Entrevista Bizarra

Eis que senta um dos candidatos em frente à entrevistadora...

...{pausa}...

Ele fita os olhos dela com um olhar profundo numa certa ansiedade inicial. A entrevistadora decide por começar com uma pergunta mais ou menos pessoal, provavelmente para ter uma primeira concepção do gênio que estava lidando ou talvez para acalentar o gelo inicial.

- Muito bem. Vamos começar falando um pouco sobre você!?
- Começar falando sobre mim? Como assim senhora?
- Sim. Algum problema? Comece falando sobre sua infância, sua juventude, seus gostos.
O candidato suspirou e então replicou com ar misterioso:
"Se eu contar creio que a senhora não vai acreditar... entretanto, a estória que vou lhe contar é verdadeira. Falo isso porque sei que tudo pode soar demasiado estranho.
- Temos tempo, fique a vontade.
- Levei uma vida simples em uma fazenda no oeste catarinense, um paraíso, era uma pequena propriedade encravada entre montes verdes de araucárias, rios límpidos cortavam a floresta, no céu voavam pássaros de várias espécies, até mesmo os tucanos, símbolos desta nação. Lá o tempo passava lento, em relação ao povo nem se fala, eram humanistas, difícil captar maldade e individualismo no ar. O acesso era difícil, devido a grande distância das cidades maiores, além disso, as estradas de terra eram sinuosas e cobertas por um cascalho mal britado que às vezes danificava os veículos.
Vivia eu, minha mãe, pai, dois irmãos e uma irmã. A infância foi divertida; subia em árvores, atirava nos passarinhos, freqüentava a casa dos primos, cantava sobre os telhados, planejava travessuras e todas as coisas de uma criança saudável.
Contudo, abstenho-me de falar muito sobre essa época, posto que seja irrelevante frente ao que quero contar-te.
Certo dia, eu devia estar com uns 17 anos, lembro-me que era por volta de junho ou julho porque estava frio, no céu cintilavam estrelas como nunca devido ao ar rarefeito do inverno. Pois bem, recebemos a visita do tio Marcelino que viera de Paris onde estava a estudar coisas estranhas, ele era físico e estava interessado em eletromagnetismo e efeito de voz eletrônica ? FVE. Explico: Como ele se hospedava em nossa casa tive a grande felicidade conhecer muito bem meu tio. Em nossas rodas de chimarrão noturnas ele me contava sobre seus experimentos. Contava com aproximadamente 50 anos, entretanto aparentava ter menos, era um intelectual e eu o adorava. Sabia tudo sobre literatura, cinema e gostava muito de música, mas nos finais de semana saía para beber e conhecer mulheres, era um solteirão e sempre tomava seu tradicional Scotch. Eis que diante de meu interesse o tio Marcelino acabou por me introduzir na prática do FVE ? escuta de vozes dos mortos através de dispositivos eletrônicos ? eu comecei a utilizar um gravador para ouvir esses sons, meu tio usava um equipamento bem mais complexo do qual não sei explicar os detalhes. Em suma, trata-se de freqüências que não conseguimos ouvir naturalmente. Uma fita K-7 é inserida em um gravador (o ambiente deve estar em absoluto silêncio), onde eu morava era perfeito, coloca-se a fita para gravar, depois se tenta interpretar os sons de fundo.
Enfim, desde então com a prática do FVE eu consigo ouvir os mortos. Doutora, eles me dizem tudo!."
- Nossa. Tudo isso é muito curioso. A próxima etapa seria perguntar-lhe sobre suas experiências profissionais, mas acho melhor perguntar ao senhor sobre suas experiências com mortos. Prossiga!
- Certo. Sei que a senhora está duvidando do que estou a lhe contar. Sabias que o que vemos não é o que realmente existe? O olho humano enxerga apenas uma pequena parte do espectro eletromagnético, apenas a parte da luz visível; não enxergamos as coisas sutis, nem as demasiado pequenas tampouco as colossais. Com a audição ocorre o mesmo, é falha e não pode captar todos os ruídos e freqüências.
- Sei. Interessante... Mas, me conte sobre o que falam os mortos?
- Eu sei que isso parece loucura, mas eles me falam sobre tudo, contudo, às entrelinhas não posso lhe contar. Eles nos ouvem todo instante e me pedem para eu não contar a ninguém. São nossos segredos! Posso dizer que eu já sabia que você me entrevistaria para a vaga de escriturário, eles me contaram que a senhora me acharia paranóico por ouvir tais insanidades e que tecnicamente você me definiria como esquizofrênico.
- Não te preocupes senhor, está tudo certo. Ficarei com seu telefone no caso da necessidade da contratação.
- Sim. Tenha um bom dia doutora.

"Nossa, ela não me perguntou nada sobre minhas aptidões, cursos e experiências profissionais. Que mulher estranha"!

...{pausa}...

- Ora, falar com mortos?! Não sei, mas de todos os loucos que apareceram aqui, este me pareceu ser o menos patológico...