Alessandra Fonseca

Nessas férias forçosamente prolongadas por causa de um vírus, tive a instigante oportunidade de bater um papo com os pais de uma aluna da 5ª série. Diga-se de passagem, que os referidos pais são meus ex-professores do mestrado, doutores e que possuem um vasto acervo teórico. O assunto era: escolhas literárias para 5ª e 6ª séries. Observei que, ainda que rico e divertido, em nosso diálogo ficou faltando ideias que no momento não as expus (por que será? seria medo de não ser aprovada pela 'banca'?) ou que as formulei depois deste prazeroso encontro. E é por causa destes meus pensamentos silenciosos/barulhentos que me propus escrever este texto.

Durante algum tempo na escola, mesmo lecionando artes e redação, a tarefa de selecionar os livros a serem lidos pelos alunos não era exatamente minha e sim dos professores de português. Porém, em 2009 aconteceu... atualmente divido as indicações literárias com minhas colegas de Português. E tal atividade tem sido como um estranho[1] aprendizado.

E para introduzir minhas ideias e angústias, gostaria de iniciar com uma citação que, não por mera coincidência, se encontra justamente no livro que indiquei aos alunos da 6ª série para que lessem nas férias:

Quando uma mosca bate as asas, uma brisa dá volta ao mundo; quando um grão de pó cai no solo, todo o planeta fica um pouco mais pesado; e, quando você bate com o pé, a Terra se afasta ligeiramente de sua trajetória. Quando você ri, a alegria se espraia como as ondinhas num lago; quando fica triste, ninguém em lugar nenhum pode estar feliz. Algo muito parecido ocorre com o conhecimento, pois, quando você aprende alguma coisa nova, o mundo inteiro se torna mais rico (JUSTER, 2008, p.235).

Pois bem, vamos (eu e você, leitor) adentrar neste velho/novo conhecimento.

Para mim, a escola tem uma posição definidora da bagagem literária dos alunos, além disso, ela pode levar à consagração ou ao esquecimento dos livros produzidos. Há que se escolher com cuidado, com zelo, com critério o livro para ser indicado, também é preciso assegura aos alunos o direito de escolha, de partilha dos bens simbólicos, e cabe ao professor (ou outro mediador) guiar os alunos para além da autoajuda (ou falsa-ajuda?). Há que se escolher indagando: em meio ao oceano de livros qual seria Aquele que faria meus alunos embarcarem na leitura literária e descobrirem a sua beleza?

Além desta questão posta, outra pergunta é latente: o que queremos, quando queremos envolver as crianças (ops! retificando), os pré-adolescentes com os livros? A resposta pode ser dada por um coral docente: 'formar leitores'. Sim, mas... leitores de quê?

Magda Soares (2009, p.22), grande educadora, nos diz que há três tipos de leituras principais: A funcional: aquela que nos dá informações 'úteis' para que consigamos sobreviver na vida cotidiana. A de entretenimento[2]: aquela por meio do qual se tem prazer, lazer, satisfação emocional. A literária: aquela que é conotativa, epistemológica, metafórica, orientada pelo estético, pelo implícito, pelo subjacente, que examina a significação da condição humana.

Porém, como acrescenta a referida autora, e concordo plenamente, uma forma de leitura não exclui a outra. Um livro literário, por exemplo, pode ser para entretenimento e pode suscitar uma leitura funcional. O livro O Mário que não é de Andrade. O Menino da Cidade Lambida pelo Igarapé Tietê (SANDRONI, 2001), que indiquei para a 5ªsérie, é literário, prazeroso (a maioria dos alunos gostaram) e há uma riquíssima fonte histórica sobre a identidade brasileira, os modernistas, a Semana de Arte Moderna. Mas, nem todos os livros indicados possuem esta abrangência.

Quando vejo meus alunos com a saga de Crepúsculo, um best-seller, que eles tanto elogiam, penso no poder do entretenimento do livro, que não deve ser desprezado. Tempos atrás uma mãe de um aluno da 6ª série disse-me que foi o único livro que o filho leu sem que ela mandasse, e que até mesmo ela leu duas vezes. Logo, concluo que se foi através desse livro, tido por mim como entretenimento, que um aluno pode adentrar ao mundo da leitura; esse livro, ainda que de baixa qualidade, não pode ser menosprezado. Pode ser que Crepúsculo seja uma ponte para uma leitura plenamente literária.

Hoje, uma das minhas buscas, enquanto professora, é fazer escolhas literárias que sejam capazes de possibilitar prazer e entretenimento aos alunos, mas também uma leitura literária que os introduza na apreciação e recepção estética. Mas como escolher para o outro, de modo a garantir que ele tenha uma relação de efetivo conhecimento e ainda tenha prazer ao ler? Você que está lendo há de convir que seja uma tarefa árdua.

Como posso garantir que a leitura que me deu prazer, também proporcionará prazer aos meus alunos? É possível ensiná-los a ler prazerosamente? Penso que cabe a mim apresentar as condições -variadas, ricas-, para que os alunos tenham a oportunidade de descobrir o prazer de ler; pois não posso ensinar e nem obrigá-los a sentirem prazer com o livro ofertado, eles têm que descobrir esse deleite, o que tento fazer é dar condições para que essa descoberta aconteça.

Mas pondero agora, mesmo que os alunos não tenham feito essa descoberta, há leituras que são realmente necessárias, que precisam estar no repertório escolar, que necessitam fazer parte da 'bagagem' dos alunos. Os alunos não podem deixar de saber que bem antes do vampiro de Crepúsculo, já existiu um Drácula de Bram Stocker, que 'uma cena dantesca' se refere a A Divina Comédia de Dante, que 'viver uma odisseia' é compartilhar o universo de Homero... e poderia citar muitos outros que fazem parte da nossa cultura híbrida e intertextual. Há obras como as de Shakespeare, Monteiro Lobato, Lygia Bojunga, Érico Veríssimo, Orígenes Lessa, Fernando Sabino, Ana Maria Machado, Câmara Cascudo, que não possuem exatamente o objetivo de propiciar entretenimento, mas são obras que os alunos precisam conhecer devido a sua abrangência intertextual, metafórica, polissêmica... tais leituras literárias são um caminhar em direção à conquista de percepção e sensibilidade. Reafirmo ainda dizendo que elas são um direito dos alunos.

Quando penso nos autores acima concluo que o objetivo de ofertar tais obras (às vezes adaptadas devido à maturidade) vai muito além de 'formar leitores', mas desenvolver conhecimento e valores éticos que fazem parte da cultura letrada em que pretendemos inserir nos alunos.

Mas não posso também deixar de dizer que há livros recém lançados que são riquíssimos em matéria de literatura como, por exemplo, A história de Despereaux (DiCAMILLO, 2009), um conto de fadas, poético, que nos faz refletir sobre a tolerância, sobre os julgamentos maldosos que ora fazemos aos outros, enriquecido por uma linguagem elaborada, que se vale de diálogos, oposições, verbos de ação e uma riquíssima ilustração. A narrativa afirma o valor da fantasia e do modo encantado de se ver a vida. O presente livro valoriza o universo de qualquer pessoa em qualquer idade, abrindo novos horizontes para esse gênero 'conto de fadas' que às vezes fica 'restrito' a educação infantil.

Através de estudos pedagógicos, principalmente através das teorias de Piaget, sei que na fase, 5ª e 6ª série, em que nossos alunos se encontram, eles gostam de histórias elaboradas, com sucessão de ações, com aventuras, em que os problemas são resolvidos por grupos, pois os alunos estão buscando a ampliação da sua dimensão social, buscam também questionar a realidade. Valorizam os textos onde, se certo modo, eles participam da história, através dos personagens que tomam iniciativa e decisão nas ações, resolvem situações e vencem os adultos. Tais características foram por mim buscadas quando indiquei Coração acelerando (SYPRIANO, 1998), Do outro mundo (MACHADO, 2002), Minha primeira paixão (BANDEIRA; ALMEIDA, 2004). Essas escolhas foram feitas por me interessarem, por tratar de livros diferentes, bem-humorados, contudo tenho a plena convicção que ora acerto a mira, ora chego perto, ora nem tanto.

Então vamos recapitular; os principais aspectos a levar em conta na hora de oferecer-lhe os livros são: os interesses dos alunos, os interesses da professora - seus objetivos literários. Mas também um aspecto que considero muito relevante é quanto ao 'objeto livro', o projeto gráfico (capa, papel) e a ilustração, que compõe um novo texto ao texto escrito. Esse último aspecto, a ilustração, é para mim muito caro, pois foi sobre esse assunto que tratei em meu mestrado e que não vou aqui pormenorizar.

Para rematar e concluir o que não tem conclusão, digo que: um belo e bom livro é aquele que nos leva para nós mesmos, para o autoconhecimento, e assim ir em direção ao conhecimento do outro, das coisas que estão no mundo e o que possibilita deparar-se com o novo. Neste sentido sinto-me ainda como uma leitora iniciante, com infinitos caminhos a percorrer. No entanto, desde 2001, trabalho na promoção da literatura como contadora de histórias, educadora e especialista em arte-educação, e muito conheço e acompanho a produção dessa literatura no nosso país. Portanto, discutir as escolhas literárias é algo que, sinceramente, enche o meu coração.

'O que a Maria vai gostar de ler?' 'Por que a Gabriela não gostou deste livro?' 'Não achei que o Guilherme ia gostar tanto deste livro!' A complexa tarefa de indicação de livros está muito ligada ao meu cotidiano como educadora-leitora; e esses dois caminhos vivem se cruzando, e já nem sei mais dizer onde um acaba e o começa outro. Contudo, tenho absoluta certeza que os livros que li na minha vida me trouxeram até aqui e foi por ser uma leitora, por ter descoberto tanta coisa através das palavras e imagens dos livros, que quis, um dia, ser professora.

Para terminar gostaria de mencionar o livro que citei no início do texto, do autor Norton Juster, Tudo depende de como você vê as coisas (1999). Nessa obra o autor conta uma história de um menino que faz uma viagem, um caminho cheio de surpresas. Mas o livro fala muito mais do que uma simples viagem, ele fala, dentre muitas coisas, da força das escolhas. Escolhas que podem salvar, escolhas que podem fazer sofrer, escolhas que explicam, escolhas que tentam entender, escolhas que acalmam, escolhas que alimentam, escolhas que fazem pensar, escolhas não ditas, escolhas sentidas... Escolhas que vivem, ao mesmo tempo, dentro e fora dos livros. Escolhas. Acho que é nisso que acredito. E é por isso que continuo escolhendo.

Bibliografia de livros infanto-juvenis

BANDEIRA, Pedro; ALMEIDA, Elenice Machado. Minha primeira paixão.São Paulo: FTD, 2004. – (Série espelhos).

JUSTER, Norton. Tudo depende de como você vê as coisas . trad. Jório Dauster.São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

KATE, DiCamillo. A história de Despereaux. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

MACHADO, Ana Maria. Do outro mundo: novela. São Paulo: Ática, 2002. – (Coleção literatura em minha casa; v. 3).

SANDRONI, Luciana. O Mário que não é de Andrade. O Menino da Cidade Lambida pelo Igarapé Tietê – São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2001.

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SYPRIANO, Lílian. Coração acelerando. Belo Horizonte: Formato Editorial, 1998. – (Coleção Adrenalina)

Bibliografia geral

COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum/ Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão.-Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1999.

MORAIS, Alessandra Fonseca de. Nos caracóis do livro infantil: entre a linguagem verbal e ilustrativa. 2007. 157f. Dissertação (Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais) – Universidade do Estado de Minas Gerais, Fundação Educacional de Divinópolis, Divinópolis, 2007.

MACHADO, Maria Zélia Versiani...[et al] (orgs.). Escolhas literárias em jogo – Belo Horizonte: Ceale; Autêntica Editora, 2009. – (Coleção Literatura e Eduação).



[1] O termo 'estranho' aqui foi colocado no intuito de dizer, que o que é muito 'conhecido' torna-se ideia comum. Bloqueia a imaginação, dá a sensação de que tudo está terminado. Para Compagnon (1999, p.40-41) o estranhamento é o desarranjo das formas comuns de percepção.

[2] Muitas vezes esse tipo de leitura traz uma narrativa mais simples do ponto de vista de sua elaboração e é considerada como produto das imposições do mercado e não da criação artística.