EQUIPARAÇÃO DE REMÉDIOS À SANEANTES: ANÁLISE CRÍTICA À INCLUSÃO DO §1°-A DO ART. 273 NO ROL DE CRIMES HEDIONDOS

 

Rafael Barros Freire[1]

Thássyo Azevedo da Silva

 

 

Sumário: Introdução; 1. Exposição crítica à Lei 9.695/98; 2. Análise à Lei 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos), e sua interrelação com o art. 273, §1°-A, CP e com a Lei 9.677/98 (Lei de crimes contra a saúde pública); 3. Classificação da conduta como crime hediondo: lesividade aos princípios da proporcionalidade e da ofensividade; Conclusão; Referências.

RESUMO

Este trabalho se propõe a analisar o art. 273, § 1°-A CP (crime de falsificação de cosméticos e saneantes), atentando para uma linha de reflexão crítica acerca de sua inclusão no rol de crimes hediondos, levando-se em consideração a equiparação de remédios à saneantes e cosméticos. Tal posicionamento crítico se fundamenta na análise das Leis 9.677/98 e 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos). Quer-se analisar também, à luz dos princípios da ofensividade e da proporcionalidade, a equiparação de cosméticos e saneantes à remédios, observando a importância destes elementos na construção de tal olhar crítico.

PALAVRAS-CHAVE

Saúde Pública. Remédios. Cosméticos. Desproporcionalidade.

Introdução

  Com a criação da Lei 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos), o legislador demonstrou preocupação em proporcionar penas mais graves à condutas consideradas mais ofensivas e lesivas ao Estado Democrático de Direito. Esses crimes de maior gravidade e reprovação social passaram a ser considerados hediondos, e receberam do legislador penas maiores, devido à maneira repugnante com que lesavam o bem jurídico.

  Desse modo, a lei nº 9.677/98 posicionou o tipo penal previsto no art 273, que trata de crimes medicinais e terapêuticos, no rol de crimes hediondos. Nesse artigo supracitado, em seu § 1°-A, equiparou-se a falsificação de saneantes e cosméticos à remédios, implicando dizer que falsificar um detergente tem a mesma gravidade que falsificar um remédio. Isto não estaria indo de encontro a princípios penais como o da ofensividade e proporcionalidade no momento que o falsificador de saneante pode ter pena maior que a de um homicida?

  Com isso, faz-se oportuna a análise crítica acerca da equiparação dos saneantes e cosméticos à remédios no crime de falsificação de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, constante no § 1°-A, art. 273 do CP, dando-se especial atenção ao princípio da ofensividade e proporcionalidade

1 Exposição crítica à Lei 9.695/98

 

No ano de 1998, o Brasil estava passando por uma grave crise de falsificações de remédios, que eram freqüentemente encontrados em lojas e farmácias, e como a fiscalização era pequena, as quadrilhas especializadas aproveitavam para lucrar, já que o país é um dos 5 maiores consumidores de remédios do mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Desse modo, o Brasil ficou conhecido como “O paraíso dos remédios falsificados” (VEJA, 1998), e essa máfia saiu deixando vítimas, pois as pessoas achavam que estavam fazendo o tratamento correto para a cura da enfermidade quando na verdade estavam tomando farinha por exemplo.

Desse modo, resolveu-se criar a lei nº 9695 de 20/08/1998, que incluiu essa conduta no rol que trata de crimes hediondos, ou seja, falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais passou a ser considerado crime hediondo, e por isso passou a ter uma pena muito maior.( reclusão, de 10 a 15 anos, e multa).

Art. 1º - São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:

VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais

Entretanto, também foram inclusos nesse rol o § 1º-A e §1º-B que falam que incluem-se entre os produtos a que se refere o artigo 273 os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico e também que uma pessoa que importar um cosmético em perfeitas condições mas sem o devido registro, irá responder por uma pena altíssima além de estar colocando em níveis de igualdade remédios que podem salvar vidas e saneantes, o que acabou gerando  muitas discussões. Luiz Regis Prado por sua vez fala:

O equívoco é patente e grave, ainda mais quando se observa que tal crime (caput, parágrafos 1.º, 1.º-A e 1.º-B) é hediondo. E, claro, todas as suas conseqüências podem alcançar o agente que falsificar, corromper, adulterar ou alterar cosméticos ou saneantes. Como se vê, há uma desproporção entre o valor do injusto e a gravidade da pena. (PRADO, 2004).

Quanto à classificação do crime, trata-se de um crime misto alternativo, ou seja, pode ser praticado mediante falsificação, adulteração, alteração ou corrompendo o produto destinado a fim terapêutico. Falsificar seria assemelhar, imitar um produto verdadeiro. Adulterar seria deturpar, desfigurar o remédio. Alterar seria mudar alguma substância e corromper teria a idéia de decompor. É um crime instantâneo, comum podendo ser sujeito ativo e passivo qualquer pessoa, plurissubsistente tendo o inter criminis, comissivo, requerendo uma ação do autor (GRECO, 2006)

 É um crime de perigo abstrato, ou seja, basta que ocorra o ato ilícito para ser crime, não precisará de nenhum perito para analisar se realmente houve o perigo, pois isso é irrelevante. É importante ressaltar que Greco o considera crime de perigo concreto, já que considera os crimes de perigo abstrato inconstitucionais.

 O bem juridicamente protegido é a incolumidade pública, tratando-se especificamente da saúde pública e é um crime comissivo, necessitando uma ação do agente para acontecer, mas também pode ocorrer na forma omissiva imprópria por parte dos garantidores. Crime doloso, ou seja, o agente deve ter a vontade livre e consciente de querer falsificar, adulterar, corromper ou alterar a substância. Poderá ser cometido também de forma culposa, mas nesse caso não será considerado crime hediondo e também não pode ser cometido culposamente sob a forma de falsificação.

O objeto do crime, ou seja, aquilo sob o qual recai a conduta criminosa, é,segundo Damásio de Jesus, “toda substância, sólida ou líquida, empregada na cura ou prevenção de moléstias” (JESUS, 1999)

 

2 Análise à Lei 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos), e sua relação com o art. 273, §1°-A, CP e com a Lei 9.677/98 (Lei de crimes contra a saúde pública)

 

Foi publicada no diário oficial da União, em 25 de julho de 1990, a lei n° 8.072/90, que instituiu os crimes hediondos, ou seja, crimes com maior potencial ofensivo, aonde há extrema afetação à relevantes bens jurídicos tutelados pelo direito penal. Com a edição da Lei dos crimes hediondos, buscou-se uma solução às necessidades sociais.

Criminalidade e violência ocupam o centro das preocupações de todos os segmentos da sociedade brasileira. Tradicionalmente as autoridades governamentais adotam uma política de exacerbação e ampliação dos meios de combate à criminalidade, como solução de todos os problemas sociais, políticos e econômicos que afligem a sociedade (BITTENCOURT,1995).

Tal medida do legislador pautou-se no princípio da proporcionalidade, sendo que esse princípio de fundamental importância se encontra constituicionalmente implícito.

 O princípio da proporcionalidade constitui-se no instrumento mais poderoso de garantia dos direitos fundamentais contra possíveis excessos perpetrados com o preenchimento do espaço aberto pela Constituição ao legislador para atuar formulativamente no domínio das reservas legais (BONAVIDES, 2001).

 Como consta na lei 8.072/90, em seu inciso VII-B, a “falsificação, corrupção ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §1°, §1°-A e §1°-B) foi inclusa no rol de crimes hediondos. Com isso, o legislador cominou penas mais graves a esses crimes merecedores de maior rigorismo penal.

É importante ressaltar, após uma breve análise acerca da lei dos crimes hediondos, o §1°-A artigo 273 do Código Penal, dando-se atenção também à Lei 9.677/98, qual seja a Lei de crimes contra a saúde pública, que alterou dispositivos do capítulo III do título VIII do Codigo Penal, sendo que dentre tais dispositivos encontra-se o art. 273.  

O código penal brasileiro, em seu artigo 273, tipifica a conduta de “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”. Segundo o §1°-A do referido artigo, “incluem-se entre os produtos que se refere esse artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico”. Dessa forma, observa-se a equiparação de medicamentos à cosméticos e saneantes.

Destarte, é “inegável que a Lei 9.677/98 incorreu em um absurdo aumento das penas cominadas aos delitos em questão, violando o Princípio da Proporcionalidade (proibição de excessos), bem como o Princípio da Ofensividade” (ABRÃO, 2009).

Não há dúvidas quanto à importância e relevância do bem jurídico saúde pública tutelado pelo Código Penal. A intenção do legislador ao criar a lei 8.072/90 (LCH) era indubitavelmente válida e buscava alcançar soluções aos anseios sociais da época.

Contudo, a lei 9.677/98, que alterou significativamente os artigos 272 e 273 do CP, está dotada de desproporcionalidade, pois “tal criminalização de condutas e punição deve estar dentro dos limites impostos pelos princípios constitucionais penais e pelos próprios princípios de Direito Penal (ABRÃO, 2009)”.

“O grande ponto da modificação trazida pela Lei 9.677/98 foi a elevação abrupta e excessiva da pena de um crime de perigo abstrato, que passou a ser superior a de graves crimes de dano, como é o caso do homicídio” (NUCCI, 2010).

Destarte, pode-se observar que, a partir da relação entre a Lei 9.677/98 e o §1°-A do art. 273 do CP, extrai-se o fundado argumento de que a modificação feita pela Lei de crimes contra a saúde pública ao referido artigo constitui desproporcionalidade, pois sendo o crime de falsificação de cosméticos e saneantes um crime de perigo abstrato, passou a ter penas mais graves que um crime de dano, como por exemplo o homicídio. Além disso, incorre em desproporcionalidade a equiparação feita entre remédios e cosméticos e saneantes.

3 Classificação da conduta como crime hediondo: lesividade aos princípios da proporcionalidade e da ofensividade

 

Como já citado anteriormente, o princípio da proporcionalidade possui, assim como os demais princípios, inquestionável relevância em nosso ordenamento jurídico. Os princípios “exprimem os valores de uma sociedade, os quais se incorporam, através do Estado democrático de Direito, ao ordenamento jurídico regulador desta mesma sociedade.” (CARVALHO; JESUS, 2010)

Houve com a edição do § 1°-A do artigo 273 do CP – sendo tal dispositivo alterado pela lei 9.677/98 –             a equiparação de cosméticos e saneantes à remédios, além da inclusão desse crime no rol de crimes hediondos.

 A Lei nº 9.677 de 1998 que alterou significativamente a redação dos artigos 272 e 273, ambos do Código Penal, ainda hoje suscita enorme discussão acerca de sua (in) constitucionalidade, haja vista a flagrante violação a determinados princípios inerentes ao Estado Constitucional e Democrático de Direito. (ABRÃO, 2009)

Sendo assim, observando-se as discussões acerca da lei de crimes contra a saúde pública, bem como o crime de falsificação, adulteração ou alteração de produto destinado a fins teraupêuticos e medicinais tipificado no art. 273 CP, constata-se que “a Lei 9.677/98 incorreu em um absurdo aumento das penas cominadas aos delitos em questão, violando o Princípio da Proporcionalidade (proibição de excessos), bem como o Princípio da Ofensividade.” (ABRÃO, 2009)

Faz-se extremamente importante a análise crítica da supracitada lei, tendo como base na discussão os princípios da proporcionalidade e da ofensividade. Tais princípios constitucionais penais são grandes alicerces do ordenamento jurídico pátrio, e consequentemente, ao sistema penal brasileiro. Com isso, assim como os demais princípios, devem ser observados pelos legisladores e penalistas.  

Ora, o princípio da proporcionalidade, decorrente do mandado de proibição de excessos, e o princípio da ofensividade foram claramente afrontados na Lei 9677 de 02.07.1998, bem como pela Lei 9695, de 20.08.1998. Regras ai contidas concretizam graves distorções entre os fatos inócuos descritos e a sua criminalização. (JUNIOR, 1999).

O princípio da proporcionalidade versa que a resposta estatal à conduta típica, ou seja, a pena, deve guardar proporcionalidade com a lesividade proveniente do ato ilícito, sendo que tal não acontece com o crime tipificado no artigo 273, CP.

O equívoco é patente e grave, ainda mais quando se observa que tal crime (caput, parágrafos 1.º, 1.º-A e 1.º-B) é hediondo. E, claro, todas as suas conseqüências podem alcançar o agente que falsificar, corromper, adulterar ou alterar cosméticos ou saneantes. Como se vê, há uma desproporção entre o valor do injusto e a gravidade da pena. (PRADO, 2004)

Em relação ao principio da ofensividade, este fala que o Direito Penal só deve atuar onde exista claro perigo ou lesão. Desse modo, a falsificação de saneantes estará também ferindo a este principio no momento que o encaixa no rol de crimes hediondos, pois não ofende de forma tão grave o bem jurídico protegido. O Direito Penal não deve ser um instrumento do Estado que só serve para a punição. Ele somente deve agir quando os outros ramos do direito falharem (principio da subsidiariedade) e quando houver relevante lesão ou perigo ao bem jurídico (principio da fragmentariedade). Nesta mesma linha, em relação ao §1-B, uma pessoa que importa um saneante em perfeito estado e não o registra, responde por penas altíssimas, sendo que muitas vezes sua conduta nem atinja o bem jurídico de alguém. Greco ao tratar sobre o princípio da ofensividade, afirma que:

Por mais importante que seja o bem, que a conduta seja inadequada socialmente, somente poderá haver a criminalização de comportamentos se a conduta do agente ultrapassar a sua esfera individual, atingindo bens de terceiros. Por intermédio, do principio da lesividade(ofensividade), proíbe-se a incriminação de pensamentos, de modos ou de formas de ser e de se comportar, bem como de ações que não atinjam bens de terceiros (GRECO,2006)

Além disso, é um crime de perigo abstrato e alguns autores como o próprio Rogério Greco baseado no principio da intervenção mínima, que fala que o direito penal só deve ser aplicado estritamente quando necessário, considera esse tipo de crime como inconstitucional, pois não se exige a perícia para constatar se realmente houve o perigo ou lesão, bastando a mera conduta para se configurar o delito.

Desse modo, o referido inciso mostra-se inconstitucional por ferir princípios bases do direito penal.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

ABRÃO, Guilherme Rodrigues. A (In) Constitucionalidade da Lei dos Remédios: Artigos 272 e 273 do Código Penal – Breve análise crítica. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 14. Março 2012.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Princípios garantistas e a delinqüência do colarinho branco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 11, p. 118, 1995

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 386.

CARVALHO, Alexandre Rosa; JESUS, Reinaldo Costa. Artigo 273 do CP e o princípio da proporcionalidade: suas incongruências como crime hediondo. Disponível em: < http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=4318>. Acesso em: 18 maio 2012.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 14 ed. 3 vol. São Paulo: Saraiva, 1999.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Vol. IV. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes Hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. Ed. 7. São Paulo: Saraiva, 2002.

NUCCI, Guilherme Souza, in: Código Penal Comentado, Revista dos Tribunais, 2010.

PASTORE, Karina. Revistas Veja. Ed. Abril. 1998. Disponível em: <http//http://veja.abril.com.br/080798/p_040.html> Acesso em 19 de maio de 2012.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial arts. 184 a 288. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

REALE JÚNIOR, Miguel. A inconstitucionalidade da lei dos remédios. RT/Fasc. Pen., São Paulo, a. 88, v. 763, p. 415, maio 1999.

SEADI, Jorge Abdala. Crimes hediondos e a falsificação de medicamentos. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=e2lid-lolXwC&pg=PA30&lpg=PA30&dq=:++A+lei#v=onepage&q=%3A%20%20A%20lei&f=false>. Acesso em: 13 março 2012.



[1] Acadêmicos do 5° período vespertino do curso de direito da UNDB – Unidade de Ensino Superior Dom Bosco