Toda a estruturação da Constituição Federal ordenada de modo a reger o aparato estatal e a servir cidadãos com direitos e deveres nos proporciona duas realidades da sociedade brasileira. Uma exposição mais profunda trabalhada em interpretações mais subjetivas e com ressalvas do quadro constitucional é de notória necessidade para não só determinar os mecanismos de elaboração de um Estado Democrático de Direito, mas verificar se ele realmente efetiva-se em um contexto tão heterogêneo e desigual.
A Constituição de 1988 pode ser vista como uma simplificação coerente e altamente sistematizada de como estrutura-se o Estado, as relações coletivas e as limitações que organizam a sociedade.
Para tanto, utiliza-se de códigos próprios como instrumentos para consolidar as diretrizes constitucionais. O fato é que esses instrumentos podem ser utilizados de maneira oposta à harmonia e justiça esperada. Funcionando como aparatos de dominação do Estado sobre a sociedade e de determinados grupos sobre outras parcelas sociais. Ou seja, se a Constituição pode ter o condão de libertar, promover a dignidade da pessoa humana e estabelecer a igualdade, pode também, promover labirintos que legitimam poderes excludentes entre quem possui ou não o domínio desses códigos.
O que determina o tratamento constitucional diferenciado entre os vários agentes de uma sociedade é o grau de limitação do poder estatal, a forma como o poder é utilizado por quem compõe esse Estado, os meios existentes para a participação popular, o respeito que é dado à liberdade de imprensa, de expressão, às minorias e a diversidade cultural e étnica, a forma de distribuição de competências e a relação entre os Poderes que o integram. No caso brasileiro, a formação histórico-cultural foi banhada por práticas patrimonialistas e personalistas em cada um dos aspectos apontados o que determina graus diferenciados de acesso a esses dispositivos e instituições que proporciona para uns os "privilégios da lei" e para outros os "rigores da lei".
A mesma Constituição que possibilita o indivíduo independente da classe ou grupo social que integra reivindicar e requerer seus direitos deixa em aberto a possibilidade de um exercício de dominação voraz e arbitrário, maquiado dentro do sistema "racional-legal". E aqui se coloca um obstáculo que é extirpado das reflexões acerca da Constituição Federal: a fonte original dessa dominação é o desvirtuamento da política e não de uma racionalidade burocrática.
A soma de um Estado que se omite no desempenho de suas funções e de uma burocracia que se encontra distante de um parâmetro racional desejado resulta na reprodução de injustiças e manutenção do status quo. Como conseqüência se consolida um modelo sistêmico vicioso e cruel que distancia os indivíduos. Contrariando, assim, a própria razão de ser da Constituição Federal de convergir e garantir tanto o Direito como aplicar a Justiça nas ações e serviços para a sociedade.
O caminho a percorrer para alcançar essa convergência e de possibilitar uma sociedade de homens livres e iguais é longo e pedregoso. Basta tirar os olhos do texto constitucional e analisar a realidade para perceber uma grande parcela excluída e vivendo a margem dos princípios básicos de cidadania.
Reverter esse quadro é tarefa árdua, especialmente diante de uma obra sofisticada em termos técnicos e formais, que carrega concomitantemente um "mundo de todos" e um "mundo de poucos".
Torna-se uma tarefa revolucionária buscar cumprir o que trás a Constituição. É fundamental desvendar e redescobrir a realidade, tirar a face autoritária e abusiva do Estado e embutir em todos os agentes das mais diversas esferas o controle e o policiamento do poder, traçando assim uma rota em direção a um mundo possível.