1- INTRODUÇÃO:

A questão da leitura nunca foi tão discutida por teóricos que estudam a linguagem como atualmente. Trata-se de uma habilidade que envolve um processo complexo e que contrariamente ao que se possa pensar a priori é muito mais que decodificar as palavras de um texto, mas, sobretudo compreender o sentido mais global deste que como um "iceberg' está implícito, pois, a ser desnudado.

2 – O QUE É LEITURA

Segundo Viana & Teixeira ( 2002) a polissemia da palavra ler é um indicador da riqueza que o conceito subjacente encerra. De acordo com as autoras, lemos de muitas formas, através de diversos meios e finalidades diferentes. Lemos sinais de aviso, de entoações e de silêncio, lemos notações e indicadores de projetos e de trajetos, lemosa nossa própria escrita e o que os outros escreveram.

Para alguns autores, ler é saber decifrar, ou seja, ser capaz de pronunciar de forma precisa as palavras impressas ainda que não compreenda o sentido do texto. Para outros ler é compreender o sentido do texto. Outros ainda afirmam que "ler" é raciocinar.

Para Smith (1999) a leitura é a associação do que está atrás dos olhos com o que está a frente dos olhos, apenas descodificar e não encontrar sentido não é leitura. Então, a leitura é uma atividade que acontece por meio de antecipação, realizada através do conhecimento prévio e exige do leitor uma atitude reflexiva, a qual lhe favorece compreender e explicar as coisas.

No passado ler, escrever e contar eram condições essenciais como instrumentos de ação, hoje estas são centradas em como tornar o indivíduo capaz de atuar em sociedade como cidadão autônomo, que segundo Toffler (1972 apud TERZI, 1998, p. 9) possam formular juízos críticos, que possam encontrar os seus caminhos através de ambiências novas, que estejam aptos a localizar novos relacionamentos dentro da realidade rapidamente em mutação.

De acordo com o PCN[1] a leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas.

Em consonância com esses pressupostos, justifica-se o ensino de estratégias que possam contribuir para o desempenho docente na tarefa de promover a utilização de estratégias que lhes permitam interpretar e compreender os textos escritos de maneira autônoma.

3 - O PROCESSAMENTO DO TEXTO

Os autores Heinemann e Viehweger (1991) concebem o texto como um processo definido por quatro grandes sistemas de conhecimento responsáveis pelo processamento textual:

Conhecimento lingüístico: corresponde ao conhecimento do léxico e da gramática, responsável pela escolha dos termos e a organização do material lingüístico na superfície textual, inclusive dos elementos coesivos.

Conhecimento enciclopédico ou de mundo: compreende as informações armazenadas na memória de cada indivíduo. O conhecimento do mundo compreende o conhecimento declarativo, manifestado por enunciações acerca dos fatos do mundo ("O Paraná divide-se em trezentos e noventa e nove municípios"; "Santos é o maior porto da América Latina") e o conhecimento episódico e intuitivo, adquirido através da experiência ("Não dá para encostar o dedo no ferro em brasa.").

Ambas as formas de conhecimento são estruturadas em modelos cognitivos. Isso significa que os conceitos são organizados em blocos e formam uma rede de relações, de modo que um dado conceito sempre evoca uma série de entidades. É o caso de futebol, ao qual se associam: clubes, jogadores, uniforme, chuteira, bola, apito, arbitro... Aliás, graças a essa estruturação, o conhecimento enciclopédico transforma-se em conhecimento procedimental, que fornece instruções para agir em situações particulares e agir em situações específicas.

Conhecimento interacional: relaciona-se com a dimensão interpessoal da linguagem, ou seja, com a realização de certas ações por meio da linguagem. Divide-se em:

Conhecimento ilocucional: referentes aos meios diretos e indiretos utilizados para atingir um dado objetivo;

conhecimento comunicacional: ligado ao anterior, relaciona-se com os meios adequados para atingir os objetivos desejados;

conhecimento metacomunicativo: refere-se aos meios empregados para prevenir e evitar distúrbios na comunicação (procedimentos de atenuação, paráfrases, parênteses de esclarecimento, entre outros).

Conhecimento acerca de superestruturas ou modelos textuais globais: permite aos usuários reconhecer um texto como pertencente a determinado gênero ou tipo.

3.1 - Texto e Contexto

Mencionamos na introdução do presente artigo a noção de iceberg, aquilo que é mostrado na superfície (o explícito) e uma imensa superfície (o explícito). Compartilhando o que postulam as autoras Koch & Elias (2006) podemos chamar de contexto o iceberg como um todo, ou seja, tudo aquilo, que de alguma forma, contribui para ou determina a construção de sentido que não existe a priori, mas é construído na interação sujeitos-texto, daí a importância do contexto, o que significa mobilizar vastos saberes:

-a materialidade lingüística do texto:

  • o gênero e sua funcionalidade
  • a tematização proposta no título
  • a data de publicação
  • o meio de veiculação

Ao iniciarmos nossa leitura, situamo-nos em um contexto, ativamos nossos conhecimentos para a construção do sentido do texto.

O contexto é dessa forma indispensável à compreensão leitora englobando não só o co-texto (o lingüístico), como o extralingüístico, a situação de interação imediata e mediata e o contexto cognitivo dos interlocutores que reúne todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória dos atores sociais:

  • o conhecimento lingüístico
  • o conhecimento enciclopédico
  • o conhecimento da situação superestrutural ou tipológico
  • o conhecimento estilístico
  • o conhecimento de outros textos ( intertextualidade)

Neste artigo deteremo-nos no conhecimento lingüístico. O conhecimento do léxico e o que este implica na construção de sentidos do texto.

5- POR UMA PROPOSTA DE LEITURA SIGNIFICATIVA

Segundo Solé (1998), para que uma pessoa se envolva em qualquer atividade de leitura, é necessário que ela sinta que é capaz de ler, de compreender o texto tanto de forma autônoma, como apoiada em leitores mais experientes. Enfatiza que a leitura de verdade é "aquela que realizamos os leitores experientes e que nos motiva, é a leitura na qual temos controle: relendo, parando para saboreá-la ou para refletir".

Um dos requisitos fundamentais para a compreensão leitora que ao nosso ver merece bastante destaque é o conhecimento prévio. É aquilo que o leitor traz sobre o mundo e orienta-o para a reorganização das informações textuais no nível semântico, e intencionalmente, deve resultar em um processo de extração das idéias principais (macroestrutura). E quanto a este pressuposto, cumpre o léxico um papel de fundamental relevância, uma vez que segundo Terzi (1998) é na palavra que se increve o processo de atribuição de experiências e conhecimentos previamente adquiridos pelo leitor. São as palavras que determinam o processo de fazer sentido do texto e que ao mesmo tempo, vão sendo re-significadas no próprio processo. Assim, se o leitor apresentar dificuldade no nível mais básico, como o do léxico, esta pode interferir na consecução dos níveis mais altos.

A título de exemplificação, examinemos o texto a seguir para atentarmos como o léxico cumpre um papel de suma importância na compreensão de sentidos.

Piscina

Fernando Sabino

Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e tendo ao lado uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do morro, comprometesse tanto a paisagem.

Diariamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d´água na cabeça. De vez em quando, surgia sobre a grade a carinha de uma criança, olhos grandes e atentos, espiando o jardim. Outras vezes eram as próprias mulheres que se detinham e ficavam olhando.

Naquela manhã de sábado, ele tomava seu gim-tônica no terraço, e a mulher um banho de sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo portão entreaberto.

Era um ser encardido, cujos molambos em forma de saia não bastavam para defini-la como mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um bicho. Por um instante as duas se olharam, separadas pela piscina.

De súbito, pareceu à dona da casa que a estranha criatura se esgueirava, portão adentro, sem tirar dela os olhos. Ergueu-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e viu com terror que ela se aproximava lentamente: já transpusera o gramado, atingia a piscina, agachava-se junto à borda de azulejos, sempre a olhá-la em desafio, e agora colhia água com a lata. Depois, sem uma palavra, iniciou uma cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e em pouco tempo sumia-se pelo portão.

Lá no terraço, o marido, fascinado, assistiu a toda a cena. Não durou mais de um ou dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e de paz que antecedem um combate.

Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a casa.

Curso Moderno de língua portuguesa: primeiro grau, 7ª. série/Douglas Tufano. – São Paulo: Moderna, 1987. p. 29

Diante do texto "Piscina" de Fernando Sabino, recorremos a uma série de estratégias no trabalho de construção de sentidos. Nossa atividade de leitores ativos em interação com o autor e o texto começa com antecipações e hipóteses elaboradas com base em nossos conhecimentos sobre:

  • O autor do texto: Fernando Sabino
  • O gênero textual: crônica
  • O título: "Piscina" que como veremos cumpre um grande papel na construção de sentidos do texto.

Passemos agora a ativação de nossos conhecimentos, já no início do primeiro parágrafo nos deparamos com as palavras grotescos e alastrando. Segundo o verbete do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: grotesco(ê). [Do it. grottesco.] Adj. 1. Que suscita riso ou escárnio; ridículo: indivíduo grotesco; moda grotesca. 2. Tip. V. lineal. (2). S. m. 3. Qualidade ou caráter daquilo que é ridículo,O grotesco da situação ressaltava em toda a sua força. [Cf. grutesco.] Enfim, grotesco é sinônimo de feiúra e mal gosto.

Já ao verbete alastrar temos [De a-2 + lastro1 + -ar2.]

V. t. d.

1.Carregar, ou cobrir com lastro; lastrar.

2.Cobrir, espalhando; cobrir, encher: &

3.Propagar; difundir: 2

4.Derramar, estender: 2

V. t. d. e i.

5.Encher, cobrir.

V. t. d. e c.

6.Alastrar (2 e 3): 2

V. p.

7.Estender-se, espalhar-se, alargar-se gradualmente: &

8.Ampliar-se, alargar-se.

9.Lavrar, propagar-se, espraiar-se, grassar, lastrar: &&

Enfim denota aquilo que se propaga, mal comparando o que se alastra é erva daninha. Mais além encontramos o vocábulo comprometer, Do lat. compromittere.]

V. t. d. e i.

1.Fazer assumir compromisso; obrigar por compromisso: 2

2.Implicar; envolver: 2

V. t. d.

3.Dar, como garantia; empenhar: 2

4.Expor a perigo; arriscar, aventurar: 2

5.Pôr (alguém) em má situação, ou em situação suspeita: 2

V. p.

6.Assumir compromisso, responsabilidade; obrigar-se

Procedendo a um exame do léxico no texto temos no 1º parágrafo : "Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e tendo ao lado uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do morro, comprometesse tanto a paisagem"; ao nos determos sob os vocábulos grotescos, alastrar e comprometer, percebemos pela carga semântica que carregam estas palavras nesse contexto o o ponto de vista discriminatório de quem está na mansão que se lamenta que os barracos estraguem a paisagemque pelos nossos conhecimentos prévios e pelo que o texto nos informa situa-se na Lagoa Rodrigo de Freitas, localizada na zona Sul da cidade, é um bairro de classes média-alta e alta. Situando-nos assim nesse contexto, damos início à construção de sentidos do texto.

No quarto parágrafo temos a descrição de uma mulher, a seleção lexical utilizada foi: ser encardido trajando molambos, mais a frente temos a referenciação a essa mulher, como bicho e a seguir já no quintoparágrafo como estranha criatura.

No último paragrado em "...Não durou mais de um ou dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e paz que antecedem um combate", a cena vivida pelos personagens é comparada a um momento de guerra.

Todas as palavras que com maestria foram selecionadas pelo narrador do texto servem para mostrar o contraste entre a riqueza de alguns e a miséria de outros. A mulher da favela é associada a um bicho, a um ser indefinido, sem identidade. O narrador se refere a ela como um "ser encardido", "silenciosa como um bicho", "estranha criatura". À marginalização social corresponde a desumanização da personagem. Enfim, o título "Piscina" é o grande divisor de águas, para a mulher da mansão a piscina significava o ócio, o luxo, a ostentação, para a outra, a sobrevivência, um bem vital. A piscina serve como o símbolo da desigualdade social, e é disto que trata o texto – o sentido mais global.

Fica claro, assim, que o léxico cumpre grande importância na construção de sentidos. Quanto maior for o conhecimento prévio do léxico melhor será a construção e reconstrução de sentidos do texto.

Vimos de forma geral como o uso de estratégias concorrem para a compreensão da compreensão leitora que em consonância ao que postula Castro & Dionísio (2003) os textos devem lidos autonomamente e não como estes vêm sido normalmente praticados nos exercícios de compreensão leitora que com seus enunciados interrogativos, declarativos e imperativos apontam para uma compreensão predeterminada pelo autor do livro didático atribuindo aos leitores papéis interpretativos determinados.

6- CONCLUSÃO

O dever da escola e dos professores em geral é fazer com que o aluno aprenda o que não sabe. Ler o mundo ele já sabe. O que precisa aprender ler é a palavra, não a decodificação desta isoladamente, mas parafraseando Bakhtin (1997) a palavra que constitui o produto da interação do locutor e do ouvinte.

Um dos objetivos deste artigo foi discutir a importância da compreensão leitora e que para atingir tal habilidade, o professor pode lançar mão das estratégias de leitura que de uso sistemático incorporarão ao ato de ler dos aprendizes e estes paulatinamente transformar-se-ão em leitores proficientes.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail (1997). Marxismo e filosofia da linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec.

CASTRO, Rui Vieira de; DIONÍSIO, Maria de Lourdes. A produção de sentido(s) na leitura escolar: dispositivos pedagógicos e estratégias discursivas no "trabalho interpretativo". In: FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes. Produção de sentido: estudos transdisciplinares. São Paulo: Annablume; Porto Alegre: Nova Prova; Caxias do Sul: Educs, 2003.

HEINEMANN, W. & D. VIEHWEGER (1991) Textlinguistik: eine Einführung. Tübingen: Niemeyer.

KLEIMAN, Ângela. (1995) Oficina de leitura. Campinas: Pontes.

KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

SMITH, Frank. Leitura significativa, Trad. NEVES, Beatriz Affonso. 3. ed. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda.1999

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

TERZI, Sylvia Bueno (1998). A construção da leitura. 2ª ed., Campinas: Editorada UNICAMP.

VIANA, FL & TEIXEIRA, MM (2002). Aprender a ler. Da aprendizagem informal
à aprendizagemformal. Porto: Edições ASA.

 


[1] In: Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos de ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília:MEC/SEF, 1998, PP. 69-70.