Escrito com Patrícia Mertzig

publicado nos Anais do V SINCAM - UFGO.

A educação musical contemporânea pode e precisa relacionar-se com outras áreas quando é o caso de tratar de assuntos específicos como: aprendizagem, cognição, ou percepção, por exemplo. A Filosofia e a Ciência Cognitiva têm áreas contemporâneas, esta última há cerca de cinqüenta anos apenas, dedicando-se especificamente à descrição daquilo que se denomina por aprendizagem, por cognição e por percepção. Tais conceitos são sempre muito utilizados em explicações e descrições de atividades musicais. Assim, o presente artigo pretende apresentar princípios de fenomenologia por meio das abordagens enaccionista e ecológica para o estudo da percepção, como uma importante contribuição da Filosofia e da Ciência Cognitiva à algumas reflexões relevantes em educação musical. Para isso inicia-se abordando a raiz fenomenológica encontrada em Husserl e suas conseqüências na formação da fenomenologia de Merleau-Ponty cujos fundamentos relacionados à as propostas enaccionistas de Varela, Maturana e Nöe e ecológicas de Gibson e Pick para explicar a percepção e cognição musical. Segue-se tratando da relação entre o conceito de aprendizagem perceptiva e possibilidades de ações em educação musical. Por diversos aspectos tal conceito de aprendizagem perceptiva mostra-se bastante interessante para a descrição de situações musicais e mais especificamente de situações auditivas em educação musical. Por fim o texto encaminha alguns princípios fundamentais de atividades em educação musical orientados por teorias explicativas com fundamento fenomenológico na área de percepção e aprendizagem. Não se trata de indicar uma ou outra atividade para realizar com crianças ou qualquer outra faixa etária de educando, antes, o presente texto espera contribuir com a discussão filosófico-conceitual que fundamenta as tomadas de decisão frente às ações didático-pedagógicas. No entanto, evidencia-se situações cotidianas da educação musical, como a abordagem metodológica de Murray Schafer e a audição de paisagens sonoras como princípio para a reflexão e estabelecimento das descrições utilizando os conceitos aqui abordados.
Ao iniciar um trabalho em educação musical, independente do espaço que se vai ocupar, o profissional faz seu planejamento levando em conta diversos elementos como o seu objetivo geral (aula de instrumento, formação de um coral, aula de musicalização infantil, apreciação musical, etc) além de número de pessoas, espaço físico, material disponível, etc. mas faz, principalmente, uma escolha metodológica para desenvolver suas aulas. Essa escolha metodológica é de suma importância em seu trabalho, pois é ela que vai definir a postura do educador, nortear suas aulas e desenvolver no educando uma experiência musical. Vendo sob esse prisma, vemos quão importante é essa escolha, pois dela resultará todo o trabalho musical. Assim o presente texto pretende, em um primeiro momento, descrever a corrente filosófica chamada fenomenologia. Na seqüência abordaremos o enaccnionismo e a ecologia para então sugerir ações em educação musical que tomem por base esses fundamentos metodológicos. A palavra fenomenologia é a junção de duas palavras: fenômeno (do latim phaenomenon) e logia formando a palavra latina phaenomenologia que significa “tudo o que é percebido pelos sentidos ou pela consciência” 1. Como termo filosófico fenomenologia aparece pela primeira vez na obra do francês J. H. Lambert (1728-1777) e filósofos como Kant (1784-1804), Hegel (1770-1831), entre outros, também contribuiram para o desenvolvimento do conceito. A fenomenologia hoje, enquanto corrente filosófica contemporânea, segue a concepção do termo de acordo com o filósofo Edmund Husserl (1859-1938) aparecendo, na seqüência, importantes obras de autores como M. Heidegger (1889-1976), M. Merleau-Ponty (1908-1961), J. P.Sartre (1905-1980), entre outros. De acordo com Arnaldo Niskier (2001) o termo fenomenologia compreende, em um sentido mais amplo, descrever os fenômenos “tais quais se apresentam no tempo e no espaço. Na acepção filosófica, é a ciência “eidética” (do grego eidétikis, concernente ao conhecimento) ou ciência das essências, diferindo da psicologia, que é a ciência dos fatos baseados nas coisas sensíveis e cujo objeto são os fatos particulares e contingentes.” (p. 207). Para Husserl a fenomenologia “é um novo método que procura apreender, através dos acontecimentos e dos fatos empíricos, as essências, isto é, as significações ideais percebidas 1 CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996 p. 353. diretamente pela intuição”. (NISKIER, 2001 p. 207). Husserl foi autor de diversas obras entre elas Investigações Lógicas (1901 e 1902), Idéias Diretrizes para uma Fenomenologia (1913) e Meditações Cartesianas (1929) e a influência de seu método fenomenológico aparecem em diversas obras das áreas das ciências humanas durante todo o século XX. O método fenomenológico desenvolvido por Husserl se deu a partir de sua crítica contra o psicologismo, pois a psicologia enquanto forma de conhecimento nos fins do século XIX “gozava de grande prestígio e tendia a converter-se na chave de explicação da teoria do conhecimento e da lógica, retirando essas disciplinas do campo da filosofia”.2 Sua crítica consiste em sustentar que as leis lógicas não podem ser fundamentadas numa ciência empírica, como é o caso da psicologia, pois a esta faltam regras lógicas. De acordo com Husserl o problema fundamental da teoria do conhecimento são as certezas e evidências alcançadas pelo sujeito em relação à realidade exterior e que a psicologia não foi capaz de mostrar isso objetivamente. Em Meditações Cartesianas (1931) o autor aponta os problemas na forma de conhecimento gerados pelo cartesianismo e sugere uma nova abordagem. Isso pode ser percebido logo no segundo tópico da introdução da citada obra “Necessidade de um recomeço radical em filosofia” (HUSSERL, 2001 p. 21). Nessa obra Husserl faz uma leitura da obra Meditações Metafísicas escrito em1641 pelo filósofo René Descartes (1596-1650) e mostra que a metafísica cartesiana não pode servir de base para qualquer ciência e peca principalmente no que tange a experiência. Sem conhecer outro objetivo senão o de um conhecimento absoluto, ele [Descartes] se proíbe de admitir como existente o que não está totalmente ao abrigo de qualquer possibilidade de ser posto em dúvida. Submete, portanto, a uma crítica metódica, quanto às possibilidades da dúvida que possa apresentar, tudo aquilo que na vida da experiência e do pensamento apresenta-se como certo, e buscar alcançar – se possível – pela exclusão de tudo o que poderia apresentar uma possibilidade de dúvida, um conjunto de dados absolutamente evidentes (HUSSERL,2001 p. 21) Sobre o termo transcendental, apresentado logo no início do texto, é preciso entender o ato da percepção. O ato da percepção 2 CHAUÍ, Marilena. HUSSERL. São Paulo: Nova Cultural, 1988 p. VII (Os Pensadores). (...) não deriva do objeto externo, mas depende das potencialidades do sujeito humano. A percepção serve para conhecer a realidade externa, ou seja, é relacionada intencionalmente ao objeto enquanto percebido. (...) Essa estrutura percepção/percebido é inerente à estrutura transcendental do ser humano, pois todas as vivências estão ligadas/relacionadas à estrutura do ser humano. A percepção que se define por estrutura do ser humano já possui estas estruturas e, portanto, elas transcendem o objeto físico (BELLO,2004 p. 49) A novidade do conceito de fenomenologia na obra de Husserl é seu entendimento sobre o que o autor considera como estrutura transcendental. Para ele são as vivências que nós temos consciência. É preciso então definir quais são estas vivências. Quando nós começamos a fazer uma análise das vivências, através da análise do corpo, chegamos à percepção. Trata-se de uma vivência de que temos consciência. Outras vivências são: a reflexão, a lembrança, a memória, a imaginação, a fantasia. Estes são exemplos de atos e vivências presentes nos sujeitos humanos, portanto, são estruturas próprias de todos os homens(BELLO, 2004 p. 50). Sabe-se que os seres humanos não passam, exatamente, pelas mesmas experiências, porém existem aquelas que são comuns a todos como, por exemplo, a sensação de frio ou calor, ou o choro, o grito, ou o riso. Nestas experiências há um aspecto de universalidade, ou seja, atos que todos os seres humanos podem experimentar, pois contém estruturas. Quando as experiências são externas como a do exemplo acima, elas dependem da percepção ou podem ser ao contrário, de caráter interior. Husserl define estas estruturas como sujeito transcendental e o que interessa a Husserl, de acordo com Bello, “é o estudo da relação entre percepção e percebido. O percebido se refere sempre a algo percebido: o objeto percebido” (2004 p. 51). Com a citação acima encaminhamo-nos ao exame de outro conceito importante a ser entendido na obra de Husserl, o de intencionalidade. Para o filósofo a intencionalidade pode ser divida em dois aspectos: um objeto que existe e um objeto que é percebido. Ainda de acordo com Bello “Esse é um ponto muito importante por que significa que o nosso conhecimento pode captar as coisas, mas as coisas – enquanto objetos físicos – sempre permanecem fora de nós. Todavia, numa certa medida as coisas estão dentro de nós: a folha enquanto percebida está dentro de nós” 3 (2004 p. 89). Para descrever o que denomina por “princípio dos princípios” ou intuição, Husserl utiliza três conceitos. Fala de três tipos de intuições envolvidas no desenvolvimento do conhecimento: trancedental, eidética e imanente. Basicamente pode se entender que aquilo que está fora do sujeito é transcendente e o imanente ao sujeito trata daquilo que está dentro. Analisar a imanência do sujeito é um ponto principal na obra de Husserl, pois analisar o que é imanente ao sujeito seria analisar suas vivências. Quando saímos do plano da percepção, passamos para o plano da reflexão que seria tratar da vivência, porém em outro nível. Assim se usarmos a percepção auditiva como um exemplo, poderíamos dizer que, ao ouvir o canto de um pássaro, por exemplo, nós temos a vivência de ouvi-lo, mas o canto do pássaro é algo externo a nós, porém o som ouvido por nós está dentro de nós e, de acordo com Husserl, o ouvir está na dimensão da interioridade. Nós normalmente estamos voltados para fora e é difícil nos voltarmos para identificar o que está acontecendo dentro de nós. Nós vemos, se é um caso de ver; nós tocamos, se é um caso de tocar; nós ouvimos, se é um caso de ouvir, ou seja, nós percebemos objetos que são por nós percebidos e que num certo sentido entram em nós. Mas de que forma? Pois não entram como objetos físicos, pois nós o apreendemos dentro, nós captamos dentro. O perceber está dirigido para as coisas, por exemplo, os objetos do mundo físico, tende para: esta é a intencionalidade, o olhar que intenciona, capta e percebe o objeto.(BELLO, 2004 p. 90/91). A partir de tal citação pode-se notar que a fenomenologia husserliana teve um encaminhamento bastante metafísico. Dois de seus grandes alunos, tanto M. Heidegger como M. Merleau-Ponty acabaram por encaminhar a fenomenologia para o intimo relacionamento com a experiência do fenômeno. Por um lado pode-se pensar que o caminho proposto pelo dois continuadores de Husserl vai em mão difernete. Enquanto Husserl propõe uma parentização (epoché) para sair da experiência, para tomá-la de fora, Merleau-Ponty propõe que se estude a experiência do centro dela, ou considerando-se sempre a própria experiência, ou a história das condutas de corpos em um meio-ambiente específico. A partir de um movimento de naturalização da fenomenologia husserliana é que 3 Nesse trecho a autora cita um exemplo do próprio Husserl sobre intencionalidade ode este fala da percepção de uma folha de papel. M. Merleau-Ponty inicia sua descrição de fenomenologia como o estudo da experiência de dentro da experiência. De acordo com Ozmon e Craver “Enquanto Husserl buscava um agrupamento completo por meio da redução fenomenológica, Maurice Merleau-Ponty sustentava que não poderia haver nenhuma negação do mundo e, portanto, nenhum agrupamento completo”. (2004, p.252) A chave para entender a fenomenologia de Merleau-Ponty é a percepção. Ele acreditava que a filosofia anterior havia errado ao ver nossa principal relação com o mundo como aquela de um pensador com um objeto de pensamento. Pensar, pensamento e objetos de pensamentos não são concretos, mas abstratos. A percepção ocorre em um mundo concreto e temporal de fluxos, e o que pensamos depois a seu respeito pode não servir para percepções futuras similares (OZMON, CRAVER, 2004 p.252). É possível afirmar então que a filosofia de Merleau-Ponty está intrinsecamente ligada a percepção e, conseqüentemente, ao corpo uma vez que é este age no mundo. O único eu que se pode encontrar na fenomenologia pontyana é um eu corpóreo em ação em um mundo específico que se faz durante tal ação. De certa forma também em Heidegger encontramos indícios de uma perspectiva que valoriza a experiência acontecendo para descrever o ser. Sua noção de “ser aí” é completamente compatível e relacionada à noção de ser corporificado e situado na fenomenologia pontyana. Nossa interação com o mundo se dá, de acordo com Merleau-Ponty, através da percepção. De acordo com o autor, percebemos o mundo que nos é acessível onde existem objetos que consideramos reais e que existem por si mesmos. O mundo que é exterior a nós é compreendido através de nossa experiência. Segundo Chauí “(...) essa crença na existência de uma realidade em si está destinada a esvair-se a partir do momento em que, deixando de ser nossa forma espontânea de instalação do mundo, converte-se em tema de nossa interrogação4. A fé transforma-se em perplexidade, a evidência, em enigma, nós e o mundo, em mistérios”.(CHAUÍ, 2002 p.198) 4 A autora está se referindo a perguntas como: onde estou? Que horas são? feitas anteriormente como exemplo de manifestação de um “realismo ingênuo da existência cotidiana”. Merleau-Ponty é herdeiro da fenomenologia de Husserl que, de acordo com Sombra “tem em mira o naturalismo, o realismo e o positivismo, que dominam o pensamento científico e filosófico da primeira metade do século XX”.(SOMBRA, 2006 p. 15). Assim como Husserl, Merleau-Ponty também valoriza as coisas vividas, pois acredita que o conhecimento se dá através da relação da percepção com o mundo percebido. “Em virtude desse parentesco ontológico do meu corpo com o mundo e da visibilidade ou perceptibilidade intrínseca de ambos, a percepção, sinal visível da minha encarnação no mundo, é um acontecimento natural” (SOMBRA, 2006 p. 27). Sua fenomenologia abre espaço para integrar mente e corpo, sujeito e objeto entre outros exemplos que foram separados anteriormente pelo dualismo cartesiano e ainda busca reunir o físico, o vital e o humano através da percepção como fundamento da razão. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, (...), precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (MERLEAU-PONTY, 1994, p 3) A partir do caminho explicativo desenvolvido por M.-Ponty, Varela et al e Noë, vêm desenvolvendo o que denominam como abordagem atuacionista na ciência cognitiva, e isso muda profundamente a maneira de descrever cognição, percepção e seus funcionamentos. Os autores propõem a noção de percepção como “ação perceptivamente orientada, e afirmam também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensóriomotores recorrentes que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada” (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma dualista-cartesiano, “determinar como um mundo independente de um observador pode ser recuperado”, mas sim “determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor que explicam como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador” (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos posteriores os próprios autores reconhecem sua filiação à tradição fenomenológica de M.- Ponty e trazem claramente sua concepção de percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como colaboradora com a atuação, com a realização desse mesmo mundo. Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H. Maturana, que não foi utilizado no presente texto por uma questão do recorte momentâneo, tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana amplia a noção de percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por captação) e entende percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta específica, ou um mundo de ações. O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais (linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (MATURANA, 1997, p. 103). Já a ecologia, ou melhor, uma abordagem ecológica pode ser entendida a partir de pressupostos da fenomenologia, pois ambas entendem que o conhecimento sobre o mundo não são representações mentais internas e sim um processo dinâmico entre o homem e o meio ambiente. A further distinction between construction theories and the ecological approach is that neither information-processing nor rationalist approaches link perception with action. Except for Piaget, construction theories do not hypothesize a role for action in perceptual development. The ecological approach, on the other hand, emphasizes the fundamental reciprocity of perception and action5 (GIBSON e PICK, 2000, p. 12/13). A idéia de percepção e ação é constante na abordagem ecológica e por isso é caracterizada por ser um sistema dinâmico entre a ação do percebedor e o meio. Pode-se dizer que o conhecimento é a forma de cada um perceber o mundo. Nesse aspecto a abordagem ecológica conta com importantes premissas 5Uma outra distinção entre as teorias construtivistas e a abordagem ecológica é que nenhuma teoria do processamento de informação ou racionalista liga a percepção com ação. Exceto para Piaget, teorias construtivistas não propõe um papel para a ação no desenvolvimento perceptivo. A abordagem ecológica, por outro lado, enfatiza a reciprocidade fundamental da percepção e da ação (trad. nossa). [...] the focus must be on the animal-environment fit, and that neither representations nor innate or perordained plans direct development. Istead, new abilitiees emerge because multiple dynamic forces of growth and the organism`s own activity drive developmental change6 (GIBSON e PICK, 2000 p. 13). Autores como Humberto Maturana e Francisco Varela também propõe uma maneira diferente de entender o conhecimento, não um entendimento de apropriação de informações a serem processadas pelo percebedor e sim “que os seres vivos são autônomos, isto é, capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 14) Os processos dinâmicos são entendidos dessa forma, pois dizer que os seres vivos são autônomos pode parecer que não precisam do meio ambiente para viver e sabemos que isso não é possível, por outro lado o ser vivo não responde ao meio sempre da mesma forma diante de uma mesma situação. É preciso entender que seres vivos e meio ambiente não são opostos e, sim, se complementam. “Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 14) E nesse sentido podemos relacionar a ecologia e a fenomenologia, pois a ação e a experiência servem de suporte para o conhecimento e dependem muito da percepção. A experiência a que nos referimos se resume não só a uma experiência simplesmente física, como, por exemplo, ter uma reação à mudança de temperatura, mas também nos níveis sociais e por isso “o fenômeno do conhecer é um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os seus âmbitos” (MATURANA e VARELA, 2001, p.33) E é através dessa ênfase na percepção fundamentado na fenomenologia de orientação pontyana, na ecologia e no enaccionismo de autores como Varela e Noë que o presente artigo pretende dialogar com uma forma de expressão humana tão conhecida: a música e encaminha ações que tenham na audição o centro das atividades em educação musical. A audição é um importante sistema perceptivo presente em uma grande parte dos seres vivos e através dela que tais seres podem se orientar e se desenvolver adequadamente, 6 [...] o foco deve estar no ajuste entre o animal e o meio-ambiente, e que nenhuma representação nem inata ou planos pré-ordenados dirigem o desenvolvimento. Ao invés disso, novas habilidades emergem porque múltiplas forças dinâmicas de crescimento e a própria atividade do organismo dirigem a mudança no desenvolvimento (trad. nossa). melhorando e mantendo sua vida. No caso dos seres humanos é importante que todos desenvolvam seus cinco sistemas perceptivos em toda a sua potencialidade porque assim sua capacidade de desenvolver seu conhecimento do mundo tornar-se-á mais completa. No que se refere à educação musical especificamente, podemos dizer que seu objetivo principal é que todos os seres humanos desenvolvam habilidades musicais e desenvolvam especificamente seu conhecimento de música e arte. Entender e descrever bem os fenômenos relacionados à audição é parte fundamental quando se deseja desenvolver uma pesquisa em educação musical séria, fundamentada e que dialogue com outras áreas como a educação, a filosofia, a psicologia, a ciência cognitiva entre outras. Em educação musical, assim com em diferentes áreas do conhecimento, há uma grande variedade de posicionamentos teóricos frente a diferentes aspectos envolvidos naquilo que se denomina por desenvolvimento do conhecimento musical. Dentre as abordagens em educação musical podemos observar métodos que reúnem um repertório musical exclusivamente ocidental. Outros que prezam a música folclórica de seu país. Alguns são para aulas coletivas, outros para aulas individuais. Uns ensinam música através de instrumentos musicais, outros ensinam através de jogos, audição e discussão, e até sob outras manifestações artísticas como a dança e o teatro. Tratando de conteúdo a música pode ser alcançada sob diversos aspectos como o estudo de técnicas interpretativas, história da música e da arte. No entanto a grande maioria dos métodos foca sua atenção no domínio da linguagem musical, ou seja, na notação e percepção dos parâmetros sonoros (altura, timbre, intensidade, duração). E musicais (melodia, harmonia, rítmo...). Assim, a audição não encontra um espaço especifico como meio próprio para o desenvolvimento das capacidades musicais e artísticas em geral. O papel da audição na grande maioria dos métodos e abordagens em educação musical no Brasil, e mais especificamente em nossa região, é periférico e não a tem em consideração como aspecto central no desenvolvimento cognitivo musical. Dessa forma parece antagônico querer promover o desenvolvimento de habilidades musical sem buscar especificamente o desenvolvimento da capacidade auditiva. Nesse contexto é até injusto exigir que um aluno ouça e reconheça o som de uma tuba no meio de uma orquestra se ele nem é incitado a ouvir com atenção os sons comuns de seu dia-a-dia. Estar no mundo e perceber suas formas, cores e cheiros incluem também perceber seus sons. Uma criança que aprende a ouvir e perceber todos os sons que existem a sua volta, quando adulto tem muito mais chances de perceber nuances de uma obra musical. Assim sendo, abordagens metodológicas como a proposta pelo canadense Murray Schafer (1933- ) podem ser vistas sobre a ótica da fenomenologia de Merleau-Ponty pois apresenta uma tentativa de integrar o homem no mundo através da percepção que neste caso é auditiva. Schafer é um importante compositor e educador musical, autor de livros como O ouvido pensante (1991) e a Afinação do mundo (2001). Neste último o autor expõe de maneira sistemática sua tentativa de estudar o ambiente sonoro. Para tanto alguns termos que, são recorrentes em seus textos e que acabam por se tornar familiar ao leitor, são criados pelo próprio Schafer no intuito de formar conceitos, já que seu campo de pesquisa ainda não era conhecido na década de 70 do século XX. Um desses conceitos é soundscape, que tem sido traduzido para o português como paisagem sonora. A sistematização de sua pesquisa tem início quando o autor mostra como a paisagem sonora evoluiu no decorrer da história. Seu trabalho chamou a atenção de pesquisadores e de educadores em todo o mundo. Atualmente há conferências nacionais e internacionais a esse respeito e há inclusive um fórum mundial denominado The World Fórum for Acoustic Ecology (Fórum Mundial de Ecologia Acústica). O autor entende ecologia como um estudo que precisa relacionar todos aqueles que vivem em determinado meio-ambiente e que produzem e transformam esse meio. Nesse sentido sua proposta pode mesmo ser entendida como plano político para o mundo atual. A paisagem sonora do mundo está mudando. O homem moderno começa a habitar um mundo que tem um ambiente acústico radicalmente diverso de qualquer outro que tenha conhecido até aqui. Esses novos sons, que diferem em qualidade e intensidade daqueles do passado, tem alertado muitos pesquisadores quanto aos perigos de uma difusão indiscriminada e imperialista de sons, em maior quantidade e volume, em cada reduto da vida humana (2001,p.17) . Percebemos então a preocupação do autor enquanto um ser humano que habita este mundo e interage com ele e fica claro que nossas ações interferem na maneira como conduzimos nossas relações com o mundo. E é nesse aspecto que a fenomenologia pode servir como embasamento filosófico para fundamentar ações em educação musical que priorizem a percepção para a paisagem sonora mundial que se transforma a cada dia. Quando levamos em consideração a percepção, que no caso da educação musical trata da percepção auditiva, desenvolvemos uma nova maneira de interagir com o mundo, pois o aluno em uma sala de aula, a partir desta perspectiva, é chamado constantemente a ouvir os sons que o cercam e dar um significado a eles. Ouvir a paisagem sonora é uma maneira de ouvir os sons ambientes e obrigar-se a tomar uma atitude frente a ele como propõe a fenomenologia pontiana apontada por Sombra. A significação para o conjunto ou a totalidade a que Merleau-Ponty refere-se não é outra coisa que a experiência original do organismo vivo ou corpo biológico, que aparece e se comporta como totalidade integrada ou estrutura. (...) A eficácia do estímulo não depende apenas de sua presença e atuação objetivas. É preciso que ele seja “reconhecido” pelo organismo, ou seja, é preciso distinguir a presença ‘em si’ do estímulo e sua presença ‘para o organismo’ que reage ( 2006 p. 88). Assim essa reação passa a ser consciente e prepara o aluno a interagir com o mundo de forma ampla, pois as aulas de música com ênfase no desenvolvimento auditivo a partir da audição de paisagem sonora oferecem condições de desenvolver um comportamento mais consciente de seu papel como produtor e compositor da paisagem sonora a qual habita. Referência: BELLO, Ângela Ales. Fenomenologia e Ciências Humanas. Psicologia, história e religião.Bauru, SP: EDUSC, 2004. CHAUÍ, Marilena. Experiência do Pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GIBSON, Eleanor J./ PICK, Anne D. An Ecological Approach to Perceptual Learning and Development. New York: Oxford University Press, 2000. HUSSERL, E. Meditações Cartesianas. Introdução à Fenomenologia. Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras Editora Ltda, 2001. MATURANA, R. H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997. MATURANA, Humberto R./ VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento. As bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. MERLEAU-PONTY Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. NISKIER, Arnaldo. Filosofia da Educação. Uma visão crítica. São Paulo: Loyola, 2001. NOË Alva. Perception in Action. Berkeley: The Mit Press,2004. OZMON, Howard A./CRAVER, Samuel M. 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