O conto “Apocalipse Privado” retrata um período de guerra civil de Moçambique em que o autor apresenta várias situações (memórias) vividas pelo personagem-narrativo no período pós-guerra, fica evidente o aspecto de, mesmo ela estar encerrada, não haver mais desordeiros, as marcas ficaram, principalmente nos sujeitos e no cenário, claro. Os recursos utilizados pelo autor para narrar a história de uma nação, evidenciam com precisão este momento histórico do país, com um memorial jamais esquecido, com narrador em primeira pessoa.

Nesta análise pretendemos articular o conto às teorias estudadas na disciplina de Seminário de Estudos avançados. Para isto tomaremos as considerações de Beatriz Sarlo, em Tempo Passado- Além da experiência; Ilse Vivian em A Personagem Memória e ainda as considerações de Maria Lúcia Aragão em Memórias e Temporalidade.

O conto “Apocalipse Privado” inicia com a narrativa que identifica um personagem-memória. A construção de fatos ou personagens que são criados na memória. Fatos não lembrados pelo personagem, mas imaginados por este, são narrados claramente em primeira pessoa, sendo imaginados, eles existem, há uma construção do imaginário. O personagem não volta para o passado, mas o passado passa a integrar o presente. Vejamos no conto esta construção a que queremos relacionar:

Agora quando desembrulho minhas lembranças eu aprendo meus muitos idiomas. Nem assim me entendo. Porque enquanto me descubro, eu mesmo me anoiteço, fosse haver coisas só visíveis em plena cegueira. Nasci de ninguém, fui eu que me engravidei. Meus pais negaram a herança das suas vidas. Ainda sujo dos sangues me deixaram no mundo. (Cada homem é uma raça, p. 31)

Podemos observar que o narrador cria fatos e personagens na sua imaginação, mesmo que tenha sido narrado anteriormente. Há coisas visíveis apenas na cegueira da imaginação. A metáfora utilizada pelo narrador sobre coisas que são visíveis em plena cegueira, a imaginação. Certamente essa imagem constituída em sua memória não é lembrada, pois conscientemente não poderia lembrar tais fatos, não fosse a comunicação narrativa de personagens que vivenciaram tais fatos, como é o caso do tio Geguê.

Com esta observação, acrescentamos as considerações de Sarlo, “Os fatos históricos seriam inobserváveis (invisíveis) se não estivessem em algum sistema prévio que fixa seu significado não no passado, mas no presente.” (Sarlo, 2007). Para o personagem sua narrativa não se fixa no passado, mas apresenta o passado como uma constituição no presente ao qual ele vivencia. A escassez de informações sobre quem foi sua mãe, as muitas dúvidas do personagem memória o faz se constituir na imaginação do passado ao qual ele não se fixa.

Na constituição do personagem, Mia Couto apresenta, durante todo o conto, o recurso de jogar imagens que passam a constituir as características dos personagens. Esta estratégia possibilita ao leitor a entender o personagem através da “convivência”. Essas memórias introduzem o leitor em universos que, por envolvimento pleno do que é narrado, passa a se sentir participante da história. Em cada um desses fatos novas informações vão caracterizando os personagens. Vejamos algumas dessas imagens no decorrer do conto que permitem ao leitor identificar a vida dos personagens e relacionar ao contexto histórico dos mesmos, especialmente do tio Geguê:

“Um dia me trouxe uma bota de tropa. Grande, de tamanho sobrado. Olhei aquele calçado solteiro, demorei o pé. Duvidava entre ambos, esquerdo e direito. Um sapato sem par tem algum é certo?” (Cada homem é uma raça, p 32)

Em ato narrativo, a personagem que conta sua história, é responsável por incorporar aos poucos a história vivenciada por seu tio. Nesta citação, a bota sem par, é uma analogia ao tio que se apresenta solteiro, assim como ao país que está incompleto e em busca de reconstrução. No sentido literal, a citação faz referência a muitas botas sem par daqueles que foram mortos durante a guerra. Cabe ao leitor observar o enredo do conto como uma reprodução das reais condições vividas pelo país. Podemos observar que a mísera situação do ambiente em que os personagens tomam parte é um reflexo do período pós-guerra.

A segunda imagem apresentada pelo personagem-narrador é uma referencia ao abandono do país, bem como a exploração. Vejamos a seguinte passagem:

“Nessa noite, não sei se o resultado da zanga, eu tiritacteava no escuro. A febre me engasgava o corpo, fogueirando-me o peito. Sonhava de olhos abertos. Mais que abertos: acesos. Sonhava com minha mãe, era ela, eu sei, embora que nunca lhe vi. Mas era ela, não havia outra doçura assim... Ela, o que queria? Nada, só me vinha pedir bondades.” (Cada homem é uma raça, p. 33)

Em uma primeira leitura deste trecho, o leitor pode imaginar apenas uma situação vivenciada pelo personagem em uma noite em que ele testava com febre. Mas é interessante observarmos que o autor do conto esta retratando um contexto histórico de Moçambique. Desse modo, podemos tomar esta passagem para uma pequena análise simbólica. A noite pode representar a obscuridade e sofrimento vivido pelo país, a febre simboliza a situação degenerada em que o país estava passando, tudo isto era como um fogo em seu peito, algo que arde em sua memória. A mãe, que ele tanto esperava receber ajuda, representa os exploradores, mesmo que o personagem nunca o tenha sentido a bondade dos colonizadores, ele a espera com um desejo de reencontro. Neste sonho, de olhos mais que abertos, ele questiona o que a mãe estava querendo de seu filho, então ele em seguida responde: “nada, só me vinha pedir bondades” ou seja, só vinha explorar o país.

É interessante que o leitor possa observar que em cada fato as construções dos personagens não são apenas de características pessoais destes, mas uma analogia direta ao país moçambicano. Na medida em que o personagem-narrador relata a sua triste experiência, relacionamos tais situações ao contexto histórico do país. Da mesma forma, enquanto o narrador vai conhecendo e desvendando a história de seu tio, através de memórias, o leitor vai descobrindo o passado histórico de Moçambique. Esta revelação se dá na constituição simbólica das características dos personagens.

 Em relação ao contexto histórico que se constitui na memória dos personagens, muitas referências se fazem ao período pós-guerra de Moçambique, fatos que se integram no presente dos personagens do conto.  Nas considerações de Vivian,

A personagem-memória não se volta para o tempo passado. O passado integra o ser, na medida em que se constitui como matéria dinâmica da consciência que, movida pela lembrança, abre-se em distintas temporalidades, pressupondo o devir. (VIVIAN, 2014, p.2)

Em todo o conto o personagem vive as lembranças. Cada objeto, cada fato que o narrador apresenta no decorrer da narrativa, tem uma marca do passado. Os protagonistas do conto são uma referência direta à história do país. A história sobre o Moçambique é representado por inúmeros cenários. A discussão em torno da bota, considerada histórica, é um pretexto que discute o passado do país. Para o secretário, a bota não apenas deveria ter o destino da lixeira, mas ser lançada fora, afogada nos pântanos. Vejamos no seguinte trecho:

“Tiveram um bocadinho de reunião, discutiram a temática da bota. O secretário se pronunciou: esta bota é demasiado histórica, não pode sofrer destino da lixeira. Geguê concordara, não se podia deitar tamanha herança fora. .” (Cada homem é uma raça, p. 35)

Esta é uma analogia feita ao passado histórico de Moçambique. Para os personagens que carregam inúmeras lembranças de um passado triste a história deveria ser afogada, para que ninguém a encontre. Na discussão sobre a bota, optou-se por escondê-la, porém mais tarde foi encontrada pelo personagem- narrador. Neste sentido, a história ficou conhecida, as lembranças sobre um passado de lutas se configuram na imagem da bota.

Percebemos que a narrativa do conto possui duas referências: a história com descrições de cenas e personagens literais e a história do país que é narrada simbolicamente na narrativa de Mia Couto. Assim podemos dizer que a construção da identidade do personagem é uma constituição da identidade cultural de Moçambique. As condições enfrentadas pelos personagens refletem as condições que o país enfrenta no contexto histórico presente no conto. Um período de lembranças e sofrimento com as conseqüências da guerra.

Mia Couto faz essa relação entre o enredo e a Literatura remetendo o leitor às imagens do passado histórico de Moçambique. Enquanto lemos o conto em primeira pessoa, observamos que a narrativa se constitui de um enredo que reproduz a realidade, podendo ser também ficcional, por outro lado lemos o conto fazendo uma reconstrução analítica da literatura do país através de memórias.

Em relação ao enredo em primeira pessoa Sarlo afirma que,

o potencial da primeira pessoa para reconstituir a experiência e as dúvidas que o recurso à primeira pessoa gera quando se coloca no ponto onde parece mover-se com mais naturalidade: o da verdade dessa experiência. Já não é possível prescindir de seu registro, mas também não se pode deixar de problematizá-lo. (SARLO, 2007, p. 117)

Nesta perspectiva Mia Couto utiliza um enredo de quem vivenciou os reflexos da guerra, em primeira pessoa. Em cada ato o sobrinho (narrador) descobre algo novo de seu tio, há um esforço para descobrir sua identidade, para isso toma a figura do tio Geguê que é caracterizado por suas ações, e maneiras de falar, o que possibilitam ao narrador identificar que seu tio mantém um segredo. Tio Geguê, no inicio do conto, mantém uma identidade oculta ao sobrinho. No decorrer do enredo, quando o sobrinho começa a descobrir a real identidade do tio, então o leitor começa a entender o contexto histórico que o conto quer retratar.

Em Apocalipse Privado, Mia Couto narra o passado, partindo do presente. O personagem vivencia o passado para descobrir a identidade de seu tio. Vejamos as colocações de Aragão:

Outra modalidade de inovação é a que consiste em contar a vida partindo do presente e voltando, progressivamente, ao passado, numa tentativa de recomposição de uma certa ordem cronológica vertical, uma vez que o passado se torna um abismo do qual o autor vai, aos poucos, sondando as profundezas. (ARAGÃO, 1993, p. 322)

Mia Couto inicia o conto situando o passado a partir da história transmitida com narrador em primeira pessoa. A personagem expressa um sentimento culposo de sua própria história, no entanto, cada ato vivenciado pelos personagens remete a um acontecimento do passado. Tio Geguê esconde esse passado, causando um abismo entre a personagem-narrador e o passado que é descoberto aos poucos. O autor sonda o passado através da personagem-narrador.

Quando o narrador reconhece a identidade do tio e seu passado sombrio, a busca pelo reconhecimento de sua própria história passa a ser ainda mais intrigante. O passado histórico passa a ser desejável. O sobrinho identifica-se com seu tio, praticava os mesmo erros, estava na criminalidade. Agora então ele deseja apagar sua história, seu reflexo, quem lhe dera todos os cuidados, para voltar a ter um recomeço.

No desfecho do conto a personagem-narrador afirma que voltava a nascer de si, revalidava sua antiga orfandade. Desse modo passa a ser independente, a partir de então passa a ter sua própria história. A imagem obscura do passado se apaga em memórias e então passa viver um recomeço. Assim se constituiu o país, mesmo que as lembranças da guerra permaneçam na memória, uma nova história passa a ser reconstruída após aquele tiro que o torna livre do tio Geguê, que lhe criara.

A partir da análise do conto, concluímos que o autor retrata a história de Moçambique através da narrativa ficcional, levando o leitor a identificar as inúmeras relações estabelecidas entre a construção das personagens do conto com os fatores históricos de Moçambique. É possível estabelecer a relação entre História e Literatura. Quando estabelecemos esta relação, o conto analisado pode abrir outros significados aos receptores.

Referências bibliografias:

ARAGÃO. Maria Lúcia. Memórias e temporalidade. In: Estudos universitários de Língua e Literatura. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. P.311-324.

SARLO, Beatriz. Além da experiência. In: Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das letras; Belo Horizonte: UFMG,2007. P. 66-68; 114-119.

VIVIAN, Ilse M. R. Apersonagem-memória. In: A pética da memória- uma leitura fenomenológica do eu em Terra Sonâmbula e em Um rio chamado tempo,uma casa chamada terra, de Mia Couto. 2014 fls. Tese. Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. Porto Alegre, 2014. P. 133-137.

COUTO, Mia. O apocalipse privado do Tio Gueguê. In; Cada homem é uma raça. Alfragide, Portugal: Editorial Caminho, 2009. P. 31-50