ESTUDO DE CASO

 

EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA PESSOA JURÍDICA DISSOLVIDA DE FORMA IRREGULAR[1]

 

José Muniz Neto[2]

 

                                               

 

1 DESCRIÇÃO DO CASO

Zaqueu Togma postulou em juízo o cumprimento de obrigação prevista em título extrajudicial, para o recebimento de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) materializado através de cheque emitido pela Naftali Investimentos LTDA. Distribuída a ação executiva o magistrado determinou a citação da pessoa jurídica, contudo o ato não foi realizado devido à não localização da executada no endereço indicado na petição inicial, conforme constou na certidão emitida pelo oficial de justiça.

Diante de tal informação, o exequente peticionou ao juízo requerendo a desconsideração da personalidade jurídica da executada, com fundamento no art. 50 do Código Civil, sob alegação de que ocorrera dissolução irregular da sociedade demandada, e consequente inclusão dos sócios no polo passivo da execução civil, tanto os atuais quanto os existentes à época da emissão do título executivo. O juiz analisou e acolheu o pedido de Zaqueu, sob o fundamento do que preceituam os arts. 1.003, parágrafo único, e 1.032 do Código Civil, determinando de imediato a penhora dos valores constantes nas contas privadas dos novos réus, através do sistema Bacen-jud.

Ocorre que o mencionado bloqueio atingiu os bens do Sr. Levi Metusael, no montante de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) de sua poupança, R$ 20.000,00 de sua previdência privada (VGBL) e R$ 2.000,00 (dois mil) de sua conta corrente.

                                                                                                             

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

 

2.1 Descrição da Decisão Possível:

 

  1. Extinção do processo sem resolução de mérito.

2.2 Argumentos Capazes de Fundamentar a Decisão:

 

  • · 1) Do título executivo extrajudicial:

O cheque ora analisado se enquadra entre os títulos executivos extrajudiciais presentes no art. 585 do Código de Processo Civil, especificamente no seu inciso I. Determina o art. 586 do CPC que a execução de pecúnia deve se fundar em título certo, líquido e exigível.

Quanto à executividade do cheque, aponta Didier (2013, p.177):

[...] o título de crédito é dotado de características muito peculiares. Em primeiro lugar, é ele essencialmente voltado para a tutela executiva. A emissão de título de crédito j á permite que, a paI1ir da exigibilidade, possa ser instaurado processo de execução.

Ademais, o título de crédito contém a característica da literalidade, de sorte que somente se pode considerar o que esteja nele contido expressamente. Os requisitos legais para a emissão do título devem estar nele expressos, devendo igualmente estar inequivocamente indicados o valor, o devedor e todos os elementos fundamentais para a propositura de uma demanda executiva.

Ademais, o cheque, para que fundamente a ação executiva, deve ser apresentado inicialmente à instituição financeira e, somente em caso de recusa ao pagamento, será justificada a execução (DIDIER, 2013, p.183).

  • · 2) Da ofensa ao devido processo legal:

Quanto ao devido processo legal, urge ressaltar o que dispõe o art. 5º, LIV, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será privado de sua liberdade ou bens sem a observância de um processo previsto em lei”. No presente caso se verifica que o magistrado, ante a inocorrência de citação, determinou de imediato a desconsideração da personalidade jurídica da Naftali Investimentos LTDA, sem, contudo, esgotar as tentativas de citação desta através de outros meios, como citação ficta ou editalícia[3].

De mais a mais, é papel do autor indicar o endereço do réu para que seja efetuada a citação, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito, de acordo com os arts. 282, II, e 284 do CPC.

  • · 3) Da inaplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica:

A alteração do estabelecimento empresarial da pessoa jurídica não indica a dissolução irregular da sociedade, como apontado pelo exequente. Este é o entendimento do STJ:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC/2002. TEORIA MAIOR. MUDANÇA DE ENDEREÇO DA EMPRESA. INSUFICIÊNCIA. AFERIÇÃO DA PRESENÇA DOS ELEMENTOS AUTORIZADORES DA TEORIA DA DISREGARD DOCTRINE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. A desconsideração da personalidade jurídica, à luz da teoria maior acolhida em nosso ordenamento jurídico e encartada no art. 50 do Código Civil de 2002, reclama a ocorrência de abuso da personificação jurídica em virtude de excesso de mandato, a demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas). 2. A mudança de endereço da empresa executada não constitui motivo suficiente para a desconsideração da sua personalidade jurídica. Precedente. 3. A verificação da presença dos elementos autorizadores da disregard, elencados no art. 50 do Código Civil de 2002, demandaria a reapreciação das provas carreadas aos autos, providência que encontra óbice na Súmula 7/STJ. 4. Agravo regimental não provido. (STJ - AgRg no AREsp: 159889 SP 2012/0059910-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 15/10/2013, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/10/2013)

  • · 4) Do cabimento de penhora aos bens de Levi:

A penhora dos bens de Levi, enquanto ex-sócio, é legalmente cabível, conforme determinam sistematicamente os arts 1.053 e 1.032 do Código Civil, no prazo de até 2 anos após averbada a resolução da sociedade, quanto às obrigações anteriores à sua saída, ou no mesmo prazo, a contar da saída do sócio, pelas obrigações posteriores enquanto não se efetuar a averbação. Além disso, existe o benefício de ordem no qual os bens da sociedade devem ser atingidos primeiro do que os bens do sócios, determinado no art. 1.024 do CC.

Contudo, como demonstrado anteriormente, inexiste fundamento para a penhora dos bens do sócio retirante, uma vez que não há conduta que justifique a desconsideração da personalidade jurídica.

  • · 5) Da penhora ilegal:

Com base no princípio da subsidiariedade, a penhora dos bens de Levi, caso fosse permitida, seria ilegalmente efetuada. Isso porque o magistrado penhorou valores da conta poupança do ex-sócio, bem como há discussões quanto a possibilidade de penhora de valores referentes à fundo de previdência privada.

Quanto à conta poupança, foi penhorado a quantia de R$ 30.000,00 de Levi, todavia o CPC, no seu art. 649, X, prevê a impenhorabilidade de valores depositados em tal modalidade de conta bancária, até o limite de 40 salários mínimos, os quais, atualmente, consistem no valor de R$ 31.520,00.

Já em relação à previdência complementar, a jurisprudência[4] é cediça quanto a penhorabilidade dos valores de tais fundos, desde que não detenha caráter alimentar ao executado, o que deve ser analisado caso a caso. Portanto, antes de penhorar tais valores, deve ser feito juízo de necessidade sobre tais verbas ao demandado.

  • · 6) Dos argumentos mencionados por Levi:

Levi alega três fatos diversos: a) que não era administrador da sociedade, b) que era sócio minoritário e saiu da sociedade em novembro de 2014 e c) que desconhecia a dívida e a relação entre Jetro e Zaqueu estava sob investigação policial.

Quanto a administração da sociedade e sua saída desta, tal alegação não merece prosperar, haja vista que não retiraria a responsabilidade do ex-sócio em caso de desconsideração da personalidade jurídica, conforme já demonstrado.

Em relação ao desconhecimento da dívida e a investigação policial quanto à relação entre Jetro e Zaqueu, duas considerações: o art. 25 da Lei 7.357/85 determina que “quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor”, ressaltando a autonomia do título. Já sobre a investigação policial, esta configura mero procedimento administrativo para apuração de delitos, não importando em julgamento ou condenação das partes.

  • · 7) Fundamentos cabíveis à defesa de Levi:

Os fundamentos alegáveis por Levi em sede de defesa podem ser: a inexistência de devido processo legal, pela inexistência de citação válida da sociedade e o não esgotamento das possibilidades de sua efetivação; a ilegalidade na desconsideração da personalidade jurídica, sob o fundamento já demonstrado; e mais, com base no princípio da eventualidade, a inaplicação do benefício de ordem previsto no art. 1.024 do CC e a penhora ilegal dos valores presentes na sua conta poupança, bem como dos valores aplicados na previdência privada (VGBL) sem se verificar, anteriormente, o caráter de tais verbas. Diante de tais juízos, a única decisão possível é a extinção do processo sem resolução de mérito, ante as nulidades visualizadas no processo executivo.

Tais argumentos poderiam ser expostos através de embargos à execução ou exceção de pré-executividade. Os embargos tem fundamento nos arts. 736 e 745 do CPC e são os meios legais para a defesa do executado em execuções de títulos extrajudiciais, no qual, no prazo de 15 dias contados da juntada aos autos do mandado de citação do devedor, poderá alegar qualquer matéria possível para defesa em sede de processo de conhecimento (DIDIER, 2013, p.366). Já a exceção de pré-executividade é instituto criado pela jurisprudência, sem prazo para oposição, e poderá tratar de qualquer matéria a qual o juiz deveria conhecer de ofício, ou seja, matérias de ordem pública (DIDIER, 2013, p. 402-403).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp: 1358007 SP 2012/0259454-5, Relator: Ministro OG FERNANDES, da Segunda Turma. Data de Julgamento: 05/12/2013. Brasília, DF, 18/12/2013. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ 24823397/agravo-regimental-no-agravo-regimental-no-recurso-especial-agrg-no-agrg-no-resp-1358007-sp-2012-0259454-5-stj >. Acesso em: 02/10/2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp: 159889 SP 2012/0059910-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, da Quarta Turma. Data de Julgamento: 15/10/2013. Brasília, DF, 18/10/2013. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/24314047/agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-159889-sp-2012-0059910-4-stj >. Acesso em: 02/10/2015.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. AI: 20042363920158260000 SP 2004236-39.2015.8.26.0000, Relator: Melo Colombi, da 14ª Câmara de Direito Privado. Data de Julgamento: 04/03/2015. São Paulo, SP, 05/03/2015. Disponível em: < http://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/171724629/agravo-de-instrumento-ai-20042363920158260000-sp-2004236-3920158260000>. Acesso em: 02/10/2015.

DIDIER JR. Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil: execução. 5ª Ed. vol.5. Salvador: Juspodivm, 2013.



[1] Case apresentado à disciplina Processo de Execução, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco;

[2] Aluno do 7º período vespertino, do curso de Direito da UNDB;

[3] Neste sentido, o STJ: AGRAVO REGIMENTAL. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL PARA OS SÓCIOS. MUDANÇA DE ENDEREÇO DA EMPRESA SEM COMUNICAÇÃO. SIMPLES DEVOLUÇÃO DE AR-POSTAL SEM CUMPRIMENTO. PRESUNÇÃO. NECESSIDADE DE OUTROS MEIOS PARA VERIFICAÇÃO. 1. A jurisprudência desta Corte firmou a compreensão, consubstanciada na Súmula 435, no sentido de que se presume dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente. 2. Entretanto, há que se verificar a incidência desse entendimento diante de cada caso concreto, não sendo razoável se proceder ao redirecionamento da execução fiscal, baseando-se, tão somente, em simples devolução de AR-postal sem cumprimento, impondo-se, nesse particular, que se utilizem meios outros para verificação, localização e citação da sociedade empresária. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no AgRg no REsp: 1358007 SP 2012/0259454-5, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 05/12/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2013)

[4] EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DILIGÊNCIAS. PENHORA. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO. SUSEP. VGBL E PGBL. CARÁTER ALIMENTAR. RELATIVIDADE. 1. O caráter alimentar dos valores investidos a título de PGBL e VGBL deve ser analisado casuisticamente, observando se apenas se presta a garantir necessidades básicas de subsistência ou se tem finalidade de engordar o patrimônio ou de servir de precaução para futuras, eventuais e incertas necessidades. 2. Diante disso, é possível permitir expedição de ofício à SUSEP, para que o credor e o juízo possam conhecer as condições econômicas do devedor, que não pode se utilizar desses investimentos para se furtar ao seu dever de pagar. 3. Cuidando-se de informação protegida pelo sigilo bancário, viável expedição de ofício à SUSEP. 4. Recurso provido. (TJ-SP - AI: 20042363920158260000 SP 2004236-39.2015.8.26.0000, Relator: Melo Colombi, Data de Julgamento: 04/03/2015, 14ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/03/2015)