1  INTRODUÇÃO

 A Emendatio Libelli, prevista no art. 383 do CPP, consiste na correção da inicial com o intuito de adequar o fato narrado e provado, efetivamente, ao tipo penal descrito em lei (OLIVEIRA, 2009, p. 570).

Para alguns doutrinadores a Emendatio Libelli constitui em hipótese de atenuação do princípio da correlação entre a sentença e o pedido. Para outros, tal correção constitui justamente numa adequação do pedido e da sentença ao princípio da correlação, ou seja, com a emenda efetivar-se á a correlação do fato ao direito e consequentemente entre pedido e sentença.

A hipótese se dará quando o juiz, no momento em que decidir por condenar ou pronunciar o réu, atribuir uma nova definição jurídica, uma nova capitulação ao fato descrito, contudo sem acrescentar ao fato qualquer elemento ou circunstância que já não estivessem presentes na inicial (AVENA, 2009, p. 921).

Em outras palavras, trata-se de uma correção feita pelo juiz ou pelo tribunal (como se verá adiante, pode-se aplicar a Emendatio Libelli tanto em primeiro quanto em segundo grau), no momento da decisão de sentença, em que este poderá conferir uma nova definição jurídica ao fato exatamente como descrito na peça inicial.

Dispõe o Art. 383, do CPP, com redação conferida pela Lei 11.719/2008, in verbis:

Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). § 1o Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). § 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

 2  DESENVOLVIMENTO

 Por definição jurídica deve-se entender a capitulação ou classificação do tipo penal feita pelo autor da peça inicial, obedecendo aos requisitos estabelecidos no art. 41 do CPP. Dar a definição jurídica do fato, segundo Nucci (2010b, p. 656), é “promover o juízo de tipicidade, isto é, adequar o fato ocorrido ao modelo legal de conduta”. Logo, conferir definição jurídica diversa consiste na alteração da capitulação da infração penal, entretanto sem modificar a descrição fática da infração. Com isso, há de se entender que, em consonância com o pensamento de Lopes Júnior (2009, p. 349): “a emendatio libelli não se ocupa de fatos novos, surgidos na instrução, mas sim de fatos que integram a acusação e que devem ser objeto de uma mutação em sua definição jurídica”.

É possível a aplicação do instituto processual da Emendatio Libelli na decisão de pronúncia no procedimento do Tribunal do Júri.

Existe regra simétrica à expressa no art. 383 do CPP, contida no art. 418 do mesmo ordenamento, a seguir: “art. 418. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)” (BRASIL, 2010).

A Emendatio Libelli poderá ser aplicada tanto em primeiro grau de jurisdição quanto em segundo, sendo cabível, entretanto, alguma ressalva.

Há que se falar aqui sobre a proibição da reformatio in pejus e do tantum devolutum quantum appelatum no segundo grau.

O tribunal poderá livremente aplicar a emendatio libelli quando a correção implicar em pena menos gravosa ao condenando. Por outro lado, se a correção implicar em pena mais gravosa, somente se houver recurso da acusação é que o tribunal poderá aumentar a pena do condenado (GRECO FILHO, 2009, p. 307-308). Ficando inerte a acusação, quanto à interposição de recurso, o tribunal poderá corrigir a classificação do crime, contudo não poderá agravar a pena. Ainda, Oliveira (2009, p. 570) confirma:

 [...] a emendatio libelli em segundo grau sofre as mesmas limitações pertinentes aos efeitos devolutivos dos recursos,em geral. Vigeaqui a regra da proibição da reformatio in pejus, ou reforma para a pior, segundo a qual o julgamento do recurso não poderá ser mais desfavorável que a decisão de primeira instância, em relação à impugnação aviada exclusivamente pelo recorrente.

 Não havendo recurso do Ministério Público, o tribunal não poderá piorar a situação do acusado com base no recurso por ele interposto. Assim, ainda que o tribunal esteja autorizado a corrigir a capitulação do crime, da emenda não poderá resultar, nunca, aplicação de pena mais grave.

 2.1  Problemática da Emendatio Libelli

 A maioria dos doutrinadores, dentre eles, Oliveira (2009), Nucci (2010b), Tourinho Filho (2010), Avena (2009), Távora em obra conjunta com Alencar (2009), defende a aplicação da emendatio libelli, baseada no princípio do jura novit curia (o juiz conhece o direito) e, consequentemente, no princípio do narra mihi factum dabo tibi jus (narra-me o fato e te darei o direito) centrado no entendimento de que a errônea classificação do crime não impede ao juiz a prolação de sentença condenatória diversa da pleiteada na inicial.

Oliveira (2009, p. 569) aduz que o fato narrado na inicial pelo Ministério Público ou pelo querelante não vincula o juiz da causa, pois “a pena a ser aplicada não resulta da escolha do autor da ação, mas de imposição legal”.

A questão mais controvertida surge, entretanto, quando da prescindibilidade da exigência de quaisquer providências instrutórias, ao passo em que o juiz poderá proferir a sentença sem abrir vista ao Ministério Público ou ao acusado.

 Tal possibilidade se sustenta na idéia de que o réu “não se defende da capitulação, mas da imputação da prática da conduta criminosa” (OLIVEIRA, 2009, p. 570), em outras palavras, o acusado se defende dos fatos e não do direito. Como resultado, ainda que a nova capitulação suscite em pena mais grave, não haverá prejuízo à defesa.

Sustenta a mesma doutrina que, em se tratando de questão exclusivamente de direito, o imputado poderá defender-se amplamente em segundo grau.

Contudo, quando a aplicação do instituto puder resultar em prejuízo à ampla defesa ou na modificação do rito procedimental, haverá nulidade do processo, mas em razão da violação ao princípio da ampla defesa e não por invalidade da emendatio (OLIVEIRA, 2009, p. 571).

Por outro lado, para uma parcela minoritária da doutrina, fazendo uma menção mais específica à Lopes Júnior (2009, p. 350), o posicionamento anterior demonstra um “reducionismo da complexidade, ainda atrelado a uma concepção simplista do processo penal, incompatível com o nível de evolução do processo penal e dos cânones constitucionais contemporâneos”. O autor afirma que o réu não se defende apenas dos fatos, mas também dos limites semânticos do tipo penal; o réu não se defende somente do fato descrito, como também do fato juridicamente qualificado. Ademais, estabelece distinção entre o fato para o direito penal e o fato para o processo penal, de modo que para este o fato confunde-se com o fato concreto (o acontecimento real) e para aquele o fato relaciona-se com a descrição hipotética que constitui o tipo penal (o tipo penal abstrato).

Vai além quando afirma ser o fato processual mais amplo que o fato penal, já que o primeiro abrange “o acontecimento naturalístico, com todas as suas circunstâncias e também a classificação do crime”, ou seja, o fato processual, neste caso, seria a soma do fato natural e do fato penal.

Sendo assim, qualquer modificação que possa existir no fato penal, implicará em modificação, também, do fato processual penal, já que o primeiro está contido no último.

Por constituir expressa violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, após a decisão de aplicação da Emendatio Libelli deve-se abrir vista às partes para que se manifestem. Em contrapartida à idéia acima referida, do ponto de vista prático, a aplicação da Emendatio Libelli assegura uma maior celeridade processual, já que, como assevera Nucci (2010b), não existe.

  [...] praticidade na conduta do magistrado que, estando com o processo em seu gabinete para sentenciar, após verificar que não é o caso de condenar o réu por estelionato, mas sim por furto com fraude, por exemplo, paralisa seu processo de fundamentação, interrompe a prolação da sentença e determina a conversão do julgamento em diligência para o fim de ouvir as partes sobre a possibilidade – não poderá afirmar que assim fará, pois senão já estará julgando, em decisão nitidamente anômala – de aplicar ao fato definição jurídica diversa da constante nos autos.

 A Emendatio Libelli possui duas formas de aplicação pelo juiz ao caso concreto: por defeito de capitulação e por supressão de circunstância.

Por defeito de capitulação, ocorre quando o juiz proferirá sentença condenatória ou decisão de pronúncia exatamente conforme o fato descrito na inicial.

Apenas reconhecerá que o fato narrado se encaixa em dispositivo penal distinto do que constou na denúncia ou queixa, um exemplo seria a denúncia que narra os fatos do crime de roubo, mas capitula como crime de furto; poderá o juiz condenar o réu pelo crime descrito, ou seja, pelo crime de roubo, muito embora tenha este uma pena maior do que a do crime erroneamente atribuído na denúncia.

Por supressão de circunstância o magistrado confere capitulação diversa da imputada na inicial em razão da não-constatação de elementos ou circunstâncias que, embora descritos na denúncia ou queixa, não foram provados na fase instrutória.

Em verdade ocorre uma redução da imputação por ausência de provas. Há uma modificação fática, mas não para acrescentar (o que ensejaria a aplicação da mutatio libelli,) e sim para subtrair situações do fato descrito, resultando tal supressão na mudança de classificação jurídica.

Imaginemos a situação quase contrária ao exemplo anterior. Tem-se uma denúncia com imputação do crime de roubo, porém, no curso da instrução, prova-se que não houve violência ou grave ameaça na conduta do agente. Logo, poderá o juiz proferir sentença condenatória pelo crime de furto, desclassificando, dessa forma, o crime descrito na denúncia.

Tal possibilidade é aferida pela idéia de que aquele que se defende do crime de roubo, automaticamente se defende do crime de furto, já que o último está contido na descrição do primeiro. Assim como confere Greco Filho (2009, p. 308): “uma infração menos grave está inteiramente contida numa mais grave que foi objeto da acusação”.

Finda a fase instrutória, no momento de prolação da sentença, constatada a hipótese de cabimento da emendatio libelli, o juiz proferirá decisão condenatória de crime com definição jurídica diversa da imputada na peça inicial.

Contudo, algumas situações peculiares podem surgir no processo. São os casos dos §§ 1o e 2o do art. 383 do CPP:

§ 1o Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

 Se o crime para o qual ocorreu a desclassificação da condenação, através da Emendatio Libelli, possuir pena mínima abstrata igual ou inferior a um ano, poderá ser aplicado o disposto no art. 89 da Lei 9.099/1995. O magistrado noticiará a desclassificação, mas, antes de se manifestar acerca da condenação ou absolvição, deverá facultar vista ao Ministério Público em relação à possibilidade de aplicação da sursis processual ao acusado e, posteriormente a este último, para dizer se da aceitação ou não da suspensão condicional do processo.

Tal posicionamento encontra alicerce na súmula no. 337 do STJ, a qual diz ser cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.

A partir daí poderá seguir-se dois caminhos. Poderá o Ministério Público, fundamentadamente, entender não ser caso de aplicar-se a suspensão condicional do processo, retornando os autos ao magistrado que poderá discordar ou concordar com a posição do Parquet. Se discordar, os autos serão encaminhados ao Procurador-Geral de Justiça, em acordo com o art. 28 do CPP.

Se concordar, poderá então prolatar sentença de condenação ou absolvição. Igualmente pode haver hipótese de, depois da concordância do Ministério Público, o réu não aceitar a proposta de sursis. Também aqui os autos retornarão ao juiz para que este prossiga sua decisão quanto à condenação ou absolvição do réu. Por fim, concordando tanto o Parquet quando o acusado, o processo então poderá ser suspenso.

Outro aspecto a ser tratado diz respeito à possibilidade de a desclassificação gerada pela Emendatio implicar em modificação de competência do juízo. Diante desta suposição o magistrado realizará a desclassificação, entretanto sem valer-se de juízo de condenação ou absolvição.

Sua fundamentação se restringirá à tipificação do crime, logo tal pronunciamento pode ser caracterizado como uma decisão definitiva, e não como sentença em sentido estrito. Após o trânsito em julgado de tal decisão, o magistrado ordenará a remessa do processo ao juízo considerado competente, para que este sim dê prosseguimento ao feito (AVENA, 2009, p. 923).

 3  CONCLUSÃO

 A Emendatio Libelli corrige a peça inicial no tocante à classificação do crime, contudo sem gerar novos fatos além dos descritos na denúncia ou queixa.

A principal justificativa sobre a possibilidade de se estabelecer a Emendatio Libelli é de que o réu se defende dos fatos naturalísticos descritos na inicial e não do fato penal tipificado abstratamente.

O ordenamento legal consente a aplicação da Emendatio Libelli sem abertura de vistas ao Parquet ou ao acusado, entretanto parte da doutrina defende ser tal hipótese inconstitucional por violar os princípios do contraditório e da ampla defesa.

 A Emendatio Libelli assim reservada apenas ao momento da sentença implicará sempre uma surpresa para a defesa, a menos que se proceda a requerimento expresso do acusado, caso em que este assume a culpa do crime menos grave de que resulta da desclassificação. Em todo caso, se quando da prolação da sentença o juiz vislumbrar nova classificação jurídica do fato imputado, que determine rito processual mais amplo, deve converter o julgamento em diligência, possibilitando a manifestação das partes, como forma de garantir o regular processo, com respeito ao contraditório e à ampla defesa, e sob pena de nulidade.

 REFERÊNCIAS

 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2009, 1201 p.

 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 447 p.

 LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 2.

 NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 5ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 790-838;

 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 12. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 884 p.

 RANGEL, Paulo, Direito processual penal; ampliada e atualizada de acordo com as reformas processuais penais: leis 11.689/08 - Júri; 11.690/08 - Provas; 11.705/08 - Código de Transito Brasileiro; 11.719/08 - Emendatio e mutatio libelli e procedimentos; 11.767/08

 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 999 p.