Ensaio sobre o comportamento infantil em “Dois Irmãos”

 

Rodrigo Calegari dos Santos

 

E de repente aquele lugar escuro no qual os traumas de outrora foram aprisionados para serem esquecidos retorna com a força de quem não teve medo de trazê-lo à tona; quanto maior o desejo de manter-se à margem deste lugar, de fingir que a infância se constituiu somente de lembranças boas, mais difícil é assimilar a respiração disparada quando lemos “Dois Irmãos”.

Infância, lugar-comum para referenciar descobertas e desejos ingênuos, raramente se mostra na literatura infantil como palco de complexos, abusos, crimes e “endiabrações” como em A Boca do Inferno (1957), de Otto Lara Resende. O livro nos apresenta a sete contos magistralmente escritos sobre a tênue linha que separa o verossímil das fantasias irrealizáveis.

Descobrir-se representado por alguém cuja relação sequer é minimamente conhecida, pode ser surpreendente na medida em que estivermos dispostos a considerar a leitura como um exercício de reflexão acerca de nossa subjetividade, como afirma Barthes (2003, p. 230) “[...] ler é desejar a obra, é querer ser a obra [...].” [1]

Quais as bases captadas ou repassadas às crianças que determinam a singularidade de suas personalidades?

Há na infância, ainda que inconsciente, um questionamento filosófico da natureza humana – sobre conceitos de maldade e bondade – e sua diversidade de conduta. Uma dada estrutura familiar modelar por princípios religiosos e morais pode auxiliar os filhos na reprodução de determinados comportamentos, mas não é capaz de dar suporte àqueles que escapam à “normalidade”.

“[...] O pai e a mãe eram santos, uma boa árvore. Mauro tinha sido um bom fruto. Era o mais velho dos cinco irmãos. Era muito importante ser o mais velho. Mauro era exemplo para os irmãos, inclusive para Gílson, tão diferente.”

Nesse período de nossas vidas descobrimos amizades, desconhecemos leis, não compreendemos a duração do dia (se nos divertimos) e nem a obrigatoriedade de participar de atividades que não gostamos – “Outros, como Gílson, entravam atrasados e até ficavam de boca fechada ou cantavam com voz esganiçada, para sobressair entre todas e provocar risos”. Entretanto, para outras crianças é um período de assumir responsabilidades, de amadurecimento precoce visando ser exemplo e de identificar-se com as atividades moral e religiosamente corretas.

“[...] (Mauro) Tinha a doutrina na ponta da língua e, no comportamento, era o que todos reconheciam: um verdadeiro homenzinho. [...] No entanto, nem precisava mais das aulas; sabia de cor as orações, respondia, de trás para diante, a todas as perguntas do livrinho. [...] Os ajuizados, como Mauro, cantavam entoado e começavam imediatamente.”

Quando criança, por coragem ou necedade (às consequências), repetidas vezes se enfrenta a rejeição dos pais ou de amigos por manter a coerência entre atitudes e personalidade.

Ao espírito de liberdade dessas crianças denomina-se travesso, mau habituado, trapaceiro e etc. e deve sempre ser contido pela inserção de hábitos mais condizentes com modelos exemplares de infância; dentre estes hábitos estão a obrigatoriedade de acordar cedo no domingo para ir ao catecismo (além de acordar cedo durante a semana para ir à escola), de não desviar do trajeto casa-igreja, de não frequentar cinema e sorveteria, mesmo em dias de sol escaldante (“O sol, na rua, cegava [...]”). Aquele espírito deve ser combatido pelo represamento desses impulsos “contraventores” e redirecionado a uma conduta exemplar de espelhamento no ideal adulto de busca da felicidade (entenda-se, tranquilidade) baseado no sacrifício:

“Um só pecado mortal conduz ao inferno para sempre. Para sempre. A eternidade não tem começo nem fim. A pequena preleção de hoje é sobre o espírito de sacrifício. O padre falava com voz doce e tinha um sorriso permanente nos lábios, mas estava falando do espírito de sacrifício.”

O abandono às atividades que desviam a criança da boa conduta, a princípio, é apresentado como um pequeno sacrifício que, com passar do tempo, se torna hábito e, assim, deixa de ser sacrifício transformando-se em conduta comportamental.

Nesse contexto, a influência familiar é catalisadora de superestimações e desestímulos à medida que o comportamento da criança não condiz com as atitudes de um “pequeno adulto” (ou “homenzinho”) conforme anseio modelar social. É necessário respeitar a singularidade e aceitar que transformações aconteçam de maneira não-impositiva, pois o que é modelo a ser seguido dentro de uma mesma família pode gerar um comparativo de distanciamento que associado a um vago (impreciso) conceito de “Justiça divina” provavelmente causarão sérios danos à personalidade do indivíduo “diferente”.

“[...] O pai o olhava (a Gílson) com desconfiança, a mãe reclamava. De vez em quando, mandavam-no contemplar o retrato de Mauro, na sala de visitas.

- Vá ver se aproveita o exemplo.

Estava ficando cada vez mais distante de Mauro.

[...]

“Adormeceu cansado, teve pesadelo com o inferno, Mauro queria ver a Justiça brilhando, não socorria o irmão condenado.”

No conto de Otto Lara Resende, incompreendido em sua natureza ímpar e atormentado pela figura “exemplar” do irmão – tão mitificada pelos pais, parentes e pessoas da sociedade em geral –, Gílson desenvolve um complexo de sobrevivente: posteriormente à morte de um ente querido, nos julgamos inferiores a ele e não aceitamos o grande fardo de tal pessoa, merecedora de um futuro/destino mais proveitoso, ter sido arrebatada da vida tão abruptamente. [2]

Por conta deste complexo, Gílson esperará um sinal dos céus que o isente de todo mal e culpa que supostamente causara à família; o anseio por tal absolvição culminará em um desfecho trágico e imprevisto.

 

Bibliografia

Obra utilizada (anexo)

  • RESENDE, Otto Lara. “Dois Irmãos” in A Boca do Inferno. São Paulo. Companhia das Letras, 1998.


[1] BARTHES, Roland. Crítica e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 228-231.

[2] Na história da literatura mundial há os casos biográficos de Franz Kafka – cuja morte de dois irmãos conseguintes a ele fora motivo de implicações e responsabilização de culpa por parte de seu pai – e de Mário de Andrade – cuja morte de seu irmão mais velho, pianista, faz com que ele se afaste do piano como instrumento oficial de trabalho.