EMPODERAMENTO FEMININO E ESPAÇOS BIOGRÁFICOS EM MÁQUINA DE PINBALL DE CLARAH AVERBUCK           

O que transcende o “gosto” definido por parâmetros sociológicos ou estéticos e produz uma resposta compartilhada. O que leva repetidamente a recomeçar o relato de uma vida (minucioso, fragmentários, caótico, pouco importa seu modo) diante do próprio desdobramento especular: o relato de todos. O que constitui a narrativa, esse “passar a limpo” a própria história, que nunca se termina de contar. (Leonor Arfuck)

A hipótese a ser discutida neste artigo é que as narrativas femininas que proliferaram nos Espaços Biográficos contemporâneos configuram um processo de empoderamento e agenciamento feminino e são, consequentemente, um espaço de articulação entre as artes e as lutas políticas.

            O conceito de Espaço Biográfico é proposto pela teórica argentina Leonor Arfuck, a qual tenta, dentro desta definição, abarcar a proliferação de inúmeras ocorrências narrativas que trazem em seu corpus a subjetivação do “eu”, assim como sua ficcionalização. A discussão abrange, também, os outros suportes de apoio para as literaturas de “ficcionalização (auto) biográfica do eu”, oriundos da propagação tecnológica. O conceito também problematiza as questões entre o público e o privado, a complexa relação entre os gêneros literários canonizados e a cultura de massa; o retorno do sujeito às narrativas, assim como o contexto que envolve estas tramas na contemporaneidade.

            Dentro deste panorama, o blog é apenas um exemplo deste largo universo de multiplicidades de suportes para escritas recentes, que configuram, dentre outros, o Espaço Biográfico defendido por Arfuck.  Este, além de ser de comunicação global em rede, é de livre acesso e, em tese, gratuito para os autores exporem seus textos e promoverem, também, fóruns de discussão sobre a recepção, intertextualidade e experiências pessoais entre ambas as partes dos agentes da comunicação. Pode-se, por isso, pensá-lo como um espaço de cidadania cultural contemporâneo, visto que democratiza a ferramenta da escrita, sua produção e circulação.

Outro ponto importante debatido pelo pesquisador revela a nova demanda da cidadania contemporânea: o “estar conectado”. Ter acesso à rede mundial de computadores tornou-se não somente questão de status social, mas, principalmente, questão de democratizar a participação na vida cultural. É nesse momento, segundo o professor, Antonio Albino Rubim , que comunicação e cultura convergem para a criação de uma cidadania renovada e de práticas midiáticas pela diversidade. (MOURA, LIMA, RIBEIRO, 2010).

            Segundo Fabiana Komesu (2004, p.01), o termo blog é uma abreviação de weblog, expressão que pode ser traduzida como “arquivo na rede”, que surgiu em agosto de 1999 com a utilização do software Blogger, da empresa do norte-americano Evan Williams. O software fora concebido como uma alternativa popular para publicação de textos on-line, uma vez que a ferramenta dispensava o conhecimento especializado em computação. A facilidade para a edição, atualização e manutenção dos textos em rede foram – e são – os principais atributos para o sucesso e a difusão dessa chamada ferramenta de autoexpressão, permitindo, ainda, a convivência de múltiplas simbioses, a exemplo de textos escritos, de imagens (fotos, desenhos, animações) e de som (músicas, principalmente).

            Esta especificidade dos blogs corrobora o posicionamento de Arfuck (2010, p.18) quando defende o retorno do sujeito individual e sua subjetividade, antes menosprezada pelo sujeito coletivo, que priorizavam “o povo, a classe, o partido, a revolução”, deixando à margem as relações entre “o corpo, o amor, a sexualidade”.

O impacto da internet sobre o “espaço biográfico” se faz sentir a abertura à existência virtual, às invenções de si, aos jogos identitários, propícios à fantasia da autocriação e ao desenvolvimento de redes inusitadas de interlocução e sociabilidade (VIEGAS, 2008, p.4).

Observa- se, também, no Espaço Biográfico a razão dialógica de Bakhtin (1992), na qual o contexto de enunciação do sujeito no diálogo é que dá sentido ao seu discurso, sendo visto, principalmente, dentro de sua heterogeneidade e “alienação”. Ao mesmo tempo em que se percebe as benfeitorias provenientes deste espaço de largo acesso e livre criação, “dispositivos que permitem a invenção de si” (AZEVEDO, 2008), há inúmeras discussões que o demonizam e criticam a presença de um cunho literário de pouco valor acadêmico e muita exposição de particularidades ordinárias e “privativas” contrárias ao interesse público.

Para os que apostam nesse panorama desolador, a literatura estaria perdendo sua capacidade adorniana de resistência e se entregando facilmente aos prazeres da superficialidade, regozijando-se com o banal, chafurdando no ordinário e investindo em conteúdos ridículos. Assim, tendo invadido a cena literária contemporânea, o blog é entendido como o mais novo dispositivo propulsor de artificialismos que investe na espetacularização do sujeito e se constitui como uma ferramenta a mais, prestes a colaborar com a “tagarelice do personalismo e a banalidade da autoexpressão narcisista. (JAGUARIBE apud AZEVEDO, 2008, p.115)

 Já para Rubim (2006), a não profissionalização, como a de grande parte dos escritores de blogs, entretanto, não afeta o status de fruição e do consumo. Pelo contrário, ela indica a amplitude e mesmo a universalidade do ato de recepção da cultura, a importância central dos públicos culturais. Para o autor, todos os cidadãos são potencialmente públicos de cultura, principalmente quando ela não está subordinada a lógica mercantil, pois todos os indivíduos estão imersos em ambientes culturais ainda que em modalidades muito desiguais de acesso pleno aos seus estoques e fluxos. [...] porque me recuso a fazer faculdade só para ter o idiota do diploma de jornalista. Só consigo estudar por objetivos mais nobres do que um pedaço de papel. (AVERBUCK, 2002, p. 33).

O suporte blog dentro da perspectiva de Espaço Biográfico é, assim, convidativo e facilitador para a expressão do “eu”, transfigurado pelo processo de ficcionalização, desestabilizando as barreiras dicotômicas entre autor e personagem, real e ficção. Sendo assim, não tende à unificação ou ao fechamento centralizador do sujeito unitário da modernidade, nem a linearidade na relação autor versus personagem. Por isso, Arfuck direciona sua análise em relação a um “sujeito que se expressaria através do discurso a outro que se constitui através dele” (p.11). Esta perspectiva de sujeito descentrado e fragmentado é discutida, também, por Stuart Hall: “o sujeito do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós- moderno. (HALL, 2006, p. 46.)

Um exemplo a ser considerado é o da autora Clarah Averbuck, a qual iniciou sua escrita em um blog e depois foi convidada à publicação em livro, atualmente com edição esgotada nas maiores livrarias, e, em 2006, adaptado para o cinema no longa metragem Nome Próprio com direção de Murilo Sales e interpretação de Leandra Leal.

Em seu blog, a autora narrou a precária vida de Camila, personagem que passa por uma transfiguração ficcional da biografia da própria Clarah Averbuck, por se assemelhar com o período vivido pela autora ao chegar a cidade de São Paulo. Quando questionada em entrevista feita por Abonico R. Smith, sobre qual seria o limite entre Clarah e Camila, a autora responde:

Alterego significa "outro eu". A Camila é uma parte de mim, mas as pessoas realmente se recusam a entender que ela não é a Clarah. Eu controlo a Camila. Ela é minha personagem, faz o que eu quero. Mas isso é proposital, faço para confundir os leitores mesmo. Funciona, como dá pra notar, mas também dá bastante incomodação. Tudo bem, enchiam o saco do Bukowski e do Celine também. Faz parte de usar a própria vida como matéria-prima. (AVERBUCK, 2008)

A personagem demonstra vários traços característicos do sujeito pós-moderno suscitados por HALL (2006), como sua instabilidade, fragmentação, imediatismo e contradição.

Preciso é dar um jeito de arrumar o caos que sou. (AVERBUCK, 2002, p. 44)

Não sei o que acontece comigo, mas assim que me interesso por alguém a imbecil que mora em mim, Mariela, se manifesta. [...] Quando não é a Mariela [...] é a Conchita me deixando gaga. Conchita é mexicana, gaga, meio feinha e também mora dentro de mim. (AVERBUCK, 2002, p. 54 e 55)

Qualquer coisa fácil não tem a menor graça. E difícil não significa lento, demoras me corroem, quero tudo na hora. (AVERBUCK, 2002, p. 15.)

Dentre os conceitos teóricos que tratam das escritas do “eu”, como a biografia e a autobiografia, o conceito mais aplicável e discutido atualmente para as escritas blogueiras, como a de Clarah Averbuck, seria o da autoficção, que é visto como “estratégia representacional possível exercitada pelos blogueiros em seus posts e nos livros publicados, com o um dispositivo que responde ao contexto contemporâneo” (AZEVEDO, 2008, p.3).

Quero vida e a vida não tem fórmula. Quero dor e entranhas e sentimentos. Quero verdade. Quero saber que Arturo Bandini e Bruno Dante sentiram tudo aquilo. Quero sentir junto. Quero que seja verdade, autobiografia disfarçada de ficção. (AVERBUCK, 2002, p.29)

O termo foi inicialmente apresentado por Serge Doubrovsky em reposta a Philippe Lejune (1996, p.31), sugerindo que há “uma fenda aberta pela constatação de que todo contar de si, reminiscência ou não, é ficcionalizante.” Logo usado por Vicent Colonna, que definiu a expressão quando “um escritor se inventa em uma personalidade e uma existência conservando sua identidade real” (Laouyen apud Azevedo, 2008, p.4). Já Puertas Moya (2003, p.586) acredita que autoficção se refere à “literatura fictícia na qual o eu sem referente específico não é assumido existencialmente por ninguém concretamente”.

Todas estas conceituações tentam abarcar os recentes fenômenos da escrita que não se encaixam nas antigas postulações estanques sobre os gêneros textuais. A “morte do autor” foi necessária em uma época para se quebrar a noção de centro orientador que limitava a leitura, entretanto “a volta do autor” torna-se importante em um tempo que, junto a novos suportes tecnológicos, outras estratégias representativas são experimentadas. Em suma, tal conceito provém da desestabilização do próprio do conceito de autobiografia, que já não consegue dar contar e abarcar escritas como a de Clarah Averbuck e seus pares, visto a hibridização (CANCLINI, 1995, p.285) e a indistinção irredutível dos gêneros textuais e as transformações que transcorrem nos novos movimentos culturais. Como diz a autora: “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sido mera coincidência. Dúvidas, consulte um advogado. (AVERBUCK, 2002, p.29)

Este é o ponto de partida para Arfuck pensar os gêneros literários, desde as formas clássicas de relatar a própria vida: memórias, correspondências, diários, confissões como a de Santo Agostinho e Rousseau; apresentando as novas formas autobibliográficas no cenário contemporâneo ligado aos meios de comunicação de massa como os blogs, sites, redes sociais, talk-show, reality-show. Considera-se, nesta perspectiva, “não tanto a diferença entre os gêneros discursivos envolvidos, mas sua coexistência. Aquilo comum que une as formas canonizadas e hierarquizadas a produtos esteriotípicos da cultura de massa” (ARFUCK, 2011, p.16).

Luciene Azevedo, em Autoficção e literatura contemporânea, após apresentar o panorama conceitual acerca da autoficção, afirma que a novidade destas escritas

é a vontade consciente, estrategicamente teatralizada nos textos, de jogar com a multiplicidade das identidades autorais, os mitos do autor, e ainda que esta estratégia esteja referendada pela instabilidade de constituição do “eu”, é preciso que ela esteja calcada em uma referencialidade pragmática, exterior ao texto, uma figura do autor, claro, ele mesmo também conscientemente construído. (AZEVEDO, 2008, p.4).

Em seguida, a autora resume a estratégia da autoficção como um “equilíbrio precário de um hibridismo entre o ficcional e o autorreferencial, um entre-lugar indecidível que bagunça o horizonte do leitor” (Idem, p.5). Este conceito foge ao mesmo tempo da referencialidade concreta do “eu” da autobiografia ou do romance autobiográfico, assim como escapa da fantasia lúdica da ficção, transitando hibridamente entre tais instancias sem filiar-se a nenhuma.

A criação de narrativas que sustentam a ambiguidade entre o espaço da ficção e as referências extratextuais, aproximando-se do conceito de autoficção, é uma das marcas desse narrador em 1ª. pessoa da atualidade. Essas “ficções de si” constituem-se como narrativas híbridas, ambivalentes, tendo como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construído discursivamente. Distinguem- se, neste sentido, do uso midiático dos relatos em 1ª. pessoa que visam gerar o efeito de espontaneidade, autenticidade e proximidade. (VIEGAS, 2008, p.7)

Desde o início da contemporaneidade, experiências pessoais, ficcionalizadas ou não, passaram com a mercantilização da culturaa serem considerados bens simbólicos potenciais para a exploração capitalista. Rubim explica que a emergência da lógica de produção da indústria cultural faz com que eles (os bens simbólicos) não sejam assumidos apenas como mercadoria na esfera da circulação, mas desde o momento de produção “o capital agora avança não só sobre a circulação, mas também sobre a própria produção da cultura” (RUBIM, 2006, p.4)

É interessante perceber que a enunciação partir de um blog, interface situada no ciberespaço, tem direta relação com o estilo narrativo da autora, assim como o modo de circulação da obra, porém, como alerta Pierre Levy (1999, p.25 e 26), sem um determinar o outro: a técnica não determina o espaço, nem o espaço determina a técnica. São dialogicamente articulações da contemporaneidade. Estas narrativas em permanente reorganização no ciberespaço tornam-se virtuais, ou seja, desterritorializadas, criando uma espécie de teia rizomática, na qual tanto o leitor quanto o escritor experimenta inúmeras alternativas de reconhecimento, distanciamento e estranhamento com os ícones vinculados. Então, o melhor seria chamar estas narrativas “filhas” do ciberespaço de hipertexto (LEVY, 2004, p.13 a 15), visto que dentro deste conceito, além de uma referência direta ao texto em rede virtual, também subentende- se o processo de interação entre os interlocutores do mesmo.

Por conseguinte, a partir da tecnologização da cultura, mais especificamente da proliferação de novos suportes mediáticos, escritas blogueiras ganham maior espaço na indústria cultural. “A reprodução técnica de textos e depois de imagens e sons cria novas formas de culturais, que passam a conviver com os formatos pré-existentes da cultura” (RUBIM, 2006, p.4), os quais permitem “a explosão das redes informáticas e todo um conjunto de cibercultura, associadas ao processo de glocalização[1], que hoje passam a ambientar a sociabilidade” (RUBIM, 2006, p.5)

A citação de Rubim remete claramente ao que aconteceu com o percurso da obra de Clarah Averbuck. Uma escrita inicialmente considerada como um desabafo pessoal, ou seja, um bem simbólico, feito em uma mídia relativamente nova como o blog, ganha status de bem de consumo e é agregado ao mercado cultural, adaptado a um formato já existente e consagrado como o livro, a fim de ser mais amplamente consumido.

Associado ao processo de tecnologização da cultura, a explosão de redes, cibercultura, globalização e glocalização, a culturalização da política também é observado na obra em questão, visto que “são agregadas novas demandas político- sociais, muitas delas de teor cultural [...] gênero, orientação sexual, modos de vida; estilos de sociabilidade, comportamentos...” (RUBIM, 2006, p.5). Estes aspectos suscitados por Rubim encontram-se em pauta no livro Máquina de Pinball, comungando com interesses da sociedade civil que acaba por se identificar com o conteúdo da obra, além de servir de apoio a movimentos sociais, neste caso direcionado as questões femininas.

O enredo da obra trata das dificuldades enfrentadas por uma mulher sozinha em uma grande capital: as dores amorosas, a traição, os prazeres hediondos, a falta de dinheiro, de amigos, de pudores. Pode-se dizer que é uma narrativa guiada pela falta e, por isso, remete a uma busca. Uma dor e desconfortos questionadores aliviados pela escrita no blog.

Clarah Averbuck, ao tornar visível temáticas antes omitidas, ignoradas ou silenciadas sobre a condição da mulher na atualidade, como sua autonomia e liberdade sexual, a independência guiada por um rumo oposto ao caminho para o casamento, a família e os bons costumes, traz à tona questões de ordem política de gênero, questionando os padrões estigmatizados e apresentando novas possibilidades de ser.

Sim, sou mulherzinha [...] mas com bolas. (AVERBUCK, 2002, p.13)

Porque preciso me apaixonar toda hora. [...] não sou capaz de ficar com uma pessoa só. (AVERBUCK, 2002, p.14)

O dito normal é a coisa mais estranha que posso imaginar.[...] Estranho é o cara sair de maleta às 6h47 da manhã todos os dias, pegar o ônibus até o metrô e o metrô até a pequena companhia de seguros e trabalhar até as 6 em ponto e voltar para casa e comer bife com arroz na frente da TV sem falar com sua mulher (que fez o bife com arroz) e nem olhar direito para os filho (que mal sabem quem é aquele sujeito de barba que eles chamam de pai) e dormir ( de pijama azul) logo depois do jornal noturno porque está cansado, muito cansado, e amanhã vai ter que fazer tudo de novo e depois também e depois vai se aposentar e olhar pra trás e achar que a vida foi digna e honesta e justa e que viveu uma rotina estúpida em que não conseguia diferenciar um dia do outro. Esses humanos são todos uns loucos.

Eu fazia diferente. (AVERBUCK, 2002, p.65 e 66)

[...] saio por aí me divertindo dentro do possível e comendo pessoas. Nada de canibalismo aqui: estou falando de sexo. (AVERBUCK, 2002, p. 14)

O Espaço Biográfico do blog gera um espaço de expressão e reconhecimento feminino que se apresenta fora das amarras ditatoriais do patriarcalismo, cujas imposições sociais vêm sendo debatidas e questionadas, configurando assim um espaço político de luta e afirmação.

focando privilegiadamente a representação e os media, a produção e a leitura de textos culturais, que mostra-se empenhada, por um lado, no reafirmar das batalhas já ganhas pelas mulheres, e por outro, na reinvenção do feminismo enquanto tal, e na necessidade de o fortalecer, exigindo que as mulheres se tornem de novo mais reivindicativas e mais empenhadas nas suas lutas em várias frentes. (MACEDO, 2006, p.1).

A visibilidade da obra mostra a intensificação do processo de alteridade, visto que muitas mulheres acabaram se identificando com as questões apresentadas pela autora, ou através do estranhamento, repensando seu lugar de ação. Como esperado, ao mesmo tempo, foi alvo de muitas críticas, pois traz à tona problemáticas há muito tempo silenciadas e que incomodam quando voltam ao foco, desestabilizando o lugar das ideias preestabelecidas, preconceitos.

A autoficção aparece, também, como um possível recurso de proteção da identidade, visto que estas lutas políticas e embates ainda são, mesmo décadas após o Movimento Feminista, foco de críticas e boicotes. Com a ficcionalização, as autoras têm maior liberdade de exporem os cernes das questões sem após sofrem censuras ou julgamentos que venham a prejudicá-las no trabalho ou na própria família, visto que “a temática da sexualidade, sobretudo quando escrita por mulheres, ainda provoca escândalo” (FIGUEIREDO, 2010, p.93).

É graças à possibilidade de criar um duplo de si que essas escritoras podem expor-se, nessas formas de autoficção, desvelando assuntos tabus como incesto e prostituição, ou ainda, explorando temas como lesbianismo, desdobramentos esquizoide ou paranoico [...] Ao mesmo tempo, deve-se destacar que essa escrita feminina sobre sexualidade se propõe a fazer uma releitura do papel arcaico da mulher, que é de ser objeto do desejo do homem. (FIGUEIREDO, 2010, p.98).

Observa-se, desta forma, novos ângulos femininos que escapam da dicotomia machismo x feminismo, ou até de um pós- feminismo, mas que se configuram plurais e fragmentados. A arte da escrita autoficcional é materializada ecoando discussões políticas de gênero. Assim, o notável empoderamento feminino destes Espaços Biográficos, propícios à expressão do “eu”, como verificado em Máquina de Pinball de Clarah Averbuck, tendem a formar um corpus significativo de novos manifestos a respeito da feminilidade e sua prática na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] “glocal palavra hoje crucial para o entendimento do modus operandi fundamental da civilização mediática – foi originalmente constituída no mundo corporativo japonês, na década de 1980. A apócope criativa visava responder, a uma situação histórica cada vez mais globalizada e interdependente política, econômica e culturalmente e com repercussões continuadas no domínio dos negócios, na qual uma empresa vê-se compelida a fazer uso de seu capital disponível de flexibilidade adaptativa a culturas locais, em sinal de respeito às características socioculturais das comunidades dentro das quais se instala e atua, a fim de cumular feitos públicos à imagem institucional matricial da empresa, às suas reservas estratégicas de responsabilidade social e, obviamente, aos seus interesses de expansão do valor de troca.” (TRIVINHO, 2012)