A situação caótica da educação brasileira tem raízes diversas e complexas. Quero, porém, abordar uma questão que poucas pessoas dispensam atenção – o discurso pedagógico. Nos últimos anos, os professores foram doutrinados a pensar que são inteiramente responsáveis pela educação (seja o sucesso, seja o fracasso), como se a relação professor-aluno fosse o único elemento a se considerar neste processo. As produções acadêmicas de psicólogos, pedagogos e psicopedagogos são unânimes em apontar o culpado pela decadência do ensino no país – o magistério. Claro que não dizem isso diretamente, mas é indiscutível que esta ideia está implícita em suas teorias.

A minha intenção é não cair no lugar comum e dizer que o sistema está falido devido à má formação e atualização dos professores, da desvalorização moral, social e econômica dos docentes, da falta de infra-estrutura da maioria das escolas do país, enfim, isso todos já sabem, não se discute.

O que estou propondo é ampliar este debate. Deste modo, vou citar um estudioso do assunto, Júlio Groppa, adorado por todos aqueles que compartilham o prazer de falar mal do magistério, sobretudo público. Trata-se de uma análise rápida, apenas com a intenção de ilustrar o que pretendo repudiar.

O senhor Júlio Groppa foi escolhido pela secretaria de educação da cidade onde leciono para apresentar uma palestra intitulada “A indisciplina na sala de aula”. Na ocasião, deixou os docentes revoltados com sua arrogância e colocou toda a culpa da desobediência dos alunos nas costas do professorado. Se levarmos em consideração que as palestras deste profissional são muito requisitadas pelas secretarias de educação pelo Brasil afora, trata-se de afirmar que é um discurso comprado (ou assumido) pelo Estado.

Em uma de suas entrevistas, o “professor” Júlio Groppa afirma que a questão da violência na escola é tratada com alarde pela imprensa e pelos professores. A situação é bem menos grave do que parece. Quando questionado sobre a posição dos docentes em falar que o problema está na (falta de) educação familiar do aluno, o referido autor é categórico ao dizer que o professor deveria “se silenciar” ao abordar questões que estão fora da sua alçada. Sem comentários!

Em outra ocasião, num artigo intitulado “da palavra e o professor: notas sobre pregar, narrar e democratizar”, o senhor Júlio Groppa busca no século XVII um texto referencial para defender suas teses. Trata-se de um sermão do Padre Antônio Vieira discorrendo sobre o fracasso das pregações do seu tempo. Desprovido de qualquer análise do contexto histórico de Vieira, o “educador” Júlio Groppa faz suas as conclusões do padre: o fracasso é culpa do pregador.

O estudioso da USP não está sozinho. Faz um bom tempo que as faculdades de pedagogia não fazem outra coisa senão culpabilizar os professores pelo insucesso da aprendizagem dos seus alunos. Poderia aqui citar outros inúmeros profissionais renomados que compartilham este pensamento.

Muitos educadores adoram trazer experiências bem sucedidas na Europa e adaptá-las ao Brasil. Claro que eles se esquecem que lá a educação é levada a sério. Os professores recebem um salário compatível com sua importância social. Pratica-se a verdadeira democratização do ensino, ou seja, a educação pública é freqüentada por todos. Desta forma, toda a sociedade realmente se preocupa com a qualidade de suas escolas. No Brasil, quem tem dinheiro simplesmente manda o filho para uma escola particular. Resolve-se, assim, o problema, bem ao jeitinho passivo do brasileiro!

Entretanto, quando penso na Europa como referencial educacional prefiro seguir uma prática bastante comum na maior parte deste continente: a distribuição de papéis. As leis educacionais costumam definir a seguinte estrutura: ao Estado cabe disponibilizar toda a estrutura para que as escolas possam funcionar; ao professor cabe a obrigação de ensinar, sendo apoiado pelo Estado neste papel; ao aluno cabe a obrigação de aprender, sendo apoiado pela família neste papel. Mais simples do que isso é impossível.

Sabe-se que as certezas e verdades são tão efêmeras quanto duvidosas. Porém, há muitos anos que o Brasil resolveu adotar um pensamento como dogma – a noção de ensino-aprendizagem. Assim como numa Inquisição, cometer a heresia de contestar esta verdade é passível de condenação, menos mal que hoje em dia dispensamos as fogueiras, embora mantenhamos os expurgos.

            É preciso abrir um parêntese. Não estou colocando em discussão inúmeros estudos sérios demonstrando a relação estreita entre a forma de ensino e o tipo de aprendizado. Apenas chamo a atenção para os desdobramentos que isto acabou provocando no pensamento pedagógico, sobretudo brasileiro. Utilizando a lógica do dogma em questão, deduzimos que só há ensino se houver aprendizagem, ou seja, se o aluno não aprendeu é porque quem ensinou – o professor – falhou. Que engraçado, acho que já falamos disso lá em cima.

            O discurso que aqui entendemos ser dominante na educação brasileira acabou por trazer uma triste consequência para o trabalho do professor. Diante da realidade (alunos semi-analfabetos chegando ao Ensino Médio), muitos colegas sucumbem e apesar de saber que seu aluno não tem condições de seguir adiante não querem conviver com o rótulo de fracassado. No final do ano, arruma-se sempre um “jeitinho” para que o “aproveitamento” seja “satisfatório”. Alimenta-se, desta forma, um circulo vicioso. Mas este mesmo discurso, bancado pelo Estado (viva Júlio Groppa!), está ajudando o Brasil a melhorar os seus números (viva Maquiavel!). Que coisa linda ver aquela mulher do comercial subindo as escadas do desenvolvimento na educação do país! O Ideb só melhora! Escolas e prefeituras pulam de alegria quando veem seus cofres mais cheios por cumprirem a meta do Ideb. O contraditório é que isso tudo contrasta com aquilo que os professores percebem no dia a dia do seu trabalho: a cada ano que passa o “nível” fica pior. Qual é o segredo?

            Se você pensar um pouco mais, com calma, vai perceber o quanto de podre se encontra a educação brasileira. O país quer mostrar para o mundo que investe na educação, para isso precisa melhorar os índices de escolaridade. Uma das primeiras iniciativas foi a tão conhecida universalização da educação, garantindo a todas as crianças o acesso à escola. Para garantir lugar para toda esta demanda, era comum os governantes criarem escolas, assunto corriqueiro nas campanhas políticas. Com o passar do tempo, achou-se que não precisava de mais unidades, afinal, seguindo a linha do “coração de mãe”, quem dá aula pra 20 pode muito bem se virar com 40. E, afinal de contas, como já testemunhei uma educadora dizer, “não há nenhuma pesquisa comprovando que numa turma menor há melhor aprendizado”.

Outra iniciativa, esta mais recente, foi incluir a antiga Classe de Alfabetização no Ensino Fundamental, uma manobra simples que aumentava em 1 ano a escolaridade do brasileiro.

Paralelamente, buscou-se uma forma de quantificar a qualidade da educação. Encontrou-se uma fórmula mágica. O Ideb faz uma média entre a nota da Prova Brasil, os índices de evasão e de repetência. E não é de se estranhar que o peso dos números da repetência é maior do que o da avaliação nacional.

Agora é só fazer a brincadeira do siga os pontinhos: o Brasil quer que o Ideb do país melhore e para isso fornece gratificações para os estados e municípios que obtenha tal feito.  Os estados e municípios querem receber mais dinheiro e por isso premiam as escolas que conseguem melhorar seu desempenho. Junta-se agora a fome com a vontade de comer. Temos um professor encurralado por dois lados: por um, a equipe pedagógica dizendo que quanto mais ele aprovar, mais competente ele é; de outro, uma secretária de educação ou o diretor de escola (loucos por mais verba) dizendo que quanto menos ele reprovar, menos chance de algo acontecer com ele (leia-se demissão, para os contratados; perseguições; transferências de escola; desvios de função, etc.). Ingredientes perfeitos para explicar uma das facetas da falência da educação no país.

Mas quando se culpa o professor pelo fracasso escolar do aluno, há de se debater outros pontos. Quando falamos em educação, somos obrigados a falar em quatro atores: Estado, professor, aluno e família. Toda vez que alguém restringe esta tarefa à relação professor-aluno incorre num erro grave.

Há pouco tempo li um texto de um colega professor, Declev Dib-Ferreira, que aborda, entre outras coisas, esta discussão. O autor dizia que recebemos, salvo algumas exceções, um aluno extremamente carente. Primeiro é o Estado, que desde os seus primórdios dias quase sempre não cumpre com que prometeu. Coisas “pequenas” como o que a constituição do país ordena: saneamento básico, saúde, segurança, habitação etc. Com isso, temos a criança e sua família desprovida de elementos básicos para se viver dignamente. E por falar em família, além de sofrer toda a falta do Estado, o aluno, antes de chegar até você, professor, ainda passa pela experiência de ser criado em ambientes tão desestruturados como os lares atuais. Poderia aqui falar da ausência de limites imposta às crianças, da falta de exemplos, da violência doméstica etc. Mas assim estaria desobedecendo às ordens do mestre Groppa.

Tudo isso foi pra dizer que quando recebemos um aluno em sala de aula, ele já se encontra afetado por inúmeros traumas que vão, indiscutivelmente, afetar seu desempenho educacional. No entanto, os mesmos atores (Estado e família) que malograram no seu papel, transferem para os docentes a culpa que deviam repartir.

Como os antigos hereges, não busco criar uma doutrina nova. É exatamente por acreditar na capacidade transformadora da educação que afirmo: somente avançaremos quando os quatro atores admitirem suas limitações e suas falhas. Enquanto a novela da qual fazemos parte continuar a colocar o professor como vilão, continuaremos a ver a mesma história, ano após ano.