CARTA ABERTA AOS GOVERNANTES

Esse “ENEM” é na verdade um exame injusto, um embuste!

 

É verdade, o cidadão comum não pode ser candidato a uma cadeira universitária e nem ser vencedor. A cadeira universitária não espera gente como eu. Sou branca, não pertenço a nenhuma etnia quotista, não tenho defeito físico ou intelectual, não estudei em escola pública o tempo todo e não sou rica. Portanto, não me enquadro em nenhum seguimento para conseguir entrar para uma niversidade pública. Sou normal e sem direitos por ser branca e sem defeitos, ou dinheiro. É a política miserável e corrompida que cobre meu país de vergonha. Tudo não passa de um embuste para enganar os crédulos. A vaga está reservada para quem tem carro, que pode fazer o percurso em minutos, ou para negros, índios, e para quem cursou escolas públicas. Quem está sendo beneficiado com tantas vantagens não sabe que sou eu, cidadã sem defeitos e direitos, é quem paga a conta. Cobram de mim, cidadã normal, o preço do passado. Eu não cometi o crime de traficar os negros e transformar seus descendentes em “coitadinhos” da História. Eu não mereço pagar pelo crime do governo.

Me inscrevi no ENEM. Não coloquei nenhuma exigência especial. Sou comum e normal. Sou a classe branca sem direitos especiais.

Quando o cartão chegou, surpresa! Fui colocada para fazer o exame na comunidade do Escondidinho, entre o Rio Comprido, e Santa Teresa, lá no alto… Moro na Ilha do Governador. Calculei o trajeto: dois ônibus, com previsão de duas horas para chegar lá em cima. E ainda dez a quinze minutos a pé, comunidade acima, até o local da prova. Reclamei com o INEP e a resposta foi:” Informamos que foi verificado no sistema do Enem 2012 e o município está de acordo com o solicitado no ato da inscrição. O prazo para solicitação de alteração do local das provas foi durante o período de inscrições e não há mais possibilidade de fazer tal alteração no sistema do Enem”.

Como poderia saber onde me locariam para reclamar? Se recebi o cartão pelos correiors com o endereço, tresdias antes da prova? Me inscrevi na Ilha, por que me locaram em outro bairro, distante e em comunidade rival? Querem dizer que colocaria minha vida em risco propositadamente? Quem determina o trajeto certamente não vive no Rio de Janeiro, caso contrário, saberia desses detalhes insignificantes para não merecer um plano B.

Soube que duas cegas que não foram atendidas e que registraram sua indignação na delegacia, terão direito ao plano B. Eu reclamei da distância, da falta de dinheiro e do risco de vida em percorrer o trajeto, e tive a resposta transcrita acima. Por se tratar de um percurso de alto risco em uma comunidade rival a minha, não conta, não tenho direito ao plano B. E sabe por que? Porque sou normal e não pertenço a nenhum grupo privilegiado. Não tem como ser candidato o cidadão comum.

A minha avó me avisou: não se meta em política, meu filha, não adianta reclamar, pois ninguém te ouvirá. Mas eu sou teimosa, e insisto nas urnas eleitoreiras e na esperança de mudar as coisas. Em vão. São sempre os mesmos personagens, e centenas de incautos, entre eles - eu, convicta de que um milagre pudesse acontecer, orei para algo mudasse. Em vão. Aqueles vereadores sempre voltarão, porque são, na prática, políticos profissionais.

Quando li a resposta ao meu desesperado pedido de mudança do local da prova, sonhando entrar, mesmo tardiamente, para uma Universidade Federal, chorei cabisbaixa, triste e com aquele sentimento de impotência que mina qualquer esforço em gritar… Quem poderia me ajudar? Vereador, presidente, síndico, juiz, porteiro de prédio, chefe da guarda, quem? Não consegui nenhuma resposta e me restou o silêncio e o conformismo.

Perceptível, como uma cobra faminta, me debrucei sobre a da internet para escrever, enquanto perguntava se era possível ainda acreditar na frase de Dilma quando disse que o PIB de nossas crianças é o PIB que interessa. Afrontada, orei de novo para espargir o mau agouro, - semeei demoradamente os cardos. Mas ter que engolir o descaso, é para ficar tiririca da vida. E envergonhada.

Essa é a questão fundamental para que o rumo da Filosofia e sua eterna, e quase inalcançável busca pela ética, mude. Quem são os oprimidos? A quem se estende a nossa alteridade? Afinal, o que é alteridade e o que é opressão?

Alteridade é quando conseguimos compreender o “Outro”, nos colocarmos em seu lugar, nos compreendermos como ele se compreende, é ouvi-lo, é sentir seu desejo pela vida e pela liberdade. Em nossa dominação pela Terra e por tudo que nela existe, nós não exercitamos a alteridade, mas sim, a dominação, de forma bruta tanto para com aqueles que julgamos inferiores, como para nós mesmo. Ação e reação, o que enfrentamos hoje nos parecem na forma da terceira lei de Newton: “Para cada ação há sempre uma reação, oposta e de mesma intensidade”. Talvez com poucas exceções, a grande maioria dos autores que fala em alteridade, aponta como “Outro” apenas o ser social, aquele que se relaciona, porém, esse mesmo “Outro” que se comunica e troca experiências é, na ponta dessa corrente, um ser oprimido devido à opressão que ele, e quem o defende, causa ao esquecer que a água igualmente grita, que os animais igualmente gritam por serem eles, todos oprimidos.

Por isso a necessidade de nos debruçarmos sobre a Filosofia e encararmos com coragem os desafios que ela nos impõe, para que alcancemos uma ética que mostre que o “Outro” não é necessariamente o “Outro Humano”, mas um “Outro Ser” pelo qual, igualmente, temos a obrigação moral de oferecer respeito.

Merleau Ponty nos diz: “Na experiência do diálogo, constitui-se entre mim e o outro um terreno comum, meu pensamento e o dele formam um só tecido, minha fala e as dele são invocadas pela interlocução, inserem-se numa operação comum da qual, nenhum de nós é criador. Há um entre os dois, eu e o outro somos colaboradores, numa reciprocidade perfeita coexistindo no mesmo mundo”. Mas ignoramos porque ouvindo-os, seremos obrigados a novas atitudes, a novas reflexões, a novos conceitos. Ouvindo-os, nos aproximaremos de novas questões morais e éticas, e finalmente, da inclusão desse critério de alteridade aos demais seres que tanto marginalizamos e nessa nova práxis libertadora, seremos apresentados a verdadeira liberdade dos oprimidos. Não nos colocamos no lugar de seres que dominamos, isso é opressão. Não ouvimos seus gemidos, nem sentimos suas dores, apenas os oprimimos e não podemos deste modo, nos considerarmos seres éticos na busca pela libertação e pela alteridade, o que nos coloca em contradição com aquilo que buscamos, ou seja, a própria Ética. A consequência dessa exclusão é a opressão e as mudanças a qual temos assistido todos os dias, na reação de um Planeta que igualmente no todo, é considerado um não-ser, sendo violentado diariamente pelo desejo humano.

Essa “ética” atual é na verdade uma ética injusta e irresponsável, que aniquila não apenas os excluídos, mas os que os excluem e ameaça dia a dia, o futuro de todos os seres que aqui habitam. Vivo numa democracia que me obriga a votar e servir as Forças Armadas (só os homens são obrigados, mais uma discriminação), e é nesta sociedade, que se diz democrática que me vejo sem voz, e sem esperança.

Quando Dilma entrou para ser a primeira mulher no governo desse país, pensei: “as coisas vão mudar”…

Vejo que não. Infelizmente.

Continuo com meus sonhos. Não será um almofadinha qualquer que irá traçar o percurso de minha vida. Não farei a prova que realizaria um antigo sonho acadêmico, mas posso decidir em não colocar minha vida em risco subindo o Morro do Escondidinho.