisfazer as supostas necessidades sexuais. O estupro é como uma “questão de honra”, uma atitude que expressa o lema do “quem manda aqui sou eu”, é um ato narcísico do agressor[6].         

4  CONSEQUÊNCIAS INDIVIDUAIS E INSTITUCIONAIS

            Os crimes de estupro acarretam graves consequências para a vítima, tanto físicas quanto psíquicas. As consequências físicas podem ser: doenças sexualmente transmissíveis, inclusive infecções pelo vírus HIV, e até abortos consequentes de gestações indesejáveis. Mas as consequências relativas às faculdades morais são bem mais agressivas: distúrbios traumáticos, depressão, baixa auto-estima, uso de drogas, tentativas de suicídio[7].

            A vítima do estupro é condenada a trazer consigo sequelas adquiridas no ato criminoso, mesmo que estas sequelas não aparentem ser existentes.

            O Sistema de Justiça Criminal não possui conhecimento preciso sobre os índices de estupro, por não existirem muitas notificações. Os poucos relatos conhecidos por ele são, em sua maioria, contra marginais desconhecidos. Por isso, a política de amparo ao feminismo pressupõe que o crime é de natureza institucional e que se deve combater a violência urbana para a solução do caso. Todavia, além de não entenderem a real situação, ele não combate este suposto problema.

 

“A falta de denúncia e solicitação de ajuda nos serviços de saúde é um dos motivos pelos quais os profissionais de saúde não percebem a alta prevalência do problema nem sua relação com a saúde sexual e reprodutiva das mulheres.” [8]

 

            Além da saúde da mulher, as consequências podem acarretar maiores problemas sociais: atividade reprodutiva, dissociação de famílias, criação vingativa de crianças. Portanto, o descaso do Sistema com o infortúnio deve ser combatido a fim de não promover situações de risco para a sociedade.

 

5 CONCLUSÃO

            Ao longo da discussão, procuramos desmistificar o que o senso comum criminal entende em relação aos protagonistas do estupro: vítima e agressor. Tal relação, constantemente familiar, foi explicada pela crença numa sociedade patriarcal, em que o homem tem a condição de protetor e domador do corpo da mulher. Porém, é importante ressaltar que esta explicação não justifica o ato do estupro.

            Analisamos também a estereotipização utilizada pelo Sistema de Justiça Criminal, diferindo mulheres honestas de desonestas e homens médios de criminosos. Salientamos que esta concepção é fundamental para entendermos por que muitos crimes de estupro - e violência contra a mulher, em geral- não são notificados. É um ciclo que impede que a mulher faça a denúncia e, que, ao mesmo tempo, protege os homens que não se encaixam nos padrões de criminosos.

            Além das relevâncias contidas acima, relatamos uma série de consequências do estupro que ameaçam não só a integridade física da mulher, mas toda uma construção social.

            Este trabalho é uma reflexão sobre a violência contra a mulher, especificando o crime de estupro, que nos remete a questionar qual a concepção que a sociedade transpõe entre homens e mulheres- por que os homens se sentem donos das mulheres? – e também qual o critério de investigação que o Sistema de Justiça Criminal utiliza para a avaliação dos casos- mulheres “desonestas” não podem ser vítimas de qualquer tipo de violência? Homens “médios” não cometem crimes?

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania Patriarcal. Disponível em: <www2.mp.ma.gov.br/ampem/artigos/Artigos2006/A_soberania_patriarcal_artigo_Vera_Andrade.pdf> Acesso em: 02 de maio de 2009.

BANDEIRA, Lourdes Maria. O que faz da vítima, vítima? In: Dijaci David de Oliveira, Elen Cristina Geraldes e Ricardo Barbosa de Lima (orgs). Primavera já partiu: retrato dos homicídios Femininos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 366.

FAUNDES, Aníbal; ROSAS, Cristião Fernando; BEDONE, Aloísio José; OZORCO, Luís Távara. Violência sexual: procedimentos indicados e seus resultados no atendimento de urgência de mulheres vítimas de estupro. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032006000200009&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 01 de maio de 2009.

OLIVEIRA, Paula Men de; CARVALHO, Marta Lúcia de Oliveira. Perfil das mulheres atendidas no Programa Municipal de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Sexual em Londrina-PR e as circunstâncias da violência sexual sofrida: período de outubro de 2001 a agosto de 2004. Disponível em: <http://www2.uel.br/proppg/semina/pdf/semina_27_1_20_26.pdf>. Acesso em: 01 de maio de 2009.

PIMENTEL, Adelma; ARAUJO, Lucivaldo da Silva. Violência sexual intrafamiliar. Disponível em:

<http://scielo.iec.pa.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-59072006000300008&lng=pt&nrm=iso>.Acesso em: 25 de abril de 2009.

SUDÁRIO, Sandra; ALMEIDA, Paulo César de; JORGE, Maria Salete Bessa. MULHERES VÍTIMAS DE ESTUPRO: O CONTEXTO E O ENFRENTAMENTO DESSA REALIDADE. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v17n3/a12v17n3.pdf>. Acesso em: 05 de maio de 2009.

SULLCA, Tita Flores; SCHIRMER, Janine. Violência intrafamiliar na adolescência na cidade de Puno- Peru. Disponível em:

 <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692006000400016&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

VARGAS, Joana Domingues. FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? A relação entre os protagonistas do estupro no fluxo do Sistema de Justiça Criminal. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n40/1709.pdf> Acesso em: 02 de maio de 2009.

VARGAS, Joana Domingues. Padrões do estupro no fluxo do sistema de justiça criminal em Campinas, São Paulo. Disponível em:

 <http://www.scielo.br/pdf/rk/v11n2/03.pdf>. Acesso em: 02 de maio de 2009.


[1]  Alunos do 2º período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, turma 2008.2.

[2] VARGAS, Joana Domingues. Padrões do estupro no fluxo do sistema de justiça criminal em Campinas, São Paulo. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rk/v11n2/03.pdf>. Acesso em: 02 de maio de 2009.

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania Patriarcal. Disponível em: <www2.mp.ma.gov.br/ampem/artigos/Artigos2006/A_soberania_patriarcal_artigo_Vera_Andrade.pdf> Acesso em: 02 de maio de 2009.

[4] (CHADE apud SULLCA, SCHIRMER, 2006) SULLCA, Tita Flores; SCHIRMER, Janine. Violência intrafamiliar na adolescência na cidade de Puno- Peru. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692006000400016&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 25 de abril de 2009.

[5] (KOLODNY, MASTERS, JOHNSON apud ANDRADE, 2004) op. cit.

[6] BANDEIRA, Lourdes Maria. O que faz da vítima, vítima? In: Dijaci David de Oliveira, Elen Cristina Geraldes e Ricardo Barbosa de Lima (orgs). Primavera já partiu: retrato dos homicídios Femininos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 366.

[7] OLIVEIRA, Paula Men de; CARVALHO, Marta Lúcia de Oliveira. Perfil das mulheres atendidas no Programa Municipal de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Sexual em Londrina-PR e as circunstâncias da violência sexual sofrida: período de outubro de2001 a agosto de 2004. Disponível em: <http://www2.uel.br/proppg/semina/pdf/semina_27_1_20_26.pdf>. Acesso em: 01 de maio de 2009.

[8] FAUNDES, Aníbal; ROSAS, Cristião Fernando; BEDONE, Aloísio José; OZORCO, Luís Távara. Violência sexual: procedimentos indicados e seus resultados no atendimento de urgência de mulheres vítimas de estupro. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032006000200009&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 01 de maio de 2009.