Hoje vamos falar com alguém que por vezes ignoramos e em quem não pensamos quando passamos na rua. Um só funcionário que se diz cansado. Será que foi a vida que o cansou?

Em primeiro lugar queria desejar-lhe as boas-tardes e agradecer-lhe a sua disponibilidade para a entrevista.

?Porque é funcionário?
Foi a vida. Encostou-me à parede e obrigou-me a seguir o caminho traçado no chão. Foram as pessoas, que não o mudaram mas criaram uma barreira que me impediu que saltasse a estrada. Não via o sol, não via a linha do horizonte. A esquerda e a direita em cimento igual ao chão. E assim não fui cantor, não fui artista, não fui protagonista da minha vida. Fui funcionário tal como hoje sou.
?É feliz?
A felicidade é subjectiva. Vem em várias formas. Nunca senti nada senão o que sinto. Se isto é felicidade então sim, sou feliz. Se não o é, então não sou.
?Para quem trabalha?
Não sei para quem trabalho, não sei. Para quem trabalha? Para se sustentar, para saborear o tutano da vida ou para a carregar as costas sem a saborear. Porque trabalha? Não sei eu responder para quem nem o porquê. Resigno-me à ignorância e sigo o caminho trilhado no chão.
?Cansa-lhe o seu trabalho? Traz-lhe inércia e rotina?
Não, não é cansaço... é uma quantidade de desilusão. É um domingo as avessas que não queremos que acabe mas não gostamos do que ai vem. É conhecer um fim sem saber quando vem. E sim é inércia. É parar e estar parado.
?Por detrás da Alegria e do Riso, pode haver uma natureza vulgar, dura e insensível. Mas, por detrás do Sofrimento, há sempre Sofrimento. Já sofreu muito durante a sua vida?
Quem nunca sofreu que seja o primeiro a acusar-se. Penso para mim que sinal da maturidade humana é aceitar o desafio do sofrimento. Todos os dias quando me levanto penso nisso e que para se ser feliz até um ponto é preciso ter-se sofrido até esse mesmo ponto. Não sou homem de chorar mas acho que cada lágrima de sofrimento nos ensina uma verdade.
?Já parou para sonhar?
O sonho é parte de nós. Eu sonho como sonhei, mas como a Amália outrora cantara "Pus o meu sonho no navio e o navio em cima do mar. Depois abri o mar com as mãos, com as mão para o navio naufragar"
?Fernando Pessoa uma vez disse: "não sabemos da alma senão da nossa; as dos outros são olhares, são gestos, são palavras, com a suposição de qualquer semelhança no fundo". Conhece a sua alma?
Conheço-me a mim. Conheço a minha alma de que sou feito mas não sei bem. Será ar, será pó? Desconheço. Mas transporto-a no corpo que me foi dado. Conheço-me, conheço a alma. A dos outros não sei.
?Quem nunca amou nunca viveu. Já amou?
Uma vez amei, julgando que me amariam. Mas não fui amado. E vivi. Vivi um sentimento de coração partido. Mas para viver não é preciso amar, é preciso sentir. Bem ou mal, depende desses!
?No desarrumar dos seus pensamentos como é que vê o seu futuro?
Igual ao que hoje é o passado e o presente. Para uns a vida é uma linha recta, para outros um ciclo. Para mim é a Muralha da China sem fim, sempre igual e com o mesmo objectivo, mas sem a grande grandiosidade.
?Caro senhor, foi uma honra e um grande privilégio ter-nos dado a oportunidade de estar à conversa com um funcionário que se diz sentir cansado e descobrir um pouco da sua vida. Para terminar, gostaria de deixar alguma mensagem para os leitores?
Eu é que agradeço por este convite. Para as pessoas que estão a ler isto gostava de deixar uma frase daquele que considero um dos melhores poetas e escritores portugueses, Fernando Pessoa. Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso. Nunca irei deixar de sonhar nem de imaginar. Tenho em mim todos os sonhos do Mundo?