INTRODUÇÃO




Antes de vir parar aqui (Prisão) eu só tinha roubado um rádio pra comprar um ?bagulho?, umas ?trouxinha" sabe, ?mel?, ?pasta?. Queria ficar ligada! Aí os ?homi? me pegou. A casa caiu. Antes só era viciada, agora, aqui aprendi a enrolar a droga, a roubar sem ser vista e o mais gostoso, a beijar e ?foder? com mulher...Muito bom, muito legal, muito gostoso. Mas continuo gostando de homem, só que agora gosto dos dois.
Detenta da Penitenciária Feminina de Manaus, que cumpre pena por Tráfico Internacional de Drogas (uma mula) e que já cumpriu mais de um terço da pena, devendo migrar para o regime semi-aberto em agosto. Manaus, 2010.




Conviver com pessoas que adentram o Sistema Prisional, trazendo consigo desesperança, revolta, desejo de vingança, desconfiança, angústia, medo e muita ignorância. Essa é a missão cotidiana de homens e mulheres que trabalham como agentes penitenciários e/ou policiais militares nas unidades prisionais do Estado, que compõem por assim dizer, o Sistema Prisional do Estado do Amazonas.

Como então não enlouquecer? Como não desumanizar-se? Como ficar neutro, impassível e indiferente em tal circunstância? É possível?

Sem querer esgotar o tema ou responder à questão acima, como quem fornece uma resposta definitiva, construiremos um texto, à base de reflexões pertinentes às estratégias defensivas ou de defesas, que os trabalhadores do sistema prisional em Manaus elaboram como forma e/ou alternativa de continuidade de seu trabalho, sem, contudo, perderem a sanidade.
Christophe Dejours (1987) enfatiza em seus estudos, que falar da saúde será sempre difícil. Porém, evocar o sofrimento e a doença é, em contrapartida, mais fácil: todo o mundo o faz. De fato, o eminente psiquiatra e fundador da Teoria da Psicodinâmica do Trabalho, estava com razão em proceder a tal afirmação. Prossegue ele, até lembrando Dante Alighieri em A Divina Comédia, quando descreve o inferno, pintando-o em cores vivas, como se lá já estivesse. Da mesma forma é com relação à doença, pois sempre temos um talento todo especial para dela falar, mais do que do próprio estado de saúde.

Paradoxal, mas, compreensivo, visto que, a experiência vivida é mais forte do que qualquer palavra proferida. Pessimismo ou apenas, expressão de momentos vividos em cores vivas e fatos marcantes? É o que tentarei mostrar no presente trabalho, sem ser óbvio ou academicista demais, mas, apenas, objetivo e reflexivo.

As condições de trabalho enfrentadas pelos agentes penitenciários, suas vicissitudes, angústias e expectativas serão alvo das reflexões que se seguirão no texto, tentando mostrar que muitos comportamentos atribuídos como "anormais", nada mais são que defesas ou estratégias defensivas elaboradas (bem ou mal) pelos trabalhadores para exercerem suas atividades.

Falar de trabalho sem mencionar o modus operandi desenvolvido e enfim adotado pelos profissionais de segurança que lidam com os detentos vinte e quatro horas por dias, durante os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, seria incoerente e obtuso. Por isso, será com o testemunho de um psiquiatra que já atuou no sistema e dirigiu, inclusive, uma das unidades prisionais, que buscaremos demandar nossas impressões e reflexões, almejando tecnicamente explicar o porquê de muitos comportamentos adotados em serviço.

Ainda, oportunamente, faremos uma breve menção ao trabalho desenvolvido pelo psicólogo no sistema prisional. Ênfase às dificuldades mais recorrentes e aos desafios de lidar com homens e mulheres condenados por algum delito e/ou crime específico, e também, com outro grupo de homens e de mulheres que têm, por sua vez, como função e missão, zelar pela integridade desses presos, mantendo-os confinados, sob vigilância e em ordem.
Sendo assim, partilharemos reflexões sobre a natureza do sistema prisional, os detentos que o compõe e principalmente o perfil profissional dos seus agentes de segurança. Dando especial atenção é claro, ao modo pelo qual os trabalhadores recorrem para aliar as características de suas atividades com a sua vida fora do trabalho. Será a reflexão acerca das estratégias defensivas ou de defesa do ego, a natureza dessa discussão que ora iniciamos.


























DESENVOLVIMENTO




Que vai fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Detenção? Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas continuarão no mesmo pé ? porque a causa dos abusos não reside na incapacidade de um funcionário, mas num vício essencial do sistema, num defeito orgânico do aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador que há de concertar o que já nasceu torto e quebrado. (Olavo Bilac)




As palavras de Olavo Bilac, em 1902, soam com atualidade. De fato, elas poderiam ser ditas em qualquer momento dos últimos duzentos anos. As prisões modernas parecem já nascer sendo percebidas como tortas e quebradas. Ao mesmo tempo, parece perdurar numa esperança de que elas possam funcionar bem, e ser um lugar da recuperação daqueles que se desviaram das condutas socialmente aceitas. Recuperação ou castigo, boa ou má solução para a criminalidade, a prisão é um debate permanente, que durante muito tempo serviu aos governos como exibição de sua modernidade, de sua adesão aos princípios liberais.

Tantas questões difíceis podem ser motivo para falar sobre a prisão ou para calar sobre ela. Mas, aqui especificamente, o que faremos é refletirmos um pouco, a partir de pressupostos oriundos da Psicodinâmica do Trabalho, que tem em Christophe Dejours seu principal e primeiro postulante, acerca das estratégias encontradas por homens e mulheres que labutam em duas Unidades Prisionais de Manaus, pertencentes ao Sistema Prisional do Estado do Amazonas: A Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa e a Penitenciária Feminina.

As duas unidades prisionais referidas acima comportam homens e mulheres que cumprem penas ou aguardam na condição de presos provisórios a data para serem julgados. Com uma rotina de vinte e quatro horas ininterruptas, intercaladas com trocas diuturnas de plantão, tanto pela equipe de carceragem, quanto pelo grupamento de polícia militar, responsável pela segurança externa dos dois estabelecimentos, presos e profissionais convivem num espaço e realidade marcados pela violência expressa ou velada. Todos convivem sob o mesmo império: o do medo.

Negar a existência de um sofrimento real presente no interior de tais instituições é negar a essência do próprio contexto no qual todos estão inseridos. Quando feito pelo Poder Público, trata-se de uma resposta oficial pronta e nem sempre condizente com a verdade, mas que satisfaz uma cadeia hierárquica e ao mesmo tempo, serve como resposta aos vários segmentos sociais. Sendo assim, fica fácil compreender, pois a motivação é nitidamente política.

Porém, quando a negação surge das entranhas do próprio corpo carcomido do sistema, representado por suas instituições e casas de detenção, aí, podemos parar, olhar e em seguida refletir. Sim, refletir, pois, devemos estar diante de uma saída. Saída para quê? Para o sofrimento.

Quando se observa a explosão da violência intramuros, em casas de detenção como as já especificadas, vislumbra-se, seja através da imprensa, trabalhos de pesquisa ou simplesmente, por relatos de quem lá trabalha ou cumpre pena, então, a verdadeira face do sofrimento que Dejours mencionou em seus trabalhos. Há aqui um elo invisível, mas perceptível dentro dos presídios, que une presos e agentes penitenciários, tornando-os membros de um mesmo corpo. O sofrimento.

Ana Magnólia Mendes, no primeiro capítulo do livro Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisa, por ela própria organizado, apresenta o sofrimento nascido no trabalho, como fruto de uma relação do trabalhador com a organização (aqui instituição), bloqueada em virtude das dificuldades de negociação das diferentes forças que envolvem o desejo da produção (direção) e o trabalhador (Ana M. Mendes, 2007).

Dejours (1980/87) apresenta a organização do trabalho como sendo a própria divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa a ser realizada e as relações de poder que envolvem o sistema hierárquico, as modalidades de comando e as questões de responsabilidade.

Se nos voltarmos para o sistema prisional e pensarmos no que consiste o mesmo, podemos traçar um paralelo com os conceitos de Dejours e construir um perfil com as seguintes peculiaridades:
- A divisão do trabalho organizada dentro das duas unidades prisionais reveste-se de características que são próprias daquelas instituições penais. À Direção cabe a tarefa de gerir e administrar a unidade, definindo estratégias de atuação e intervenção; as tarefas por sua vez que são realizadas pelos agentes de segurança têm como conteúdo, essencialmente, a vigilância constante dos detentos e a comunicação imediata aos superiores do menor sinal de anormalidade na rotina dos raios* que separam as alas; as relações de poder se dão em duas esferas, sendo uma entre o corpo hierárquico institucional e a outra na relação com os próprios detentos. Com relação à hierarquia institucional, esta se dá de maneira direta e verticalizada, onde a quebra dessa cadeia, representaria, a quebra da própria ordem e da disciplina entre os agentes. Tendo que conviver com a hierarquia oficial, os profissionais têm que conviver sob a égide de outra, a dos presos, horizontalizada e não-oficial, que constitui uma espécie de garantia de normalidade.

Nesse contexto, o desenvolvimento, daquilo que Dejours (1980/87) chamou de estratégias defensivas ou de defesas, irá diferenciar o conceito de estratégias de condições de trabalho, dizendo que o primeiro se liga ao ambiente, seja físico, químico e/ou biológico, condições de higiene, de segurança e às características antropométricas do trabalho. Já as relações de trabalho dizem respeito às relações humanas que têm origem na própria organização do trabalho, ou seja, nas relações com os superiores e subordinados. O sofrimento continua Dejours, surge então, quando não é mais possível a negociação entre o sujeito e a realidade imposta pela organização do trabalho.
____________________
*Um Raio é composto por uma ala de oito (08) celas, quatro (04) dispostas à direita e quatro (04) à esquerda.
Dessa forma, a instalação do sofrimento no âmbito de instituições prisionais, se dá à medida que a direção não autoriza a subversão de um trabalho oficial e previamente organizado, em um trabalho que a criatividade, a inteligência e a iniciativa, sejam a garantia de variabilidades no modo de fazer as tarefas sob o prisma da subjetividade.

Se o saudável se relaciona ao enfrentamento das imposições e pressões do trabalho e o patológico às falhas nos modos desse enfrentamento, então, os agentes de carceragem exprimem essa falha quando tomam para si e assumem atitudes comuns aos presos, principalmente as mais violentas.

Segundo informação prestada pelo Psiquiatra Rogelio Casado, ex-Diretor do Hospital Psiquiátrico de Custódia do Estado, os indivíduos que trabalham no sistema prisional, acabam depois de alguns anos desenvolvendo determinadas estratégias que impedem a instalação de doenças, sejam elas mentais ou psicossomáticas. Quando essas defesas falham ou como ele mesmo disse, "não mais se sustentam", então as saídas se tornam inadequadas e adoecedoras.

O médico nos explica, que as saídas defensivas que nós seres humanos desenvolvemos, são comparadas ao curso d?água no interior de uma residência. A água para ser utilizada de maneira racional e adequada em uma casa, precisa ser canalizada, sendo isso feito através de canos, sejam eles de ferro ou PVC. Uma vez construído o encanamento residencial, então se distribui pelo interior da residência torneiras, que farão a água escoar quando necessário e evitar posteriormente sua vazão e desperdício.

Com essa analogia, continua o Psiquiatra, fica fácil entender os movimentos de uma pessoa, que segundo ele, também é uma "casa", que traz em seu interior um rio represado, mas que vez por outra, jorra infinitos litros d?água, num desperdício de energia mal canalizada. Para Rogelio, assim como a água, a energia ou pulsão, sempre procurará uma saída, que não necessariamente terá que ser por uma torneira. Ou seja, da mesma maneira que a água, a energia sempre encontrará uma saída.

Corroborando o que diz o doutor Rogelio, também creio que indubitavelmente, as saídas defensivas às quais recorrem os agentes de segurança prisionais nem sempre são as mais adequadas, mas, são as que estão naquele momento, à sua disposição. Usando a analogia que fez Rogelio Casado, lembro que em uma casa, quando um cano está furado, seja o buraco pequeno ou grande, a água passa a chegar às torneiras, mais fraca ou a não chegar. E para onde estaria indo a água que não chega às torneiras? Buscando uma saída, que pode ser através de infiltrações nas paredes ou vazamentos pelos cantos da casa, saída essa, que podemos afirmar, inadequada, mas, uma saída.

Nas experiências vividas pelos agentes penitenciários, percebe-se que quando ocorre perda de controle de uma determinada situação, as conseqüências são percebidas por todos no interior do estabelecimento. A violência, por exemplo, usada de forma a conter a violência iniciada pelos presos, se torna um veneno em vez de ser o antídoto, pois a medida para contê-la foi perdida. Se a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, então, o que era para curar, passa a fazer mal, ou seja, causar sofrimento.

Não são poucos os profissionais que se queixam de estresse, fadiga, depressão, crises nervosas, gastrites, dentre outras. Dejours (1987) ressalta em seus estudos sobre a psicodinâmica do trabalho, que quando as defesas caracteriais e comportamentais não conseguem conter a gravidade dos conflitos ou a realidade, os sujeitos não descompensam de um modo neurótico, nem de um modo psicótico. A desorganização à qual sucumbe o doente não se traduz por sintomas mentais, mas pelo aparecimento de uma doença somática.

As doenças consideradas então, psicossomáticas, seria o "cano furado", que leva o sujeito, como se diz no linguajar popular, "a entrar pelo cano". Picardias à parte, a resiliência não é igual em todos os indivíduos, alguns suportando mais e outros menos as pressões do dia-a-dia. Naqueles onde a resiliência se apresenta mais forte, as defesas, logo se apresentarão mais sólidas e duradouras, enquanto, que em pessoas de resistência diminuta, as defesas por sua vez, serão menos eficientes.

A acumulação de energia pulsional e a conseqüente impossibilidade de canalização ou descarregamento dessa força represada, poderá levar a situações, onde o sujeito passe a desenvolver formas inadequadas ou às vezes bizarras para se defender no interior da organização. Se não é possível uma estratégia socialmente aprovada, então, passa-se a uma segunda alternativa, que encontra no adoecimento orgânico, uma resposta defensiva, que soa como um cifrado pedido de socorro.

Se um indivíduo apresenta, como bem lembra Dejours (1987), uma estrutura mental com características de empobrecimento ou ineficácia das defesas do ego (falta de vida onírica ou de atividades fantasmáticas, ausência de sintomas psiconeuróticos, má qualidade do funcionamento mental, etc.), menos ele resistirá às pressões oriundas da organização e sua macro-estrutura, vindo a apresentar comportamentos considerados inadequados no grupo onde estiver inserido.

Nesse sentido, entendemos que os trabalhadores que integram o sistema prisional, até pelas péssimas condições de trabalho, baixa remuneração e inadequado acompanhamento psicológico, tendem a desenvolver o mais rapidamente estratégias para se defender no âmbito do sistema e a integrá-las à sua personalidade e ao seu perfil comportamental.

Por exemplo, os casos de corrupção dentro dos presídios, onde os agentes aparecem como cooptados pelos presos ou pelos familiares destes, seria uma estratégia para se manter ileso entre a população carcerária e auferir ganhos que complementem a renda salarial? Em termos jurídicos e administrativos, poderíamos falar em corrupção passiva, peculato (corrupção impetrada por agente público), conduta imoral e assim por diante. Mas, em termos psicodinâmicos, há que se considerar, as possíveis estratégias para a consecução das atividades cotidianas.

Já em relação às condutas violentas que são reveladas em ocasiões, como revistas às celas, inspeção aos detentos, debelação de rebelião e/ou outro procedimento, podemos qualificá-las como sendo uma resposta extrema, que garante aos seus perpetradores o desenvolvimento das suas atividades e a convivência entre os detentos. Não haveria, sem essas estratégias defensivas, possibilidade real, de uma permanência prolongada em um ambiente de trabalho tão específico quanto o prisional, tanto que, não são poucos os agentes que pedem exoneração ou simplesmente abandonam o emprego.

Explorar o sofrimento é algo que de fato, ocorre entre aqueles que trabalham no sistema prisional. O início se dá com o próprio Estado explorando o sofrimento presente entre os agentes, com a implantação de uma política de banalização dos fenômenos sociais que ocorrem nos presídios, como a própria violência, por exemplo. Os agentes passam então a reproduzir essa banalização com os detentos, compartilhando com estes de suas "gírias", "armações", "expectativas" e por que não, de seus "medos". Os presos por sua vez, irão explorar o sofrimento presente entre eles, através do cumprimento e "respeito" a uma hierarquia organizada pelos e entre os detentos. Essa hierarquia obedece a critérios como tempo no presídio, a especificação da pena que o preso cumpre (de acordo com o Código Penal), a participação do interno em alguma facção criminosa e por fim, sua vinculação a determinada organização religiosa.

A exploração do sofrimento representa a manutenção de um status quo, que para todos no interior de uma casa de detenção tem um significado importante e supre, por assim dizer, as dúvidas e medos que permeiam uma realidade tão dura, quanto a que é presente no sistema prisional.

Mas, de onde surgem tais estratégias, quer dizer, de que infortúnios ela protege os profissionais em um presídio? Apresentamos algumas considerações que enriquecem nossas reflexões e ajudam a entender e compreender as estratégias desenvolvidas pelos agentes penitenciários. Seria a presença de três elementos no interior das organizações, que Dejours explora em seus trabalhos, a ignorância, o medo e a angústia, que iniciam uma organização efetiva dessas defesas.

Será que o medo aumenta com a ignorância? Christophe Dejours, diz que: "quanto mais a relação homem/trabalho está calcada na ignorância, mais o trabalhador tem medo. São mais duramente atingidos, principalmente os que são novos no trabalho, estando mais propensos aos medos e angústias, pois ainda não conhecem os ?macetes? do serviço".

Num contexto como do Sistema Prisional Amazonense, a presença do medo, da ignorância e da angústia, são sentidos todos os dias, a todo instante. Se imagine trabalhando entre homens e /ou mulheres que perderam (temporariamente) a liberdade e que se encontram numa realidade hostil e perigosa. Um lugar onde, como os agentes dizem: se mata um leão por dia e se tenta chegar vivo até o final de um dia.

A ignorância é representada pela incompreensão e o não entendimento por parte dos trabalhadores que muitos dos que ali cumprem suas penas, já as cumpriam fora dos muros do presídio. Penas impostas por uma história de vida marcada por injustiça social, falta de oportunidade, desemprego, convivência diária com a violência, enfim, uma sorte de infortúnios que representam estatisticamente, a passagem, pelo menos uma vez na vida, por instituições prisionais como as contempladas na pesquisa de Mestrado que ora organizo.

O medo pode ser vislumbrado pelo clima de constante desconfiança e apreensão entre a população carcerária, onde a tentativa de se manter vivo, enquanto cumpre sua pena, materializa o temor vivido pelo preso no interior das prisões. Os agentes carcerários exprimem seus medos pelas estratégias de defesas desenvolvidas, ora explícitas, ora implícitas. As explícitas são representadas pelas ações como as que vimos no dia 01.06.10 (3ª feira) num estabelecimento penal do Estado do Paraná, exibidas no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, quando o chefe da segurança, na tentativa de coibir uma indisciplina e princípio de rebelião entre os detentos de uma ala do presídio, espancou dois dos envolvidos, como forma de mostrar aos demais a sorte para os que optam por aquela forma específica de protesto. As implícitas por sua vez, podem ser exemplificadas em atitudes veladas de auto-proteção que os trabalhadores desenvolvem, como as que vemos na Cadeia Pública Desembargador Vidal Pessoa, em Manaus, por exemplo, onde os carcereiros, levam as roupas sujas dos Xerifes* para suas casas e as lavam e passam, numa estratégia de angariar o "apreço" e a "confiança" dos mesmos e assim, poder trabalhar "tranquilamente".

____________________
*Xerifes são os líderes de cada ala do presídio e que ditam as "regras" aos outros presos.
Já a angústia pode ser identificada por parte dos agentes pela preocupação presente em seus pensamentos com suas famílias, pois, muitos presos tentam coagir os trabalhadores utilizando a tática de ameaçar os familiares destes.

A preocupação com os familiares é uma constante entre os agentes e é uma explicação para muitos "desvios" praticados no desempenho das atividades destes. Imaginemos por um instante que um ente querido, seja ameaçado e que o autor da ameaça, condicione a segurança e o bem estar do mesmo (filhos, pais, cônjuges, etc.) à aceitação por parte do trabalhador das condições a si impostas e que venham a favorecer determinado(s) sujeito(s) ou segmento(s) dentro da carceragem. Você não cederia frente a um risco real e iminente de ver um parente seu ferido, mutilado ou até mesmo assassinado? Vale lembrar aqui, que os agentes também têm suas famílias.

Entre os presos a angústia é sentida por sua vez, mais fortemente entre os novatos, pois, além de necessariamente terem que se adaptar a um ambiente novo, altamente hostil e principalmente imprevisível, têm que rapidamente serem aceitos em algum dos muitos grupos ou facções do presídio, o que não é tarefa fácil. Caso isso não ocorra, o preso estará por conta própria, o que significaria o mesmo que uma sentença de morte.

Ignorância, medo, angústia, tudo ao mesmo tempo e em tempo real. Desenvolver estratégias em um ambiente cuja expectativa de vida depois que se adentra nele é medida em dias, horas e minutos, passa a ser uma questão de sobrevivência e garantia de "saúde". E saúde aqui não significa "normalidade", visto que entre os próprios agentes penitenciários, "normal" é o modus operandi da instituição e não o que é dito fora dos muros pela sociedade em geral.

Como as prisões não têm por objetivo, de fato, recuperar ninguém, mas somente, afastar e isolar o indesejável, então, façamos um esforço para entender por que aqueles homens e mulheres que todos os dias ou que de plantão em plantão realizam as tarefas e fazem o trabalho que muitos de nós não teríamos nem disposição e nem coragem para fazer, precisam desenvolver determinadas estratégias defensivas organizadas de maneira inconsciente pelo ego, para que essas defesas os mantenham vivos e possam assim, retornar para o seio de suas famílias.
E o Psicólogo, onde entraria nesse contexto? A meu ver, o papel do Psicólogo deve ser o de possibilitar aos profissionais condições de trabalharem seus medos, angústias e suas ignorâncias. Como?

O Psicólogo poderia interdisciplinarmente, ser um mediador entre os trabalhadores e a Direção, bem como, entre aqueles e os detentos. Para tanto é necessário reconhecer a humanidade presente no preso, que ali ganha para si e sua família o sustento, tendo para isso, que conviver com pessoas privadas da própria liberdade.

Assim sendo, é justamente pelo reconhecimento da individualidade do detento e do agente penitenciário que na sua atuação profissional, se configurará a humanização desejada.

Em síntese, poderíamos dizer que o Psicólogo que atue em um estabelecimento prisional, pode e deve:
- Participar da programação das atividades de atendimento aos detentos e aos funcionários do estabelecimento, de maneira a garantir melhor nível de convivência e trabalho;
-Verificar, eventualmente, a inabilidade de comportamento de funcionários e servidores que tratam diretamente com os presos propondo as medidas que julgar necessário;
- Identificar as necessidades de intervenções específicas (treinamentos, atendimentos individuais e/ou em grupo) para os funcionários e servidores do estabelecimento que tratam diretamente com o preso;
- Apresentar recomendações a respeito da atuação das demais unidades de atendimento aos presos em relação a casos específicos ou a problemas de caráter geral;
- Prestar assistência e colaborar com as demais unidades do estabelecimento;

- E por fim, desenvolver programas de valorização humana.

Desta forma, ser um profissional que atue na promoção da dignidade humana, reconhecendo o preso como uma pessoa e o agente como um cidadão que desenvolve uma atividade específica com riscos inerentes a ela, faz do Psicólogo Prisional um facilitador para o desenvolvimento de relações suportáveis no seio do sistema.



























CONCLUSÃO




Havendo em toda a parte muita casta de vadios que cometem insultos e extravagâncias inauditas, não é de admirar que no Rio de Janeiro, onde o maior número dos seus habitantes se compõe de mulatos e negros, que pratiquem todos os dias grandes desordens que necessitam ser punidas com demonstrações severas, que sirvam de exemplo e de estímulo para se coibirem, ainda que de nenhum modo se deve esperar que o sejam na sua totalidade.

Arquivo Nacional ? Rio de Janeiro. Relatório Real do Vice-Rei Luís de Vasconcelos (1779-1790).




Dejours (1987) revela que, a forma que o sofrimento se reveste, depende do tipo de organização do trabalho.

De fato, o tipo de medo, de ignorância e de angústia, ou seja, de sofrimento resulta das características da organização e/ou instituição do trabalho. Nisso, concordo com Dejours.

O Sistema Prisional, como vimos, produz um sofrimento específico e leva ao desenvolvimento de estratégias defensivas típicas desse contexto. Observamos que ao assumir as atitudes dos detentos e até seus "vícios", os agentes penitenciários, nada mais fazem do que garantir a continuidade de seu trabalho e de se manterem vivos.

Contra a angústia do trabalho e/ou a insatisfação com este, disse Dejours (1987): os operários (trabalhadores) elaboram estratégias defensivas, de maneira que o sofrimento não é imediatamente identificável. Assim disfarçado ou mascarado, o sofrimento só pode ser revelado através de uma capa própria a cada profissão, que constitui de certa forma, sua sintomatologia.

Ora, vejamos então o "malabarismo" que o ego tem que realizar num contexto como o de um estabelecimento prisional, onde a vida, o maior dom de todos, se quer pode ser assegurada aos que lá estão sejam como detentos, trabalhadores e/ou visitantes. O malabarismo chama-se justamente, estratégia de defesa ou simplesmente, defesa.

Não as vemos e nem as percebemos num primeiro momento. Somente se percebe essa máscara, na convivência com todos os que lá estão e, por conseguinte, na vivência da realidade vivida em seu interior ou como mencionam os agentes de carceragem; em suas entranhas.

A sintomatologia de que fala C. Dejours, nada mais é do que o modus operandi, como descrevemos neste texto, que os trabalhadores encontraram para conseguir desenvolver suas atividades, sem se darem conta, de que correm riscos reais a cada turno de trabalho ou a cada dia trabalhado, conforme a natureza da atividade desenvolvida e a especificação do cargo efetivo.

Trabalhar em condições assim, portanto, torna-se um desafio dia após dia, hora a hora, minuto a minuto, ala a ala e raio a raio. Como não desenvolver tais estratégias, se é justamente elas que os fazem suportar?

Suportar, então, significa de fato, continuar trabalhando, fazer o que tem que ser feito, obedecer às ordens superiores, conviver com os presos, não adoecer e no fim do turno de serviço, sempre retornar para a casa, que, aliás, é a regra de ouro, a número um, para todos os agentes penitenciários: A regra número um é: voltar sempre para a casa: vivo, de preferência.

Nesse contexto, a figura do psicólogo, enquanto profissional, pode e deve ser um facilitador no desempenho do papel desses trabalhadores, no sentido de fornecer-lhes condições favoráveis de desempenharem suas funções com equilíbrio e saúde.
Verifica-se que a modalidade de atuação do psicólogo nessas instituições ? os Estabelecimentos Penais -, tem representado historicamente um grande desafio e, assim, se constata, principalmente quando o objetivo é melhorar as condições de trabalho nesses locais.

Os estabelecimentos penais apresentam dois objetivos básicos, quer sejam a coerção/punição e a reabilitação, os quais devem nortear a prática daqueles que neles desenvolvem o seu trabalho.

Entretanto, tais objetivos trazem consigo contradições intrínsecas, fazendo com que tais contradições contaminem as próprias atividades desenvolvidas pelos trabalhadores em seu todo.

A divisão de tarefas nos presídios amazonenses tem conferido a diferentes equipes de trabalho a operacionalização destes objetivos, ou seja, à equipe de guarda compete a coerção/punição e à equipe de reabilitação e valorização humana, cabe a reabilitação e recuperação dos detentos. Vale ressaltar que a esta última equipe, está inserida a figura do psicólogo.

Essa cisão mostra-nos, já à primeira vista, que o conflito entre propostas de trabalho irão advir, e vencerá aquele que mais próximo estiver do objetivo maior da prisão.

A realidade carcerária brasileira tem nos mostrado que, acima de propostas efetivamente reabilitadoras, encontra-se o seu fim último: a punição retributiva. E é justamente aí que mora o perigo. Pelo menos para os trabalhadores. Por quê? Simples, pois a maioria dos detentos não entende ou faz questão de entender que os trabalhadores que lá estão não podem ser unicamente responsabilizados, mas, que fazem parte de um todo, quer dizer, do sistema.

Se for agente penitenciário, então, morre ou como eles dizem: vai pro saco ou então, vai comer capim pela raiz. Quem culpabilizar aqui? Fica difícil não fica, pois, tanto os detentos, quanto o profissional, sequer, têm noção ou consciência do que de fato ocorre e como ocorre, esse movimento do ego, na tentativa de livrar a pele de cada trabalhador.

Como conseqüência, constatamos o quanto a dinâmica interna das instituições penais é conflituosa e contraditória em suas bases, dificultando ou impedindo o psicólogo do oferecimento e da efetividade possível de seus serviços. Tem sido inconteste o reconhecimento de que, apesar das prisões incluírem uma porção desproporcionalmente elevada de casos deficitários social, psicológico, ambiental ou fisiologicamente, os programas de reestruturação do caráter e do comportamento têm resultado indiferentes para muitos reclusos.

Queremos deixar claro, portanto, que os psicólogos contam com tais complexidades enquanto obstáculos para o exercício de suas funções, pois se torna extremamente difícil uma proposta de reabilitação como conseqüência ou objetivo da sanção. As dificuldades que encontram bem como os elevados índices de reincidência ao crime por parte da população carcerária, não devem ser encaradas como falta de poder ou capacidade destes profissionais para auxiliarem na recuperação destes indivíduos, mas sim, como incompetência do Estado e má vontade política de seus representantes, bem como, à história de vida da maioria dos presos, marcadas por injustiça social e marginalização.

Sendo assim, o modus operandi encontrado pelos trabalhadores do sistema prisional amazonense, que possibilita a continuidade de suas atividades se caracteriza como uma defesa egoica, que garante aos mesmos, certa "normalidade" para viver e trabalhar. Essa normalidade é marcada então, como uma possibilidade de permanecer lúcido num ambiente que convida ao adoecimento e/ou ao enlouquecimento.

Podemos terminar com um pensamento de C. Dejours (1987), que em entrevista ao Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (CRP 06), em outubro de 1991, assim declarou: Sofrimento e doença podem ser vividos e interpretados pelas pessoas como golpes do destino ou como fatalidades. O sofrimento pode também ser considerado uma provação divina. Enfim, pode ser considerado ou interpretado como o preço a ser pago por fazer sua contribuição à evolução das relações sociais, à sua própria evolução ou à emancipação de seus próximos ou de seus filhos. Em outras palavras, a questão coloca-se fundamentalmente em relação à construção do sentido ou da significação do sofrimento e da doença .

Para aquelas pessoas que trabalham no Sistema Prisional do Estado do Amazonas, sofrimento é algo real, presente em seu dia-a-dia e "atenuados" por estratégias, que julgamos necessárias, permitindo assim, a resignificação tanto do sofrimento, quanto do medo e da ignorância, presentes em seu meio. A doença, representada para eles, como a impossibilidade de trabalhar e, portanto a possibilidade da família passar fome e outras necessidades torna-se fator de motivação, no sentido de evitá-la a qualquer custo, seja pela crença pessoal, pela superstição ou pelo intermédio da medicina popular ou tradicional, importando apenas, que disposição e saúde para trabalhar nunca faltem.

A liberdade, dizia Dejours (1987) não é um presente, mas, uma conquista. E os profissionais que labutam no sistema prisional aprendem a cada dia, um essa verdade. As soluções mágicas e ideais, de fato não existem, mas, a união entre eles e a esperança em melhorias para a classe profissional, têm sido fatores de motivação. Sabem que através de seu trabalho, não só alcançam sustento para suas famílias, mas dignidade para si. Entretanto, o problema imposto a eles, assim como para outros trabalhadores, como bem lembrou Dejours (1987), não é, absolutamente criar novos homens, mas encontrar soluções que permitiriam pôr fim à desestruturação e desintegração (porque não dizer) de um significado número dentre eles, pela ação direta do trabalho.








REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




01 - DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho. Estudo de Psicopatologia do Trabalho. 5ª Edição, revista e ampliada. Cortez Editora. São Paulo/SP, 1987.

02 - DEJOURS, Christophe. Da Psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 2ª Edição. Tradução: Franck Soudant. Organizadores: Selma Lancman e Laerte Idal Sznelwar. Editora Fiocruz. Rio de Janeiro/RJ, 2008.

03 - MENDES, Ana Magnólia (Org.). Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisa. 1ª Edição. Casa do Psicólogo, Editora, Gráfica e Livraria. São Paulo/SP, 2007.

04 - MENDES, Ana Magnólia (Org.). Trabalho e Saúde: o sujeito entre emancipação e servidão. Juruá Editora. Curitiba/PA, 2008.

05 - MARTINS, Lígia Márcia. A natureza do trabalho do psicólogo em Estabelecimentos Penais. Edipro. Bauru/SP, 1997.

06 - NUNES MAIA, Clarissa. História das Prisões no Brasil. Vol. 01 e 02. Editora Rocco Ltda.. Rio de Janeiro/RJ, 2009.