A FILOSOFIA E A ESPECIFICIDADE DE SEU ENSINO.
Nos últimos tempos, nas últimas duas décadas pelos menos, houve uma guinada no que diz respeito ao ensino de filosofia no ensino médio. E isso se deve, assim penso eu, principalmente a dois fatores: primeiro com a formação de professores especialistas na disciplina assumindo as vagas em aberto nas escolas públicas para lecionar, antes isso era feito por profissionais remanescentes de qualquer área, com o intuito de completar carga horária; segundo é que parece que os profissionais acordaram para a realidade e deixaram de achar que a filosofia é uma espécie de "saber privilegiada que faz emergir no cidadão a consciência crítica".
Esse despertar, a princípio soou como se fosse uma decepção, perda de terreno, de status, mas logo se mostrou frutífero, visto que os profissionais tomaram consciência que a filosofia é uma disciplina como outra qualquer e para que ela fosse minimamente aceita no currículo da escola era necessário "suar a camisa", gastar tempo com planejamento, buscar estratégias para que a filosofia tivesse seu lugar entre as outras e cumprisse seu papel na escola.
Passado o espanto inicial, aquele que destronou a filosofia da sua arrogância de se achar privilegiada e aquele que compreendeu que a filosofia era amplamente rejeitada pelos alunos da escola média, coube aos professores de filosofia demonstrar que mesmo não sendo uma disciplina privilegiada, a filosofia é importante na formação do homem enquanto cidadão, não mais importante que as outras, mas, importante com as outras, e mais, a filosofia tem sua especificidade, de forma que, em se tratando de alguns conteúdos todas as outras disciplinas deixam a desejar e a filosofia tem instrumentos conceituais e metodológicos para responder tais questões a contento e, pasmem, vai além, gerando novas reflexões sob outros prismas sobre o tema.
De acordo com Favaretto o ensino de Filosofia no ensino é importante por conta da formação do homem, mas não é uma formação convencional, como se fosse um curso com início, meio e fim, mas uma espécie de formação que está sempre por se fazer. Enfrentamos algumas dificuldades em relação a essa afirmação exatamente porque a ideia de formação pressupõe uma culminância de um processo que seria a de conduzir o educando a maioridade e a emancipação intelectual, mas no ensino de filosofia o que vale é o processo do aprendizado, as ferramentas que se manuseiam, menos que o produto que se adquire com o seu estudo. E para avaliar se houve apropriação por parte do aluno não apenas em assimilação de conteúdos, mas também do processo que pode culminar com a criação de conceitos é válido aplicar os questionamentos propostos por Gallo (2010 p.169) se
Dado um determinado tema filosófico, o estudante foi capaz de identificar o problema que está por trás dele?
Dado o desenvolvimento de um tema por um determinado filósofo, o estudante foi capaz de identificar o problema ou conjunto de problemas que mobilizaram seu pensamento?
Lendo um texto filosófico a partir de um determinado problema mobilizador, o estudante foi capaz de identificar o conceito ou conceitos produzidos pelo filósofo para enfrentar este problema? O estudante foi capaz de recriar o conceito do filósofo, refazendo o movimento de pensamento? O estudante foi capaz de deslocar este conceito para um outro contexto ou um outro problema?
O estudante foi capaz de comunicar seu movimento de pensamento através de um texto de natureza filosófica?

Atuando em sala de aula, lecionando a disciplina tive a percepção que a filosofia tem a potencialidade de oferecer aos alunos do ensino médio a possibilidade de tratar um assunto a partir de múltiplos prismas, algo que me parece um tanto embaraçoso em tantas outras disciplinas. Senão vejamos: uma questão matemática, não obstante o esforço intelectual que se exige em sua resolução, é raro os casos e professores que aceitam que o aluno resolva a questão à sua maneira, mesmo que ele chegue a resultado idêntico ao de outros, o que se quer e que o aluno trilhe o caminho já demonstrado e aceito, não seguindo à risca tais orientações, frustra-se a tentativa e procedimento é considerado inválido. O mesmo ocorre em biologia, química, física.
É nesse campo que a filosofia, a meu ver, ganha terreno em relação a outras disciplinas e tem a possibilidade de demonstrar sua imprescindibilidade no ensino médio, ela tem abertura e flexibilidade suficiente para tratar de problemas complexos que exige um múltiplo olhar, o "olhar diferenciado" típico da filosofia. Podemos demonstrar recorrendo a alguns conceitos que são tratados por várias disciplinas, mas ganha outra dimensão se for tratado como problema filosófico ou mesmo e melhor ainda, nesse contexto, no caso de alguns conceitos que são típicos da filosofia.
É possível que qualquer disciplina na área de Linguagem, Ciências da Natureza ou Ciências Humanas possa e até deva se aventurar por assuntos que tentam definir o que é a verdade, tendo em vista que somos uma sociedade que valoriza e de alguma forma busca isso. O infinito pode ser um assunto discutido sem qualquer prejuízo na matemática, por exemplo; e a justiça como uma questão historicamente determinada pode ser debatida em história ou sociologia, mais ainda assim acredito que esses assuntos tratados de maneira certa por um profissional da filosofia usando instrumentos disponíveis corretos esses temas ganham outros matizes.
Há também casos em que determinados assuntos só serão tratados de forma minimamente adequada pela filosofia. Por dois motivos: primeiro porque não se constitui área de interesse de outras e em seguida por se tratar de assunto especifico da filosofia, como é caso do Ser de Parmênides, do Devir de Heráclito, questões relativas ao o que é conhecimento e poderia citar umas tantas outras, mais isso seria enfadonho. É claro que alguém poderia objetar que há assuntos que só a Química trata de maneira adequada, sim e isso faz com a Química seja importante no ensino médio, o que me levou a apontar assuntos tratados de maneira mais ampla apenas pela filosofia não é para reivindicar nenhum privilégio, apenas para apontar a importância e a especificidade do ensino de filosofia no ensino médio.
É importante enfatizar também para por em relevo a especificidade do ensino de filosofia no ensino médio o fato de que a disciplina não se interessa apenas por uma área ou algumas do conhecimento, mas seu interesse é de tal forma abrangente que poderíamos dizer sem receio de cometer exagero que a área de pesquisa e especulação da filosofia é vasta, pois é permitido falar de moral, política, arte, técnica, religião, mito, ciência, educação entre outras coisas. É não é falar vagamente tratando as questões com argumentos do tipo "eu acho que" ou "em minha opinião", esses assuntos são tratados de forma metódica e rigorosa.
Parece-me bastante apropriado o argumento do autor Ronai Pires da Rocha autor do livro Ensino de Filosofia e Currículo ao afirmar que a disciplina de Filosofia é "curiosidade de curiosidades" , ou seja, a Ciências da natureza é curiosidades sobre como é o mundo sem as gentes, que seria o mesmo que dizer que é a curiosidade sobre a natureza. As ciências humanas, e entre elas, é claro, a Filosofia, a Geografia, História, Sociologia tentam responder as questões do tipo "como é o mundo com as gentes, são curiosidades sobre o mundo enquanto habitado e construído por gente. Temos também as Linguagens que seriam curiosidades sobre nossas capacidades compreensivas e expressivas: explorações de si-mesmo enquanto mente e corpo. E por fim ele retorna a Filosofia afirmando que ela seria, melhor dizendo, é curiosidades sobre todas essas curiosidades".
Bem, mas e dai? É que, explica o autor, para assuntos que todas essas disciplinas tratam a Filosofia tem uma subárea que trata do mesmo assunto com muita propriedade. Senão vejamos: para Química, Física, e Biologia temos a Filosofia da Ciência para tratar de temas que lhe são inerentes; para questões ligadas a Geografia, História, Sociologia há a Filosofia da História, Filosofia Social; e para questões ligadas á área de Linguagens, encontramos facilmente dentro do "corpus" filosófico subáreas como a Filosofia da Linguagem e Filosofia da Arte. Parece que ficou da fora a Matemática?! Não, há uma vertente filosófica que lidam com estas questões de maneira especifica ou dentro da Lógica. É isso, entre outras coisas que tornam a disciplina de filosofia algo precioso e imprescindível no ensino médio.
Sem sombra de dúvida é também importante ressaltar que a filosofia no ensino médio proporciona ao aluno a oportunidade única de saber mais abrangente, ou seja, é a chance que ele tem de exercitar as três potencias do conhecimento. O currículo do ensino é montado de forma puramente técnica, dando ênfase ao conhecimento funcional típico da ciência, ficando relegado ao segundo plano o pensamento afetivo e perceptual típico das artes e o pensamento conceitual que é mais propriamente da filosofia. O papel dessa disciplina no ensino médio consiste em proporcionar ao aluno, em fase de formação a possibilidade única de utilizar as três potencias, visto que, uma vez terminada essa fase do ensino ele seguirá uma dessas três vertentes ?arte, ciência ou filosofia- do conhecimento e jamais terá oportunidade de lidar com todas juntas novamente.
Silvio Galo, um dos grandes pensadores estudiosos do ensino de filosofia no ensino médio brasileiro, entende que a disciplina é imprescindível por conta de três características: seu caráter dialógico, por ser uma forma de pensamento conceitual e pela possibilidade da crítica radical.
Quanto ao seu caráter dialógico entendemos que a filosofia está na charneira dos saberes estabelecendo a ponte entre os vários tipos de conhecimento proporcionando seu diálogo. Nenhuma outra disciplina se presta com tanta eficiência para fazer, pois a filosofia
não se apresenta como um saber fechado em si mesmo, uma verdade dogmática, mas como um saber que se experimenta, que se confronta consigo mesmo e com os outros, que se abre ao diálogo com outros saberes, um saber aberto e em construção coletiva
Gallo afirma também que é especifico da filosofia fazer a crítica radical. É claro que radical aqui não tem o sentido corriqueiro de ser inflexível, pois nesse caso não seria filosofia, mas seria "antifilosofia" o que seria um paradoxo, mas consiste no fato de que tanto a filosofia como seu não se apegar a verdades prontas e acabadas, mas buscar seus fundamentos, verificar sua validade, é não-conformação com o que já está dado.
Por fim a filosofia é uma forma de pensamento conceitual, ou seja, é diferente de as outras formas de pensamento tais como o perceptual e o funcional, o que dá aos alunos a possibilidade da experiência de pensamento, coisa que em nossos dias está em extinção, melhor dizendo a pobreza de experiência é algo que já vem de longa data como podemos conferir no livro A filosofia no limiar da contemporaneidade, de Gelamo , ao citar Benjamin ele afirma que ter a própria experiência hoje em dia é algo cada vez mais raro, o máximo é a repetição da experiência do outro. A disciplina de filosofia no ensino médio tem os instrumentos para suprir essa lacuna proporcionando aos alunos a possibilidade da experiência do pensamento.
Mas a criação de conceitos é o trabalho filosófico por excelência, pois conforme Deleuze e Guattari
O filósofo é amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos [....] Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito precisa ser criado que ele remete ao filósofo como aquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e competência [...] Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céus para conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, não seriam nada sem a assinatura daqueles que o criam [...] Que valeria um filosofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus conceitos.
Vale ressaltar que em Deleuze os conceitos são imanentes e não transcendentes como se costuma pensar em filosofia, ou seja, o conceito é algo terra-terra, usado na tentativa de resolver um problema experimentado pelo filósofo, problemas que ele próprio está sentindo na pele.
Em outra direção, mas com o mesmo objetivo, o de justificar a presença do ensino de filosofia no currículo do ensino médio, Ghedin afirma que a imprescindibilidade dessa disciplina se justifica por conta de sua potência em desmistificar a ideologia reinante meio social com fortíssimas ramificações na escola, aliás, a escola é um dos mais poderosos veículos de propagação ideológica, perdendo apenas para mídia impressa ou falada. Gallo já trata vagamente disso ao dizer que os PCN´s, ao designar a função da filosofia como disciplina transversal, ou seja, como ponte entre as várias outras disciplinas está na verdade tutelando e tentando instrumentalizá-la, pecha que a filosofia rejeita desde os primórdios.
Por isso Gallo diz que as três formas de justificar a filosofia no ensino médio estão completamente equivocadas, pois tanto a questão do desenvolvimento da consciência quanto a possibilidade de promover a interdisciplinaridade entre as várias disciplinas constitui um risco desnecessário para a filosofia enquanto tal, visto que é possível que ela não dê conta nem de uma de outra, logo haveria razão para sua retirada definitiva do currículo do ensino médio. Quanto ao argumento de que a filosofia é necessária para o exercício da cidadania, justificativa apresentada na primeira edição da lei 9394/96, é também perigosa visto que a filosofia seria apenas um meio para determinado fim e desde sempre que a filosofia tem a pretensão de ser um "fim em si mesmo".
Após essa breve digressão voltemos ao Ghedin e sobre a especificidade do ensino de filosofia. Para ele a filosofia consiste no filosofar, logo o que garante sua permanência no ensino, bem como o que torna necessária, é sua capacidade de desmistificar a ideologia, e também a capacidade de práxis, ou seja, a junção entre pensamento e ação em direção da verdade e da liberdade e, muito embora reflexão e a crítica não seja algo exclusiva da filosofia ela é importante sim para o desenvolvimento e expansão dessas duas atividades no estudante (Ghedin 2008, p. 72). E para finalizar uma coisa importantíssima: a filosofia proporciona a fundamentação do ser do ser humano. Partindo dessas quatro premissas que são: a capacidade de desmistificar ideologias, a práxis, sua importância para o aprimoramento da reflexão crítica e a fundamentação do ser do ser humano; parece certo que a filosofia deve ser mantida no currículo da escola media.
A maioria das disciplinas presentes no currículo do ensino médio apenas ratifica a ideologia dominante reproduzindo os saberes adquiridos fora dos muros da escola, para isso basta verificar os livros didáticos que são oriundos dos grandes centros sem levar em conta as peculiaridades de cada região ou mesmo para dar lucros ás editoras. Mas nossa finalidade não é discutir as ideologias presentes no material didático disponibilizados pelas escolas, mas afirmar que a filosofia através do seu conteúdo oferece instrumentos através do seu conteúdo e metodologia para a superação e desmistificação das ideologias profundamente arraigadas no ensino médio.
A disciplina de filosofia no ensino médio oferece ao estudante a possibilidade de unir a teoria a prática, ou seja, o que se estuda em termos de conteúdo não fica restrito apenas á sala de aula, mas carrega consigo a potência de ser válido no dia-a-dia, na vida. É a práxis humana em direção a liberdade e a verdade. É claro que estudo da filosofia no ensino médio não significa de forma alguma, como não significa em nenhuma instância, a posse da verdade, mas sempre a sua busca. Kant afirma que
uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento

que para isso basta a liberdade que confere a autonomia do pensar e acredito que filosofia, melhor dizendo, o seu ensino no ensino médio se presta bem a essa função, sem de forma alguma ser um meio para determinado fim.
Voltemos agora ao assunto da reflexão e crítica anteriormente rejeitada como não-válida para justificar a filosofia no ensino médio, mas voltaremos a esse argumento não com a finalidade de justificar a presença da filosofia no ensino médio, mas apenas como uma disciplina capaz de oferecer aos estudantes ferramentas para a reflexão e a crítica. Mesmo não sendo a única que possibilita a oportunidade para a reflexão e a crítica ?ainda bem- é indubitável que o estudo da filosofia expande essa capacidade e por isso

"o aluno precisa da reflexão filosófica para o alargamento da consciência crítica, para o exercício da capacidade humana de se interrogar e para a participação mais ativa na comunidade em que vive".

Volto a frisar que, ainda que filosofia não seja a única que proporciona a reflexão e a crítica é evidente que o ensino de filosofia ensino médio é importante para o desenvolvimento desses quesitos no aluno adolescente e em fase de construção de identidade.
Por fim, e não menos e nem mais importante que os outros argumentos já acima mencionado, volto a ressaltar que o currículo está estruturado de forma puramente técnica tendo como base as ciências que procura o domínio o mundo, melhor dizendo, estuda-se as ciências cuja finalidade é o domínio sobre a natureza ?uma luta antiga do homem- mas que embrutece o homem enquanto tal. Aqui entra, ao meu ver, a grande sacada do ensino de filosofia no ensino médio que é a busca do "fundamento do ser do ser humano". Os sofistas através da reflexão antropológica com a pergunta estruturante "O que é o homem?" deram uma grande contribuição para a reflexão filosófica superando os fisicalistas que buscavam responder -ou pelo menos se interrogavam em busca de respostas- "o que é o mundo?".
A disciplina de filosofia tem a finalidade de discutir questões ontológicas referentes à constituição humana e ela tem essa abertura no escopo de seu conteúdo para oferecer fundamentação sobre o que é o homem? O que é o mundo? E qual o lugar do homem no mundo? E mais do que dar respostas, fazer perguntas inquietantes, tendo em vista que uma das definições de filosofia é o não-conformismo com o que está posto, mas questionar e questionar sempre, não apenas por questionar, mas na busca de resposta que talvez nunca teremos.
Gosto de justificar para meus alunos quando sou indagado sobre o porquê da disciplina de filosofia no ensino médio que a filosofia permite tratar os assuntos e problemas com que deparamos cotidianamente partindo de múltiplos prismas, abordando problema em suas várias dimensões e não há necessidade de se apegar a fórmulas prontas.
Penso que o que é específico da filosofia no ensino médio, aquilo que a torna imprescindível e insubstituível no processo de formação do educando seja sua capacidade de ser a disciplina que é constituída como curiosidade de curiosidade, e também pelo fato de fornecer ferramentas para se pensar por conceitos bem como por ser uma arma desmistificadora de ideologia e pensar no homem enquanto homem.