Mas o destino pulava para outra estrada. (...) o poder, aos tombos dos dados, emana do inesperado.                                                                                                                   (G. Rosa, 1985)

Os avanços constantes da Ciência e da Tecnologia comprometem todas as áreas do saber humano. Dessa forma, a leitura de textos literários usando categorias das ciências exatas é uma possibilidade deste século que permite novas abordagens. Vale dizer que a fragmentação das verdades absolutas cede espaço para novas construções, enfrentando aquilo que numa ordem estabelecida consistiriam nos ruídos responsáveis pelo Caos, ou pelo não-equilíbrio da significação.

Na concepção determinista, o indivíduo consiste num organismo passivo, governado por uma linearidade previsível e por estímulos promovidos pelo meio. Portanto, nesta perspectiva, quando os estímulos do mundo externo são controlados o comportamento humano, dependente deste mundo, também é controlado, visto que é comandado por interferências do meio. “Se conhecermos o estado de um sistema num instante inicial, poderemos determinar seu estado em qualquer instante ulterior."[1].

Lídia Basso em Teoria do caos[2] diz que todas as ciências, desde os tempos do filósofo grego Aristóteles, trabalhavam com o suposto de que o mundo físico é regido pela ordem, onde forças universais determinam o comportamento de todas as coisas. “A isso os homens davam o nome de Kosmos, palavra que significa ordem em oposição a chaos, desordem.”[3] . De acordo com esse raciocínio, a teoria de Newton foi durante séculos a base explicativa que identificava a linearidade como marco da compreensão científica. Para tal concepção, tudo que ocorre, ocorre por uma necessidade linear.

Por outro lado, houve então a busca do movimento ondulatório e das incertezas iniciando uma revolução no pensamento humano. A partir daí, ao encarar a dúvida e o imprevisível, a Teoria do Caos, coloca em xeque a forma de pensar determinista, fundamentada na ordem e na regularidade.

Visando um breve enfoque sobre “o tempo infinito” da Teoria do Caos, a Estória nº 3 de Tutaméia, escrita por João Guimarães Rosa servirá como objeto de observação focando o instante que propicia o caos, ou seja, a inversão na ordem seqüencial da narrativa. Tal observação se baseia em um dos conceitos básicos que compõem a Teoria do Caos que consiste na concepção de que uma pequena causa pode levar a um grande efeito.

A Estória nº 3 conta o episódio do encontro entre opostos. Joãoquerque, homem medroso, é surpreendido na casa de sua amante pelo bandido Ipanemão, assassino e estuprador de mulheres. Interessa destacar neste conto os elementos que caracterizam os personagens antagônicos, já que Guimarães constrói um protagonista com descrições de fraqueza e de covardia contrastando-se com seu rival, o terrível Ipanemão. “Joãoquerque, avergado homenzarrinho que ora se gelava em azul angústia, retornados os beiços, mas branco de laranja descascada, pálido de a ela lembrar os mortos.”[4]. Por outro lado, revela o seu oposto, como “medonho”, aquele que é “cruel como brasa mandada, matador de homens, violador de mulheres, incontido e impune como o rol dos flagelos (...) mandava no arraial inteiro (...) do tamanho do mundo”[5].

A trama é perpassada por uma quebra de simetria do tempo, já que um tempo irreal foi necessário para produzir o efeito do inesperado. Nesta condição, notamos o gosto de Guimarães Rosa pela inversão. Este aspecto impede que se crie um ponto de vista absoluto e estereotipado do comportamento de seus personagens. Assim, a matéria ficcional de que se nutre a tessitura narrativa de Estória nº 3, bem como Duelo e Os irmãos Dagobé, deixa o âmbito comum da linearidade para tecer as cenas com fios de inversão, contrariando as perspectivas deterministas, por relativizar verdades absolutas conforme o próprio Guimarães em entrevista avisou: “Espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável.”[6]

O primeiro bloco narrativo de Estória nº 3 revela linearidade quanto à transcursão dos acontecimentos:

Na hora, Joãoquerque assistia à Mira frigir bolinhos para o jantar, conversando os dois pequenidades, amenidades, certezas. (...) “Ô de casa. (...) se fitavam Joãoquerque e Mira, que tremeram tomando rebate. (...) Ô! Renovou-se abrupto o brado, esmurrada a porta. (...) estampido de arma. (...) correria na rua. (...) Mira deixando cair a escumadeira (...) trouxe ante rosto as mãos, por ímpeto de ato, pois já as retorcia e apertava-as contra os seios (...) Mira mesma mandou-o ir-se, com fechado cochicho. (...) Ela se ajoelhara, rezava, com numa mão a faca, pontuda, amolada, na outra o espeto, de comprimento de metro. (...) E se debatia já à porta dos fundos, custou-lhe rodar a tramela (...) Pôs-se para fora. (...) Pelo escuro quintal corre Joãoquerque, (...) e, quase no fim. (...) no tentar estacar, entrevendo acolá injustos vultos. (...) derrubou-se.[7]

Neste primeiro bloco, o “tempo da continuação” da Teoria do Caos ou o tempo cronológico da Teoria Literária são os elementos que estruturam as cenas. Joãoquerque vive no tempo da continuação, portanto mensurável. Entretanto, ao cair, sente a presença do tempo não mensurável em confronto com sua forma de viver determinista. Entre o primeiro bloco narrativo e sua sequencia, intercala-se um momento em que o “tempo infinito” penetra o mundo finito da narrativa. Neste instante se dá a quebra da linearidade, ocorre uma ruptura com a lógica do esperado colocando o personagem para transitar para uma dimensão ilógica que não pode ser mensurada.

Em muitos de seus textos e entrevistas televisivas, Ilya Prigogine, um dos responsáveis pela construção e divulgação da teoria do Caos e prêmio Nobel de Química de 1977, afirma que o “tempo infinito” é o dilema central da ciência contemporânea. Na Literatura, chamamos esse tempo de tempo psicológico e na Estória nº 3, tal instante consiste em um elemento que liga ações temporais anteriores e posteriores promovendo antagonismo entre estas ações. Além disso, este momento que se intercala entre as ações opostas pode ser considerado como um instante intermediário entre o equilíbrio e o desequilíbrio da estrutura, sem, no entanto deixar de alterar o que poderia ser previsto e, portanto, sem deixar de produzir um efeito inesperado que afeta a realidade de forma dissonante. Assim sendo, o Caos provoca a dialética do ser e do não-ser entre os personagens Joãoquerque e Ipanemão, Contudo não significa uma desordem completamente irracional, mas sim uma desorganização em processos padronizados.

Clarice Lispector delineia um instante que pode ser considerado como o “tempo infinito” da Teoria do Caos. Ela o descreve como um instante em que se pode “Estar ocupada – de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala”[8]. Trata-se da “hora instável” ou “hora perigosa” que Clarice considera como sendo de repentino arrebatamento.

Se a cena que retrata o instante que altera a narrativa de Estória n. 3 for retirada, mesmo assim pode-se notar a infiltração do “tempo infinito” ou epifânico que perpassa as cenas seguintes, pois quando Joãoquerque cai, todas as ações que se desenrolam a partir daí também caem em completo desajuste com o esperado como desfecho.

Então, se levantou, e virou volta. (...) Joãoquerque remontava o quintal, desatento a tudo, mas de cauteloso modo (...) E, então, (...) pegou o machado, Caminhou (...) Com firme indireção – (...) ele se chegou, (...)  saudou, parou, (...) Ipanemão pendeu o rosto (...) aí foi revirando, rodou-se, mesmo agachado, de moventes cócoras - pondo-se inteiro de costas para o outro, do qual a esquivar olhar e presença.Joãoquerque, porém, o rodeou, também, lhe pediu - Olhe! (...) e, erguendo com as duas mãos o machado, braz!, rachou-lhe em duas boas partes os miolos da cabeça.[9]

Enquanto o primeiro bloco se estrutura em termos de oposição, de onde se depreende as diferentes caracterizações comportamentais de personagens antitéticos, o próximo supera as noções de linearidade e penetra o intemporal. Nessa perspectiva, Guimarães cria o Caos narrativo e é neste contexto de desordem e inversão que o covarde, passa a ser valente. Joãoquerquer chega a um novo equilíbrio diante dos elementos dissonantes e se vê como projeção do outro. Assim, ele conclui que o que ocorre naquele tempo “Emana do inesperado; ou que, vezes, a gente em si faz feitiços fortes, sem nem saber, por dentro da mente. (...) Foi nesta altura que ele não caiu em si”, mas sim caiu na condição do outro. Para tanto, o Caos é apontado como contendo uma ordem desconhecida, onde os ruídos que provocam a complexidade podem também se organizar em pulsação significativa.

Em decorrência desse jogo especular, é plausível esperar que os papéis se invertam e que a partir deste momento, o perseguido se coloque na condição de perseguidor. O momento irregular demonstra que o personagem “caíra nas garras do incompreensível”[10]. Essas são as sutilezas da vida que tomam o inesperado como matéria prima, são as sutis causas que promovem amplos resultados. Para Ilya Prigogine

Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos  ramificados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A história, seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, não poderá nunca ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único, quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace os caminhos de um progresso ou de uma degradação[11]

Visando tal condição de variância, Guimarães, traz à tona o que está fora da consciência e da ordem determinista da vida, dando ao sujeito a epifania como um espelho em cujo reflexo ele visualiza sua imagem invertida[12] de “avergado homenzarrinho” em “cobra grande”. Dessa forma, nem mesmo a auto-imagem determinista que lhe atribuía a identidade e o ethos de um covarde refreia a força que coloca o homem diante de um universo dinâmico.  “Deu-lhe voltas a cabeça (...) errava o pensar (...) quem vivia era o Ipanemão. Se representou, sem ser do jeito de vítima. Remedava de ele próprio se ser então o Ipanemão, profundo.”[13]. Joãoquerque visualiza a imagem invertida de seu perseguidor: corajoso na superfície, mas covarde “nos subterrâneos”. Assim, intui que sua covardia é superficial, mas que sua coragem é profunda. Nesta perspectiva, Guimarães Rosa apresenta um ser em transformação, em devir, passando de um estado a outro, ou seja, do equilíbrio determinista (certeza) ao desequilíbrio (incerteza), provocado pelo “tempo infinito” ou pelo momento epifânico gerador de mudanças.

Bem como a teoria de Poincaré, estudioso dos chamados sistemas dinâmicos, que recebeu o nome de “Efeito Borboleta” ao afirmar que o bater das asas de uma borboleta, hoje numa região qualquer da Ásia, causa uma movimentação de ar que, vai crescendo de forma gradual, atravessando continentes e oceanos, podendo tomar forma de uma tempestade numa região específica da América, Lorenz[14] afirma que tanto na ciência como na vida uma cadeia de acontecimentos pode ter um ponto de crise que aumenta pequenas mudanças.

A relação entre a Teoria do Caos e a literatura de Guimarães, em especial em Estória n. 3, é operacionalizada em abordagens que tomam esse texto literário como um objeto que pode ser lido/entendido a partir de sua imprevisibilidade. Neste enfoque, se reler a relação tempo infinito/finito, uma das duas noções fundamentais da obra de Prigogine, verificando-se como o tempo infinito ou mesmo epifânico contribuiu para a noção de imprevisibilidade e de alteração de um pressuposto determinista que deixa de ter sentido coerente em vista do comportamento dissonante que provoca “ruídos”, e afeta a relação homem/ meio/. Isso torna pertinente a relação com um sistema regido pelo caos, ou seja, pelo inesperado dos acontecimentos. Dentro desse raciocínio, a relativização do comportamento já foi explicada por Riobaldo em Grande Sertão: Veredas quando ele afirma que “a mandioca-doce pode de repente virar azangada e a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal.”[15].

 

 



[1]  GOBBI. Sérgio Leonardo. Abordagem Centrada na pessoa e Teoria do Caos: uma possível compreensão do comportamento humano. Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL Centro de Pós-Graduação Mestrado em Educação Araranguá, 2000.

[2] SILVIA. Lídia Basso e. Teoria do caos.  Revista espaço da Sofia -nº 08 – novembro/2007 – mensal – ano I

[3] Op. cit.

[4]ROSA, João Guimarães. Estória n. 3 In: Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

[5] Op. cit.

[6] COUTINHO, Eduardo de Faria (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.  (Coleção Fortuna Crítica, 6) p. 93.

[7] ROSA, João Guimarães. Estória n. 3 In: Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

[8] LISPECTOR, Clarice. Brincar de pensar. In: Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.

 

[9] ROSA, João Guimarães. Estória n. 3 In: Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

[10] Op. cit.

[11] Ilya Prigogine diz que quem se negar a compreensão do imprevisível, que é ao mesmo tempo procura e desafio, continuará a sentir-se um estranho no universo no qual se insere. Segundo ela, uma cultura totalmente fragmentada pelo excesso de informações, em um sistema de comunicação onde ruído e sentido se interpenetram, exige uma nova ordem de interpretação, exige a ciência do Caos. Informação in: GOBBI. Sérgio Leonardo. Abordagem Centrada na pessoa e Teoria do Caos: uma possível compreensão do comportamento humano. Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL Centro de Pós-Graduação Mestrado em Educação Araranguá, 2000.

[12]  Quando joãoquerque exige para que o rival “olhe” para ele, cumpre-se, portanto a analogia do reflexo do espelho, da imagem invertida que situa o eu na instância de ego ideal, é uma imagem prévia, o que o sujeito não é, mas deseja ser. É uma imagem mítica, narcisista, incessantemente perseguida pelo homem.

[13] ROSA, João Guimarães. Estória n. 3 In: Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

[14] GOBBI. Sérgio Leonardo. Abordagem Centrada na pessoa e Teoria do Caos: uma possível compreensão do comportamento humano. Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL Centro de Pós-Graduação Mestrado em Educação Araranguá, 2000.

[15] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 20ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 33.