ESTÁGIÁRIO, EU?

ESTUDO SOBRE A DESNATURAÇÃO DO CONTRATO DE ESTÁGIO

Agnaldo Simões MOREIRA FILHO.[1]

1. INTRODUÇÃO:

O presente estudo versa sobre o contrato de estágio, fazendo uma análise sobre a descaracterização desse tipo de contrato nas empresas que contratam estudantes, para desempenhar as funções de empregados, porém descobertos pelas garantias da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

Para tanto, será analisada a legislação sobre o tema, jurisprudência e doutrina, com o fito de que possa se chegar a uma conclusão sobre o tema.

2. CAPITALISMO E ECONOMIA DE MERCADO: A DISTORÇÃO DA RELAÇÃO DE EMPREGO.

Vivemos em uma sociedade capitalista, e dentro da lógica desse sistema vemos, a cada dia com mais freqüência, as empresas crescerem e assumirem dimensões espantosas, tendo cada vez mais, controle sobre a sociedade.

Tais empresas rompem as barreiras de suas nações, se transformando em corporações multinacionais. Não é incomum, pessoas sentirem sentimento de identificação com uma empresa ou marca cuja origem se desconhece. Essas empresas se utilizam de diversos meios para alcançarem tais objetivos, desde promoções populares até o patrocínio de grandes ídolos nacionais.

Se utilizando de tais expedientes, essas companhias crescem assustadoramente, incorporam outras, e continuam a crescer, tomando dimensões, muitas vezes de Estados nacionais. Não são poucas as companhias que contabilizam faturamentos superiores ao PIB (Produto Interno Bruto) de nações.

Tudo isso, obedecendo a lógica de que, nesse modelo, a atividade empresarial visa um fim que é o lucro, que se aufere através dos aumentos nos ganhos conjugado com a desoneração da produção.

Discorrendo sobre o tema, Rodolfo Capón Filas e Márcio Antônio Lobato de Paiva citam Chesnais e Krugman:

Da leitura de Chesnais e Krugman, depreende-se que a chamada globalização nada mais é do que uma estratégia das grandes corporações financeiras e conglomerados industriais, visando à expansão de mercados, mediante aproveitamento, em escala mundial, da experiência acumulada em suas regiões de origem. Mas ninguém questiona se a experiência é aproveitável de maneira enriquecedora para as populações locais. Tudo parece ser uma busca de caminhos para se manter a atual repartição da renda mundial, ou concentrá-la ainda mais na direção dos países industrializados. Ou seja, a mesma coisa que vem sendo feita há mais de quatro séculos de exploração colonial, exercida praticamente pelos mesmos países que, hoje, se empenham em desenvolver explicações teóricas. [2]

Com toda essa grandiloqüência, não se admira que essas empresas influenciem, desde as vestimentas das pessoas, até aquilo que elas acham bonito ou o que gostam de comer.

Diante desse contexto, seria ingenuidade achar que tais corporações não exercem forte influência sobre os governos e até mesmo sobre você, leitor, que se julga crítico e impassível de ceder a tais influências.

E é nesse ponto, na influência que as grandes companhias exercem sobre aqueles que regulamentam a vida dos cidadãos, que se volta esse estudo, pois é para garantir os interesses dessas grandes empresas que vem se cunhando na sociedade a noção de que o empregado é um encargo.

Essa perspectiva, voltamos a frisar, que atende aos interesses da máquina capitalista, sustenta que o empregado encarece a cadeia produtiva, e muitas vezes inviabiliza o funcionamento de determinado negócio.

A partir daí, sob o jugo de manter em funcionamento as empresas, surgem discursos liberais defendendo a famigerada flexibilização às leis trabalhistas, direito do trabalho mínimo etc.

Mas muito antes de se começarem a discutir, no Brasil, sobre flexibilização de leis trabalhistas, foi promulgada a Lei 6.494. mais precisamente isso aconteceu em 1977.

Essa lei disciplinou o contrato de estágio e foi editada com a louvável intenção de ajudar, a promover uma melhor formação profissional ao estudante.

Esse vínculo sociojurídico foi pensado e regulado para favorecer o aperfeiçoamento e complementação da formação acadêmico-profissional do estudante. São seus relevantes objetivos sociais e educacionais, em prol do estudante, que justificaram o favorecimento econômico embutido na Lei do Estágio, isentando o tomador de serviços, partícipe da realização de tais objetivos, dos custos de uma relação formal de emprego. Em face, pois, da nobre causa de existência do estágio e de sua nobre destinação — e como meio de incentivar esse mecanismo de trabalho tido como educativo. [3]

Ocorre que, em observância às diretrizes do capitalismo que foram tratadas acima, atualmente essa lei vem sendo utilizada como forma de desonerar a folha trabalhista das empresas, que, verdadeiramente, desnaturam o contrato de estágio com o fim de auferir maiores lucros, conforme veremos a seguir.

3. A LEI 6494/77 E O CONTRATO DE ESTÁGIO:

A lei 6494/77 e suas alterações criaram mecanismos para que seus fins fosses atingidos.

A disciplina legal traz requisitos que configuram o contrato de estágio. Tais requisitos, uma vez descumpridos, desnaturam o contrato de estágio e, via de conseqüência, configuram uma relação de emprego regida pela CLT.

São três requisitos formais e um requisito material.

3.1 REQUISITOS FORMAIS:

O primeiro requisito formal do contrato de estágio, se encontra no artigo 1º, parágrafo 1º da Lei 6494/77.

Diz o artigo:

Art. 1º: As pessoas jurídicas de Direito Privado, os órgãos de Administração Pública e as Instituições de Ensino podem aceitar, como estagiários, os alunos regularmente matriculados em cursos vinculados ao ensino público e particular.

§ 1º: Os alunos a que se refere o caputdeste artigo devem, comprovadamente, estar freqüentando cursos de educação superior, de ensino médio, de educação profissional de nível médio ou superior ou escolas de educação especial. [4]

Logo, da leitura do artigo já podemos extrair o primeiro requisito formal, que é a necessidade do estagiário estar matriculado e cursando ensino médio, técnico ou superior.

O segundo e o terceiro requisitos formais para que se configure o contrato de estágio, estão presentes no artigo 3º do diploma legal aqui estudado.

Diz o artigo 3º da Lei 6494/77:

A realização do estágio dar-se-á mediante termo de compromisso celebrado entre o estudante e a parte concedente, como interveniência obrigatória da instituição de ensino. [5]

Assim, deduzimos que o segundo requisito de forma para a configuração de tal contrato laboral é a assinatura de termo de compromisso pelo estagiário.

E, por conseguinte, o terceiro requisito formal é a necessidade de prévio convênio celebrado entre o concedente do estágio e a instituição de ensino em que o estagiário é matriculado.

Esses são os 3 (três) requisitos materiais para a configuração do contrato de estágio.

Esses requisitos são cumulativos o que significa que, uma vez descumprido um dos requisitos qualquer, desnatura-se o contrato de estágio.

3.2 REQUISITO MATERIAL, OU DE SUBSTÂNCIA:

O requisito material para que seja configurado o contrato de estágio diz respeito ao conteúdo do contrato.

Esse requisito, em verdade, vem para proteger os fins pelos quais a lei que regulamenta o contrato de estágio foi editada.

Assim, o requisito substancial é a necessidade de vinculação entre a atividade do estagiário na empresa concedente e a sua formação profissional. Se o estagiário trabalha em função diversa da sua formação profisional, esse contrato não está ajudando o estagiário em sua preparação para o mercado e, portanto, resta desconfigurado o contrato de estágio.

Comunga desse pensamento o professor Otávio Augusto reis de Sousa:

A Lei de Estágio foi criada com uma finalidade específica, qual seja, permitir que os estudantes tenham um primeiro contato com a sua futura profissão, propiciar-lhes, ao lado do conhecimento exclusivamente teórico, o conhecimento pragmático.

Assim, poder-se-á afirmar derradeiro requisito, este substancial: há que existir vinculção entre a área de atuação do estagiário e sua formação profissional. [6]

Vale ressaltar que o requisito material não aplica-se aos estudantes de ensino médio, porque estes ainda não têm formação profissional definida.

3.3 A CUMULATIVIDADE DOS REQUISITOS:

Como foi visto, o contrato de estágio tem quatro requisitos a serem cumpridos, e a doutrina ensina que esse requisitos são cumulativos.

Os requisitos são todos cumulativos e necessários à incidência do artigo 4º da Lei 6494/77, o qual afasta em tais casos o reconhecimento do vínculo de emprego.[7]

No caso de descumprimento dos requisitos cumulativos, em decorrência do princípio da primazia da realidade, configura-se verdadeira relação empregatícia, regida e protegida pela CLT, e como tal, judicialmente deve ser reconhecida.

Acerca da primazia da realidade diz o professor Rodrigues Pinto:

Consiste em considerar-se que, havendo divergência entre as condições ajustadas para a relação de emprego e as verificadas em sua execução, prevalecerá a realidade dos fatos.[8]

Destarte, se o concedente, muito embora tenha firmado contrato de estágio, uma vez desconfigurado, deve-se reconhecer a relação de emprego.

Nesse sentido se posicionam os tribunais:

Processo

00918-2006-138-03-00-7 RO

Ver Inteiro Teor

Ver Andamento

Data de Publicação

06/06/2007

DJMG  

Página: 6  

Órgão Julgador

Primeira Turma

Relator

Deoclecia Amorelli Dias

Revisor

Manuel Cândido Rodrigues

Tema

RELAÇÃO EMPREGO - ESTÁGIO  

EMENTA: CONTRATO DE ESTÁGIO X RELAÇÃO DE EMPREGO. DIFERENCIAÇÃO.
Nos termos do parágrafo 3o., art. 1o., da Lei 6.494/77, "os
estágios devem propiciar a complementação do ensino e da
aprendizagem e ser planejados, executados, acompanhados e
avaliados em conformidade com os currículos, programas e
calendários escolares". A associação empresa/escola, portanto, se
faz imprescindível, assim como é indispensável "existir
complementariedade entre os conhecimentos ministrados e a área de
praticagem destes conhecimentos na empresa" - Délio Maranhão,
Instituições de Direito do Trabalho, vol. 1, 17a. edição, p. 195.
Se não há co-participação da instituição de ensino no desenrolar
do contrato, se o ajuste fica a mercê apenas do tomador dos
serviços, não há como reputá-lo válido; "se não há vinculação das
atividades que o estudante realiza na empresa com a formação
profissional que vem obtendo na escola, o estágio não se
configura e a relação jurídica estará sob o abrigo do Direito do
Trabalho, quando presentes os pressupostos do art. 3o. da CLT" -
Alice Monteiro de Barros, Curso de Direito do Trabalho, 1a.
edição, p. 205/206. Não se ignora a corrente que sustenta a
desnecessidade da correlação direta entre as aulas teóricas e a
prática profissional. Seus defensores se amparam no argumento de
que a vivência obtida no cenário trabalhista, por si só, soma na
formação do futuro profissional, pouco importando em que área se
dê a experiência; ao estudante está sendo oferecida uma
oportunidade ímpar de imersão no mundo do emprego. Esse
fundamento, contudo, é de vida curta. Ao fim de pouco tempo,
semanas ou quiçá alguns meses, o estagiário sorve as lições da
prática do mercado de trabalho, obtendo desenvoltura. A partir
daí o que sobressai é a sua condição de elemento integrante da
organização produtiva; de empregado, em outras palavras.

         

4. CONCLUSÃO:

Diante de tudo que foi dito, observa-se que o contrato de estágio vem sendo desnaturado pela lógica capitalista em que as empresas contratam um trabalhador com atribuições iguais às dos demais colegas de empresa, porém com direitos restritos.

Esse sistema trata os direitos dos trabalhadores, conquistados às custas de muita luta, como o empecilho ao desenvolvimento da sociedade.




[1] Graduando em direito pelas Faculdades Jorge Amado, Salvador-Bahia.

[2] FILAS, Rodolfo Capón; PAIVA, Mário Antônio Lobato de. A mundialização do direito laboral. O retorno high tech ao feudalismo. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2187>. Acesso em: 20 jun. 2005.

[3] DELGADO, Maurício Godinho; "Curso de Direito do Trabalho " – São Paulo: LTr, 2002. p. 182.

[4] Lei 6494/77, art. 1º, § 1º.

[5] Lei 6494/77, art. 3º.

[6] SOUSA, Otávio Augusto Reis de. Direito do Trabalho . Curitiba. IESDE, 2005. p. 66.

[7] SOUSA, Otávio Augusto Reis de. Direito do Trabalho . Curitiba. IESDE, 2005. p. 66.

[8] PINTO, Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. 4ª edição. São Paulo. Editora LTR São Paulo, 2000. p. 74.