Na prática docente no ensino fundamental da escola pública, ainda se presencia comportamentos discriminadores dos alunos quando fazem referência aos traços étnicos tidos como grosseiros e feios, como o nariz e a boca; desdenham do cabelo crespo ou desmerecem a expressão religiosa de ascendência africana, o candomblé.

Com o advento da Lei 10.639/03, de 09 de janeiro de 2003, que determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, se pretende uma intervenção mais criteriosa contra qualquer manifestação de intolerância racial, étnica ou religiosa que incida sobre o cidadão negro ou afro-descendente no âmbito escolar. No que tange às escolas, verifica-se a timidez e a inexistência de projetos mais audaciosos e direcionados que implementem as prescrições dessa Lei.

Algumas razões fundadoras de tais comportamentos tem raízes no passado. Nessa perspectiva, as teorias raciais do século XIX (Schwarcz, 1993) parecem ter estendido por longo tempo sua sombra impositiva da diferença a tudo que soa africano, como cultura desprovida de civilidade. Nascida no contexto final do sistema escravista brasileiro, a sua instituição parecia designar o desejo de estabelecer critérios diferenciados de cidadania, colocando a negritude em situação inferiorizada.

Além delas, outras instituições que têm relevância histórica também se serviram da idéia de superioridade para estender o poder sobre grupos considerados ameaçadores à ordem vigente. Desse modo, a Santa Inquisição que dominou o continente europeu, na Idade Média, cujo pretexto religioso incidiu sobre ciganos, judeus e mulheres consideradas bruxas. Depois, sentindo diminuído o número de seguidores em detrimento do protestantismo e da visão científica que começava a questionar os dogmas religiosos, a Igreja, através do proselitismo, foi buscar nos nativos indígenas do Novo Mundo, seus novos adeptos, submetendo-os à fé cristã.

Para justificar interesses políticos e econômicos, fortalece-se a idéia da Escravidão, num outro momento histórico, como exploração do homem sobre o seu semelhante a fim de gerar riqueza para os "senhores". Dessa forma, o homem, principalmente o negro, é tomado como mercadoria, o que de certa forma ainda persiste no contexto atual no qual sobeja o preconceito e o estereótipo.

Aprendizagens negativas, imagens estereotipadas, manifestação de comportamentos preconceituosos são também transmitidas no seio da família e em outros círculos sociais, numa herança nefasta. É uma história que se repete no cotidiano, dentro e fora da escola, mas que nesta, como entidade que contribui para a formação integral do aluno e da aluna (intelectual, biológica, moral, espiritual, física) precisa tomar consciência de seu papel na reformulação de pensamentos e atitudes do educando, visando o ser sócio-cultural.

Já que a escola, como uma instituição de referência na socialização secundária de crianças e jovens, produz conhecimentos, habitus e representações muitas vezes permeadas por ideologia, que podem atuar no sentido de produzir e reproduzir senso comum, naturalizações, hierarquias e subordinações das diferenças étnico-raciais e culturais. É a partir dela, como promotora da educação e da cidadania, que se deve frisar e construir estratégias para atenuar as diferenças.

Concebe-se que, enquanto não se tocar a fundo nessas questões, as cisões que estabelecem a diferença sem fundamentos lógicos, mas apenas racistas, continuarão a exprimir-se grotesca e desumanamente, através das ações do preconceito que insinua a eliminação do outro para que o mesmo permaneça.

A atitude e o sentimento preconceituoso atuam amalgamados ao estereótipo. E sendo este uma das estratégias ideológicas, concorda-se com Bhabha ao dizer que o estereótipo

É um texto muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes "oficiais" e fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista. (BHABHA, 1998, p. 125)

Entendendo o texto como uma teia, uma trama de significados, considera-se o preconceito e o estereótipo uma tessitura possível de ser ressignificada a partir do esclarecimento e da composição de estratégias que leve opressor e oprimido às reflexões sobre a problemática central, reelaborando as tensões que afetam as relações decorrentes de uma dada situação, ao mergulhar nas origens do problema.

Sendo a escola, um dos ambientes por excelência da prática educativa, é pertinente a proposta de Mattos no que tange à reflexão do passado para entender o presente.

[...] ativar a possibilidade de dar expressão e significado a conteúdos históricos concretos silenciados pelas memórias dominantes, trazer à cena e positivar os conteúdos não codificados pelas linguagens convencionais, ressignificar as sociabilidades não-hegemônicas e as múltiplas temporalidades do viver cotidiano. [...] trata-se de construir e divulgar concepções e pressupostos capazes de reorientar a nossa compreensão do nosso próprio passado - e, se preciso, mudá-lo na forma como ele se nos mostra -, à luz consciente de um projeto político e civilizacional contemporâneo, ao mesmo tempo emancipador e anti-racista. (2003, p. 231)

Talvez assim, promovendo o encontro com o passado, através do estudo sistemático, lúdico e criativo da história africana, o aluno e até mesmo o corpo docente possam acessar o esclarecimento e promover em si mesmo a análise crítica de fatos que permaneceram historicamente distantes, mas que afetam direta ou indiretamente as relações atuais.

Sem o devido apoio efetivo de documentos e representantes gabaritados para a implementação de uma discussão sobre a cultura negra e todo seu legado, torna-se cada vez mais difícil o atenuamento de situações conflitantes no espaço escolar. Mesmo os membros diretos que trabalham nela, professores, coordenação, direção e funcionários, com o silêncio, promovem a interiorização de comportamentos preconceituosos sobre o negro, sua cultura e história. Na escola, a origem étnica parece determinar um lugar e um tratamento diferenciado para o negro e afro-descendente.

REFERÊNCIAS

BHABHA, Hommi K. O local da cultura. Tradução de: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

MATTOS, Wilson Roberto de. Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares. Revista da FAEEBA ? Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 19, p. 229-234, jan.-jun., 2003.

SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil ? 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.