Introdução

Lygia Fagundes Telles é uma importante romancista e contista brasileira, autora de livros consagrados, como Ciranda de Pedra (1954) e As meninas (1973). Em 1985, foi eleita a ocupar a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras e, em 2005, galardoada com o Prêmio Camões pela qualidade de seus romances e contos.

O conto selecionado para esta análise, “Venha ver o pôr-do-sol”, foi publicado em 1970 pela extinta editora carioca Bloch no livro Antes do Baile Verde.

Livro relacionado:

“Venha ver o pôr-do-sol” conta a história de Raquel que, ao encontrar-se em determinado lugar com seu ex-namorado Ricardo, a pedido dele, descobre, somente quando chega ao local, que se trata de um cemitério abandonado. No decorrer da história, ambos vão embrenhando-se cada vez mais no cemitério, e, embora Raquel peça que Ricardo desista da ideia de continuar caminhando pelo lugar, ele quer encontrar o túmulo de sua família, a qual, supostamente, teria sido enterrada ali.

Em consideração feita por Taddei (2013) sobre a obra de Lygia Fangundes Telles ele afirma – e temos de concordar com ele – que

Há em sua obra a marca do suspense como uma pergunta sem resposta. Não porque na ausência resida o mistério (e muitos de seus textos invocam mistério e horror). Mas porque está repleta de personagens solitários, rejeitados ou loucos. O inacabado aparece como linguagem, na dificuldade de se comunicar.

No conto Natal na Barca, por exemplo, uma mãe com um filho moribundo vive um transe misto de desespero e fé; em Venha Ver o Pôr-do-Sol, um amante rejeitado decide castigar a mulher trancando-a no jazigo de um cemitério; em Biruta, um garoto é privado de seu cachorro no Natal. Lygia trata do “desencontro humano como inevitável”, como Óscar Lopes. (TADDEI, 2013, p. 21)

O clima soturno e silente do conto, cortado apenas pelo som dos passos do casal, fica bem evidenciado quando da seguinte descrição:

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados (TELLES, 2007, p. 28-9).

Cremos que a riqueza de detalhes reforça os aspectos sombrios do ambiente e aumenta as expectativas sobre o desfecho da história. O fim do conto, mesmo que em certos momentos previsto devido às denunciações psicológicas e físicas das personagens, consegue ser para além de nossas previsões e, assim, surpreendente.

Tais aspectos destacados dessa narrativa, e também outros dos quais aqui não trataremos, merecem uma investigação mais esmiuçada, de forma a melhor compreendermos os elementos que estruturam esse conto de Lygia Fagundes Telles.

Análise 

O conto “Venha ver o pôr-do-sol” apresenta somente duas personagens: Raquel e Ricardo, sedutor ex-namorado dela. A primeira personagem funciona como protagonista da história, enquanto a segunda, como antagonista, por ser a força que se opõe ao herói (heroína, no caso).

 O narrador, por sua vez, pode ser identificado como um narrador-observador (em 3ª pessoa do singular), o qual narra as ações presentes no enredo sem se incluir, sem participar.

Quanto ao espaço, a narrativa inicia-se com Raquel subindo uma ladeira que a leva a um local com poucas casas, repleto de terrenos baldios. Ela encontra-se com a personagem Ricardo em frente a um cemitério, o qual, como insistentemente afirmado por ele, se encontra há muitos anos abandonado. Mais à frente, Ricardo persuade Raquel, e ambos adentram o cemitério.

A história desenvolve-se num tempo cronológico de aproximadamente um fim de tarde.

Raquel, ao chegar à frente do cemitério, um lugar bastante lúgubre, pouco habitado e cheio de lama, começa a conversar com Ricardo, seu ex-namorado. Ela repreende-o por ele ter marcado um encontro em um lugar tão abjeto. Ricardo ri “entre malicioso e ingênuo” (TELLES, 2007, p. 26), não se importando com a repreensão, e elogia a beleza de Raquel, diz que queria vê-la mais uma vez.

Nessa altura, Raquel percebe o muro do cemitério – até então ela conseguira somente perceber o seu entorno. Ricardo, percebendo que a moça encontrava-se contrariada, afirma que aquele cemitério está abandonado há muito tempo e convida-a a entrar a fim de verem “o pôr-do-sol mais lindo do mundo” (TELLES, 2007, p. 27).

De início, Raquel reluta em entrar. O ex-namorado afirma conhecer o cemitério, visto que seus familiares encontram-se enterrados nele, e, também, justifica por que marcou o encontro em tal lugar: primeiro, por não querer expor Raquel – ela já namorava outro rapaz, bastante ciumento, e, por isso, não poderia arriscar ser vista com Ricardo; segundo, por não ter dinheiro para levá-la a algum lugar mais adequado. Diante desses argumentos, Raquel acaba atravessando o portão – rangente – juntamente a Ricardo.

E aqui não podemos deixar de destacar como as descrições da narrativa são acuradas e minuciosas – remetamos ao excerto citado na introdução desta análise. Outro fator que se faz necessário destacar diz respeito à personagem Ricardo: Ricardo é, em grande medida, persuasivo e sedutor em sua linguagem. Tal característica revela a personagem no decorrer de todo conto, mas pode ser mais bem percebida no seguinte trecho. Raquel afirma que o lugar em que se encontram é deprimente e que quer ir embora, ao que Ricardo responde:

- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo (TELLES, 2007, p. 29).

Continuemos a apresentar o enredo. Devido ao espírito persuasivo de Ricardo, ambos embrenham-se cada vez mais no cemitério. Em certo momento, Raquel volta a afirmar que quer ir embora, mas Ricardo diz-lhe que dobrando a próxima alameda chegarão ao jazigo da família dele e aproveita o ensejo para contar um pouco sobre a história de uma figura já morta, a sua prima.  Fala sobre como ele andava de mãos dadas com ela por aquele cemitério, quando ambos tinham doze anos de idade. Ela morreu aos quinze anos e, embora não fosse propriamente bonita, tinha os olhos verdes e “meio oblíquos” (TELLES, 2007, p. 31) nos quais residia toda a sua beleza. Ricardo diz a Raquel que os olhos de sua prima se pareciam com os dela.

Essa conversa realizada pelas personagens abre espaço para que Ricardo remonte ao seu próprio relacionamento com Raquel. Ela afirma que gostou dele; ele, por sua vez, diz-lhe que a amou e que a ama ainda.

Nessa altura, Ricardo a anuncia o seguinte: “- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos” (TELLES, 2007, p. 31). Acreditamos ser relevante reproduzirmos a descrição que segue esse anúncio, pela imagem que cria:

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo pó uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros de Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba (TELLES, 2007, p. 31).

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