O presente texto é um ensaio sobre a obra musical Da loucura minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete!, na tentativa de fazer uma aproximação da obra musical em si e também do evento que lhe deu origem da teoria peirciana. Não se objetiva fazer aprofundamentos teóricos, sendo que para tal seria necessário dispor de maior tempo para estudo orientado. Exponho algumas ideias sobre música, sobre partitura e como isso se relaciona com o pensamento de Peirce, em minha modesta leitura. A construção do presente texto é resultado de discussões em sala de aula, leitura de textos e de reflexões sobre o objeto em questão.

Palavras-chave: música, signo, partitura

Ensaio sobre a obra musical Da loucura minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete! - 2011 de Cao Benassi, numa perspectiva semioticista

PRIMEIRAS PALAVRAS

Breve é a vida e longa é a arte (Hipócrates, 460-377 a.C.)

A percepção, um dos principais meios de obtenção de conhecimentos para a criação segundo Salles (2009, p.126), e é para Langer é uma atividade física da criação, do desenvolvimento de uma ilusão, de um tempo que flui em sua passagem – sendo esta audível, preenchida com movimento que é tão ilusória quanto o tempo que se está medindo. Para o criador, os eventos são um oceano de múltiplas possibilidades: uma inesgotável fonte para o devir de sua arte. Salles (2009) aponta que é na percepção de um determinado evento, que o artista se perturba, se inquieta com o que se apresenta e o (re)significa segundo sua própria estética. Faraco nos lembra que:

[…] a atividade estética isola (recorta) elementos da realidade, ou seja, do mundo da vida e da cognição, e os transpõe para um plano externo a este mundo, dando a eles um acabamento (uma unidade intuitiva e concreta) que se corporifica numa forma composicional (Faraco, 2009, pg. 104).

Sendo assim, a realidade é que impulsiona a criação artística e é o olhar minucioso do artista que transforma tudo para o seu próprio interesse (Salles, 2009, p.38).  Sendo que a poética de cada artista está diretamente ligada aos seus princípios éticos, seus valores e sua forma de representar o mundo (Salles, 2009, p.41).

De acordo com Bakhtin (1988, p.69) a criação de uma obra de arte não surge do nada, do acaso, mas esta pressupõe a realidade do conhecimento, que a liberdade do artista apenas transfigura e formaliza (Salles, 2009, p.99).  

Transmutado então o evento em arte, esta obra nada mais é, senão um diálogo do artista consigo mesmo. Para Salles (2009, p.46) ele é o primeiro receptor dessa obra de arte.

PARTITURA: COMO É OU DEVE SER

Da música muito se perdeu, principalmente no que tange a dos períodos históricos anteriores aquele chamado “idade média”. Devido a falta de grafia, toda ou quase toda produção musical destas eras, se perderam[1], embora exista um pequeno fragmento de um canto grego encontrado em uma lápide e ainda uma partitura escrita para harpa pelos babilônicos entre 1000 e 800 A.C (Frederico, 1999, p.26).

A notação neumática derivada dos neumas, foi um dos primeiros sistemas de escrita musical, com a qual os cantos gregorianos foram eternizados.  Com o nascimento da polifonia, contrária ao princípio monofônico do canto gregoriano, viu-se a necessidade de mensurar o tempo das notas musicais, uma vez que na notação anterior as notas tinham a mesma duração (Frederico, 1999, p.73). A partir deste momento, começa a ser delinear o sistema de notação musical que perdurou por séculos sem nenhuma modificação, até que com a evolução da tecnologia e a necessidade de se grafar sons inexistentes em uma época tão remota, se torna vital para o devir musical[2].

Este sistema consiste em um conjunto de cinco linhas paralelas horizontalmente que denominamos pentagrama. Na extremidade esquerda do pentagrama[3], é colocado um símbolo chamado clave, que substituiu as letras F e C do alfabeto latino e que indicavam que as notas ali colocadas eram Fá e Dó respectivamente (Frederico, 1999, p.70). Ainda por símbolos denominados notas, que nele se escreve, indicando a altura e duração das mesmas.

Com o advento da música atonal na entrada do século XX, a notação musical deu um salto imenso. Dada as novas possibilidades sonoras, os criadores passaram a buscar uma escrita cada vez mais rebuscada e ousada. O discurso musical deixou progressivamente de ter um percurso linear intencionalmente melódico, distanciando-se da preocupação harmônica como fio condutor de tensões e resoluções, passando a se basear noutro elemento musical: o timbre.    

A partir do momento em que o processo criativo se concentrou nas inúmeras  possibilidades timbrísticas, como intenção primeira, houve um automático salto da escrita musical e da notação como um todo. [...] pensando-se no timbre como alma e como delimitador e diferenciador da arquitetura musical, a escrita teve que, paralelamente, acompanhar o desenrolar das conquistas sonoras (Victorio, 2003, p.128).

Deste modo, novos procedimentos na escrita musical, irromperam com os métodos tradicionais de se fazer e pensar em música.  A notação deixa de ser o simples grafar de notas e encadeamentos harmônicos, para ser um registro sonoro/visual, que permite ao criador um grau de flexibilidade até então, jamais pensado. A nova notação musical, através de um sistema cada vez mais imagético, toma um elevado nível de elaboração intelectual, que a imagem gerada em uma partitura musical pode ser e é considerada uma obra de arte, antes mesmo de sua execução.

O resultado final (visual) de uma obra musical neste nível de atuação sígnica oferece, antes do resultado final (sonoro), subsídios para leitura e interpretação de seus códigos internos; uma pré-apresentação, ou planilha do material subsequente. Além  do resultado plástico quase sempre de boa qualidade pelo amálgama das duas dimensões em uma só estrutura (Victorio, 2003, p.131).

É cada vez mais comum, obras musicais cujo devir performático do músico se torna a (re)criação da própria obra. Inúmeros exemplos podem ser citados. Gesti do compositor italiano Luciano Berio (1925-2003), Blirium C9 do compositor brasileiro Gilberto Mendes, são exemplos onde o resultado sonoro é dependente direto da criatividade e virtuosismo do intérprete, dando um caráter peculiar a obra: cada interpretação é única.

A notação, a partir deste momento de equivalência com o ritual (transplantado para o âmbito artístico) assume um grau de importância secundário, no que se refere a precisão de escrita dos referenciais sonoros. A importância principal é deslocada para o “fazer” e ao próprio devir, como manutenção do fluxo, quando a transmissão passa a ter a íntima participação do executante, enquanto coparticipante do processo ritualístico musical (Victorio, 2003, p.129).

Nestes casos, a complexidade da escrita pensada não como uma realização individual, imutável, centrada no compositor, mas uma fonte de informações que transmitem no universo do simbólico, nos coloca segundo Victorio (2003), muito próximos a instauração de uma obra de arte que nos permitirá a sua constante (re)criação, numa instabilidade ritual  - em sua formalidade e concepção – tal qual a mutável realidade humana (Victorio, 2003, p.132). 

ICONICIDADE MUSICAL E SIMBOLISMO NA PARTITURA MUSICAL

[...] as formas de criação na arte e as descobertas na ciência têm a ver com ícones (Santaella, 1983, p.65).

ICONICIDADE MUSICAL

A música é uma linguagem e como toda linguagem, ela está inserida no mundo e nós na música (Santaella, 1983, p.13). Assim sendo, é capaz de estabelecer comunicação entre os sujeitos que nela se inserem mesmo que de forma indireta. Langer (1989) explica que se a música tem qualquer significação, esta é semântica, e não sintomática. Deduz-se então que não é função da música transmitir sentimentos. Pelo menos não diretamente, outrossim pode sugeri-los. Santaella (2005, p.24) salienta que o primeiro efeito que um signo está apto a provocar em um intérprete é uma simples qualidade de sentimento. Sendo que a música é um dos ícones citados pela autora como capaz de produzir este tipo de interpretante.

 Tomamos como exemplo alguns efeitos ou técnicas instrumentais da flauta, onde o som emitido lembra o canto dos pássaros. Este recurso utilizado em uma música leva o ouvinte que tenha experienciado a audição do canto de uma ave qualquer, a rapidamente relacionar o som do instrumento com o do gorjeio ornitóptero. Santaella (2005) exemplifica muito bem:

A mera cor azul não é o céu, não é a roupa do bebê, mas lembra, sugere isso. Esse poder de sugestão que a mera qualidade apresenta lhe dá capacidade para funcionar como signo, pois, quando o azul lembra o céu, essa qualidade da cor passa a funcionar como quase-signo do céu. O mesmo tipo de situação também se cria com quaisquer outras qualidades, como o cheiro, o som, os volumes, as texturas etc (Santaella, 2005, p.12).

Se toda e qualquer qualidade sendo uma propriedade formal, faz do som, dos volumes, das texturas signos, logo: o faz também a música. Não seria ela um amálgama destes? Quando se identifica em um contexto musical o “canto do pássaro” não é a ave ali a cantar, senão um instrumento a emitir frequências sonoras que por similaridade nos permite reportar a ela.

Na relação com o objeto que o quali-signo pode porventura sugerir, evocar, o quali-signo é icônico, quer dizer, é icônico  porque o quali-signo só pode sugerir seu objeto por similaridade. Ícones são quali-signos que se reportam a seus objetos por similaridade [...] o ícone só pode sugerir ou evocar algo porque a qualidade que ele exibe se semelha a uma outra qualidade (Santaella, 2005, p.17).

O gorjeio da ave não é música tão pouco a música é o canto de um bípede, no entanto, ambos se sugerem.  A semelhança que se pode estabelecer neste caso é através da metáfora, um dos três níveis em que Pierce dividiu os signos icônicos. Segundo Santaella (2005, p.18), a metáfora representa seu objeto por similaridade no significado do representante (música) e do representado (canto do pássaro).

SIMBOLISMO NA PARTITURA MUSICAL

Voltando nossa atenção novamente para a partitura, podemos perceber que ela constitui um sistema de normas e regras que devem ser rigorosamente seguidas por seu intérprete. Na maioria das vezes, é geral e aplicável a todas as partituras, salvo em contextos específicos. Langer concebe a música como uma forma sonora que se movimenta no tempo, que cria um atmosfera virtual cuja determinação se completa pelo movimento de formas audíveis (Langer, 1980, p. 132). Estas formas audíveis podem ser representadas por um sistema de códigos que denominamos partitura.

A partitura musical, no contemporâneo sofreu muitas mudanças, a ela se incorporaram novos preceitos, da mesma formas outros princípios foram abandonados. Mas em sua essência a partitura continua a ter mesma funcionalidade: ser uma espécie de “mapa visual” onde pode-se direcionar o fazer musical do intérprete.  Para Santaella:

Uma lei é uma abstração, mas uma abstração que é operativa ela opera tão logo encontre um caso singular sobre o qual agir. A ação da lei é fazer com que o singular se conforme, se molde à sua generalidade. É fazer com que, surgindo uma determinada situação, as coisas ocorram de acordo com aquilo que a lei prescreve (Santaella, 2005, p.13).

A primeira norma que rege internamente uma partitura é sem dúvida a obrigatoriedade dela ser composta por pentagramas, tetragramas, trigramas, e assim por diante, todos contendo linhas, dispostos paralelamente onde os sons serão escritos, isto não é singular, mas geral. Santaella (2005, p.22) lembra que um ícone só pode funcionar como um símbolo, se for tomado por uma convenção social. Ora, é o que aconteceu com a partitura.

Dentre suas muitas cláusulas, a de que uma fórmula de compasso – representação numérica colocada na extremidade esquerda da partitura em forma de fração, logo após a clave[4] –, determina o valor de “tempo” de cada nota ali escrita, é por certo uma convenção social. A música vocal monódica, conhecida popularmente por canto gregoriano essencialmente vocal, era escrita em quatro linhas. Com as mudanças que trouxeram os instrumentos para o contexto musical, houve um alargamento deste sistema, dando origem ao que conhecemos hoje.  A clave que antes se movia entre a terceira e quarta linha, hoje é fixa. Ela é símbolo pois refere-se a altura de um determinado som quanto sua qualidade: grave, médio ou agudo, determinando para que tipo de instrumento se escreve.

Santaella (2005, p.23) explica que todo símbolo inclui dentro de si, quali-signos icônicos e sin-signos indicias. Sendo assim, podemos tomar a paralelismo das linhas de um pentagrama como um quali-signo e as notas como índice de determinada frequência sonora. Ao conjunto dos pentagramas, com suas claves, fórmulas e barras de compassos, notas e pausas, podemos tomar por um símbolo – não por desígnio da  natureza, nem por entidade divina, mas por convecção social –, pois as leis que lhe dão fundamento estão internalizadas nas mentes de quem os interpreta, isto é, só lê uma partitura quem conhece seus códigos. Sem este princípio, segundo Santaella (2005, p.25) um símbolo não poderia funcionar.

Dada a complexidade da partitura de uma obra musical contemporânea, muitos leitores a tomam por difícil ou para ser mais exato: ilegível na simples e pura contemplação. Uma partitura diferente é índice de que algo mudou, de algo não vai bem. Passamos então para o diferente, o fora do padrão.

O QUE HÁ DE DIFERENTE?

Para entendermos o que aqui se explicita tomaremos como exemplo três partituras de obras musicais distintas. Sendo elas, Sonata em Fá maior para flauta doce e violão do compositor Antônio Lucio Vivaldi[5], Pequena Suíte. IV- Deserto do compositor Felipe Kirst Adami[6] e Da loucura minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete! do compositor Cao Benassi[7]. Apenas fragmentos das partituras serão comparados, para explicitar o elemento “diferente” entre elas.

 

Figura nº 01[8]. Fragmento da partitura Sonata em Fá maior para flauta doce e violão de A. Vivaldi.

Como o título da obra deixa bem claro que se trata de uma sonata, que está em Fá maior e que sua instrumentação é flauta doce e violão, qualquer leitor que conheça as particularidades da escrita da flauta e do violão saberá que a primeira linha é destinada a flauta, ora, nesta época não se usava escrever notas simultâneas para este instrumento. O segundo pentagrama refere-se ao violão. Por ser um instrumento “harmônico”, sua escrita está repleta de acordes. É uma música onde a unidade de tempo é a colcheia (8); que há um total de doze colcheias em cada compasso (Fração 12 sobre 8); que há uma linearidade no discurso melódico e harmônico, logo, trata-se de uma música tonal. Passamos para o segundo exemplo, figura número 02.

 

Figura nº 02. Pequena Suíte. IV – Deserto de Felipe Adami.

Veremos o seguinte: trata-se do quarto movimento de uma Suíte “moderna”; seu andamento é um andante e há uma indicação de noventa pulsações por minuto; foi escrito originalmente para flauta doce contralto solo; há a utilização da voz, recurso que indica que se trata de uma música contemporânea; sua unidade de tempo é a semínima (4) e há um total de cinco delas em cada compasso (Fração 5 sobre 4).

As duas obras apresentam características bem parecidas, apesar do longo espaço de tempo que separa a concepção de cada obra. Se assemelham quanto a regularidade nos compassos e no discurso melódico linear. Diferem quanto ao caráter do discurso: o primeiro é tonal e o segundo atonal. Ainda por que segunda utiliza a voz do flautista doce junto com o som do instrumento, recurso não utilizado na música barroca.

No último exemplo – a partitura de Da loucura minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete! (figuras 03 e 04) –, a  primeira característica que nos chama a atenção é a irregularidade do pentagrama que ora é cortado, descolado, fragmentado, o que foge totalmente do padrão se comparada as anteriores. As ossias[9] superiores fundem-se ao pentagrama com exceção de apenas uma que é flutuante. Ainda sobre o pentagrama, outro elemento que é totalmente diferente do convencional, é relativo ao último motivo apresentado na peça. Sua forma é estanha ao padrão e ocupa o espaço irregularmente, dando a mesma um caráter abstrato.

Em pontos específicos textos são inseridos quebrando a sequência sonora do instrumento, buscado a sonoridade da voz humana falada, elemento não muito usual. Ainda dois trinados ganham formatos diferentes do tradicional. Além de apresentarem um adensamento rítmico, o desenho formado é único. Não se utiliza da bandeira padrão do acelerando, mas de linhas que se abrem. Não se pretendia revolucionar a escrita musical ou propor um novo método para a mesma, somente significar algo. Concordo com Santaella (1983, p.40) que não se pergunta o que existe realmente no fenômeno e sim, aquilo que aparece a cada um de nós em todos os momentos de nossa vida.

O fato de se fazer uma partitura assim “diferente” ou como disse o meu outro “fora do padrão” teve a ver como a significação de um momento específico de minha vida, sendo portanto, este evento indicativo que algo não ia bem naquele momento. Esta partitura no mínimo “estranha” se revela como índice disso. Para Santaella (1983, p.66) qualquer coisa que se apresente diante de nós como materialidade singular, material, em um aqui agora, é um sin-signo. Partindo do pensamento da autora, afirmamos que qualquer existente concreto e real é concebido como sendo parte de um todo do qual faz parte. Assim sendo:

[...] uma coisa singular funciona como signo porque indica o universo do qual faz parte. Daí que todo existente seja um índice, pois, como existente, apresenta uma conexão de fato como o todo do conjunto de que é parte. Tudo que existe, portanto, é uma índice ou pode funcionar como índice (Santaella, 1983, p.66).

No caso da partitura  Da loucura minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete! pode ser considerada como um índice, pois, sua desestruturação imagética é um indicativo de que algo, no momento em ela foi concebida, não estava bem. Isto a coloca em uma conexão existencial com o evento emocional vivido por mim.

 

Figura nº 03. Da loucura a minha genialidade, da sua Sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira reflete! 2011 de Cao Benassi, pg. 01.

 

Figura nº 04. Da loucura a minha genialidade, da sua Sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira reflete! 2011 de Cao Benassi, pg. 02.

CUTUCANDO A FERIDA: “DIFERENTE!?” “FORA DO PADRÃO!?”

Tudo começou em meados do primeiro semestre de 2011, quando então realizava estágio de docência em uma escola estadual de ensino fundamental e médio, localizada na periferia de Cuiabá. Um pequeno problema aconteceu me forçando a procurar a ajuda da supervisora. Exposto o problema dois enunciados de sua autoria – “fora do padrão” e “diferente” para e sobre mim, me fizeram ser tomado por uma grande angústia, que cadenciou dolorosamente minha mente, levando-me a um estado de loucura transitório. Para Santaella (1983):

Consciência em primeiridade é qualidade de sentimento e, por isso mesmo, é primeira, ou seja, a primeira apreensão das coisas, que para nós aparecem, já em tradução, finíssima película de mediação entre nós e os fenômenos (Santaella, 1983, p.46).  

Este efêmero desvairo deu origem ao nome da obra – Da loucura minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete! –, que é uma série de miniaturas, sendo a primeira para flauta doce contralto solo e a segunda que está em fase de concepção para flautas e voz do flautista, intitulada II - Nós animais. Para Baitello Junior:

[...] um distúrbio nos códigos primários (por exemplo, no metabolismo ou na dinâmica de funcionamento dos neurotransmissores, determinadas psicopatologias, distúrbios metabólicos e hormonais) pode afetar diretamente a capacidade criativa e imaginativa de um indivíduo: [...] (Baitello Junior, 1999, p.42).

Dado o contexto em que estava inserido e que eu estava em fase de conclusão do texto de minha pesquisa A flauta doce hoje: o instrumento e suas técnicas expandidas no repertório de música contemporânea, cuja defesa exigia a apresentação de uma obra musical que contemplasse o uso das técnicas expandidas da flauta doce, por que não transformar o episódio nessa música? Petrilli e Ponzio afirmam que a comunicação-produção comunica o mundo como ele é hoje, logo nada mais natural do que significar aquele evento no texto musical de I – Enquanto delira: reflete!. Ainda com Petrilli e Ponzio pontuamos que comunicação e realidade, comunicação e ser, coincidem (Petrilli e Ponzio, 2011, p.57).

ÚLTIMAS PALAVRAS

Para Salles (2009, p.126), o percurso criador deixa transparecer o conhecimento guiando o fazer, ações impregnadas de reflexões e de intenções de significado. Toda a obra, desde a imagem da partitura a performance que dá materialidade a música está repleta de conteúdos imaginários que se estruturaram a partir de imagens reais. Belting ressalta que a relação entre lugares imaginários e reais se reestruturam. Quanto mais se transformam os locais em dimensões imaginarias, mais se apropriam das imagens que produzimos em nossos corpos (Belting, 2007, p.79). 

A transmutação das emoções geradas no evento em imagem foi na verdade o primeiro pressuposto para a superação do estado de tensão em primeira realidade. Já a concepção da obra, constituiu a segunda realidade, sem a qual eu não poderia “responder” aos estímulos recebidos. Baitello Junior afirma que nos desvios psicopatológicos de modo geral eles transferem para o estado de vigília a ousadia e a coragem que apenas temos no sonho – de negar, de rir na cara, de desafiar, de desobedecer regras estabelecidas, de crer e de descer sempre a contrapelo (Baitello Junior, 1999, p. 23). A arte é portanto um meio de fuga, de escape deste realidade em primeiro plano. Sua criação para Baitello Junior (1999, p.20), tem normas próprias que transpõe princípios mais ortodoxos e rigorosos da própria vida, que constitui sua segunda realidade. Esta portanto, um universo que outorga ao indivíduo a capacidade de transpor seus limites, até de sobreviver a própria morte. 

A criação humana [...] desafia e vence não só a morte, mas todas as dificuldades e limites impostos pela breve vida, desafia e vence as doenças, o envelhecimento, o tempo e a natureza hostil.  Seu mais eficaz e abrangente instrumento são os símbolos (Baitello Junior, 1999, p. 20).

Estar com a consciência alterada neste caso resultou em uma obra de arte como resposta ao tal evento. A materialização da obra na performance, de fato é a resolução das tensões geradas em primeira realidade. Executa-la me fez transcender as limitações intrínsecas ao corpo, resultando num estado de gozo pleno em uma realidade virtual.

REFERÊNCIAS

ADAMI, Felipe Kirst. Pequena Suíte. IV – Deserto. Acervo Particular.

BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999.

BELTING, Hans. Antropología de la imagen. Buenos Aires: Katz Editores, 2007.

BENASSI, Cao. Da loucura a minha genialidade, da sua sabedoria: apenas a ignorância. I – Enquanto delira: reflete! Não publicado. Acervo particular.

FARACO, Carlos Alberto.  O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.

FREDERICO, E. Música breve história. São Paulo: Irmãos Vitalle, 1999.

VICTORIO, R. P. Timbre e espaço-tempo musical. In: Territórios e Fronteiras – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, vol. 4, n.01, jan-jun. Cuiabá, 2003.

LANGER, S. Filosofia em nova chave. São Paulo: Perspectiva. 1989.

LANGER, S. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva. 1980.

PETRILLI, Susan. PONZIO, Augusto. Thomas Sebeok e os signos da vida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.

SALLES, Cecília Almeida. O gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo:

FAPESP: Annablume, 2009

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

VIVALDI, Antônio. Sonata em Fá maior para flauta doce e violão. RV 52. Acervo Particular.



[1] Para maiores detalhes ver Martins (1926), Carpeaux (1967) entre outros. 

[2] Ver Griffithis (1998).

[3] Ver Med (1996).

[4] Na música contemporânea nem sempre se usa fórmula de compasso. Em partituras de música antiga, entre a clave e a fórmula de compasso, coloca-se a armadura de clave.

[5] Compositor italiano, nascido em Veneza no ano de 1678, falecido em 1741 em Viena.

[6] Compositor brasileiro e professor das disciplinas de instrumentação e orquestração da URGS.

[7] Nome em arte do autor o presente texto.

[8] Não há necessidade de colocar aqui a partitura na íntegra, por que ela se apresenta da mesma forma do início ao fim.

[9] Partes de pentagramas ou outros sistemas de onde se notam sons, colocados acima ou abaixo do  sistema normal.