1. INTRODUÇÃO

Face ao alto índice de acidentes de trânsito recorrentes nas malhas viárias brasileiras - atribuído em sua maioria à mistura de consumo de bebidas alcoólicas e a condução de veículo automotor - que vitimam milhares de pessoas anualmente, fez com que o legislador brasileiro editasse a lei 11.705/08, que trouxe alterações importantes e polêmicas no Código de Trânsito Brasileiro, no tocante às infrações administrativas e penais.
O código de trânsito brasileiro já previa que o agente que fosse flagrado conduzindo veículo sob influência de álcool ou substância análoga, seria apenado administrativo e penalmente, porém, uma das novidades introduzidas no referido código, implementada pela lei 11.705/08, se refere à quantificação de álcool no sangue, para que o agente seja considerado infrator na esfera penal.


2. Princípio da Legalidade

A função precípua da legalidade penal, poder ser definida com uma garantia dada ao homem contra o Estado, ou seja, corresponde a uma aspiração básica e fundamental do homem, de ter uma proteção contra qualquer forma de abuso ou arbítrio dos detentores do exercício do poder, capaz de lhe garantir a convivência em sociedade, sem o risco de ter sua liberdade cerceada pelo Estado, a não ser nas hipóteses previamente estabelecidas em regras gerais, abstratas e impessoais.
Deduz-se desse princípio que somente haverá crime quando existir perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão legal, ou seja, só há crime nas hipóteses taxativamente previstas em lei.

3. Taxatividade

A lei penal deve ser precisa, uma vez que um fato só será considerado criminoso se houver perfeita correspondência entre ele e a norma que o descreve, por essa razão, ela delimita uma conduta lesiva, apta a pôr em perigo um bem jurídico relevante, e prescreve-lhe uma consequência punitiva. Ao fazê-lo, não permite que o tratamento punitivo cominado possa ser estendido a uma conduta que se mostre aproximada ou assemelhada. É que o princípio da legalidade, ao estatuir que não há crime sem lei que o defina, exigiu que a lei definisse (descrevesse) a conduta delituosa em todos os seus elementos e circunstâncias, a fim de que somente no caso de integral correspondência pudesse o agente se punido.
Esse princípio implica que, para ser plenamente atendido, não basta a existência de uma lei incriminadora em sentido vago, devendo o legislador, na previsão de delitos, determiná-los por meio de tipos penais, descrevendo-os de modo certo e inconfundível.
Admitida a tipicidade como exigência da legalidade penal, conclui-se que em matéria criminal não pode o legislador utilizar-se de fórmulas genéricas, que não permitam ao destinatário da lei o pleno conhecimento da matéria de proibição.
O artigo 5º, Inciso XXXIX, CF/88, outorga à lei a relevante tarefa de descrever os crimes, de forma detalhada, delimitando, em termos precisos, o que o ordenamento entende por fato criminoso.
O tipo exerce função de garantia, pois ele é resultante do princípio da reserva legal, desta forma, há de ser preciso para que a ação seja bem identificada.
Destarte, os fatos cuja incidência estão previstos na esfera penal, regem-se, antes de tudo, pela legalidade estrita e tipicidade.

4. Infração Penal na Legislação de Trânsito

Ver-se que o legislador não foi feliz quando alterou o artigo 306 do C.T.B., quantificando o teor alcoólico por litro de sangue, ou seja, restringindo a interpretação do artigo à literalidade do preceito primário, sendo, portanto, necessária para a constatação do ilícito penal, 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, o que não ocorria com o mesmo artigo antes da alteração provocada lei 11.705/08, senão vejamos o dispositivo legal anterior do código de trânsito:
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."
Como se verifica, não era exigível quantificação alguma, bastando para a configuração do delito, que o agente estivesse sob influência de álcool e expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. O legislador, não delimitou a grandeza da concentração de álcool no sangue, vez que exigia além da constatação patente da embriaguez, a condução do veículo fosse anormal e com exposição a dano potencial.
Destarte, observa-se que não existia determinação ou exigência típica certa relativamente à dosagem de álcool, a prova poderia ser produzida pela conjugação da intensidade de embriaguez, sendo possível o exame de corpo de delito indireto ou supletivo , sempre, evidentemente, que impossibilitado o exame direito. Logo, por exemplo, um simples exame clínico poderia atender a exigência legal.
Entretanto, com a inserção da quantidade mínima exigível e com a exclusão da necessidade de exposição de dano potencial, delimitou o legislador o meio de prova admissível. Doravante, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue, o que, por óbvio, não se pode presumir. Vejamos o atual dispositivo legal, após a alteração:
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo."
A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o preceito primário do artigo 306 do C.T.B., exigindo para sua incidência, seis decigramas de álcool por litro de sangue.
A ausência, portanto, dessa comprovação por meio técnico, impossibilita precisar a dosagem de álcool e, em conseqüência, inviabiliza a necessária adequação típica, o que se traduz na impossibilidade da persecução penal.
Nesse particular, correspondem verdadeiramente as considerações de Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel, quando afirmam que:
"(...) em razão da atipicidade do fato (dirigir sob efeito de álcool, por si só, não é crime; crime é conduzir veículo como mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue)."
O parágrafo único do mencionado artigo, delegou ao Chefe do Poder Executivo Federal, a prerrogativa de estipular a equivalência entre os diferentes exames de alcoolemia (exame de sangue e bafômetro), uma vez que o caput, trouxe somente a prescrição do exame de sangue medido em decigramas.
O Decreto nº 6.488, de 19 de junho de 2008, regulamentou a equivalência conforme acima mencionada:
"Art. 2o Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei no 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte:
I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou
II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões."
Com base na regulamentação do decreto acima, se o teste realizado por meio do etilômetro, mais conhecido por bafômetro, for constatado teor alcoólico igual ou superior a 3 (três) décimos de miligrama de álcool por litro de ar expelido dos pulmões, equivalerá a 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue. Com isso, será considerado ilícito penal passível das sanções previstas no preceito secundário do artigo 306 do C.T.B. Levando-se em consideração que ninguém está obrigado a produzir prova contra si, o agente que for flagrado conduzindo veículo com sintomas de haver ingerido bebidas alcoólicas, não está obrigado a se submeter aos exames técnicos para constatação da embriaguez, tornando impossível a configuração do delito. E, por mais meticulosa e atenta que seja uma testemunha, ela jamais poderá afirmar que o motorista se encontrava ? ou não ? com o nível de concentração de seis decigramas álcool no sangue. Ou, por mais competente e preciso que seja o médico, é impossível ele assegurar, com base em um exame clínico, que o motorista possuía teor alcoólico previsto na legislação de trânsito.

5. Infração Administrativa no Trânsito

Mesmo não atingindo o teor alcoólico de 6 decigramas por litro de sangue ou o agente se negar a se submeter aos exames de alcoolemia, o mesmo poderá ser penalizado administrativamente, conforme o artigo 276 do Código de Trânsito Brasileiro, alterado pela lei 11.705/2008, in verbis:
"Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código."
Artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro:
"Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração ? gravíssima;
Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;
Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação."
O art. 276 foi modificado para adotar uma política de "alcoolemia zero", em termos de uso de bebida alcoólica pelo condutor de veículo automotor. Esta foi a alteração mais significativa.
6. Entendimento Jurisprudencial

STJ - HABEAS CORPUS: HC 166377 SP 2010/0050942-8
Resumo: Habeas Corpus. Trancamento da Ação Penal. Embriaguez ao Volante. Ausência de Exame de
Alcoolemia. Aferição da Dosagem que Deve Ser Superior a 6 (seis) Decigramas. Necessidade.
Elementar do Tipo.
Relator(a): Ministro OG FERNANDES
Julgamento: 10/06/2010
Órgão Julgador: T6 - SEXTA TURMA
Publicação: DJe 01/07/2010

Ementa
1. Antes da edição da Lei nº 11.705/08 bastava, para a configuração do delito de embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem.
2. Entretanto,com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas.
3. Essa comprovação, conforme o Decreto nº 6.488 de 19.6.08 pode ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como bafômetro.
4. Cometeu-se um equívoco na edição da Lei. Isso não pode, por certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e tipicidade.
5. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue.
6. Ordem concedida.

TJDF - APR: APR 555332820078070001 DF 0055533-28.2007.807.0001
Resumo: Penal e Processual Penal. Embriaguez ao Volante. Absolvição. Ausência de Prova Técnica da Dosagem Etílica. Imprestabilidade da Avaliação Clínica. Sentença Confirmada.
Relator(a): GEORGE LOPES LEITE
Julgamento: 05/08/2010
Órgão Julgador: 1ª Turma Criminal
Publicação: 18/08/2010, DJ-e Pág. 112

Ementa
1. Réu acusado de infringir o art. 306 do código de trânsito brasileiro, eis que conduzia veículo em ziguezague, abalroou outro carro que trafega em sentindo contrário e prosseguiu sua marcha perigosa. Acionada a polícia, foi o réu conduzido à delegacia, aonde a autoridade policial fê-lo conduzir a exame no instituto médico legal, onde o estudo clínico constatou a embriaguez, sem a prova efetiva da dosagem etílica no sangue, o que levou à absolvição por ausência de circunstância elementar do tipo.
2. A nova descrição legal exige a presença mínima de seis decigramas de álcool por litro de sangue para configurar-se a figura típica e a falta da prova deste elemento objetivo implica a atipicidade da conduta.
3. O Artigo 5º, Inciso XL, da Constituição Federal, e o Artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, consagra o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
4. Apelação desprovida.

7. Considerações Finais

A cada ano no Brasil, ocorrem mais de 35 mil mortes no trânsito. Um índice alarmante de acidentes com vítimas fatais, talvez por essa razão o legislador tentando dá uma resposta à sociedade, editou a lei 11.705/2008, que alterou o código de trânsito com o intuito de penalizar criminalmente o condutor que for flagrado conduzindo veículo automotor sob efeito de bebidas alcoólicas, porém, quando houve a quantificação do teor de álcool no sangue, inserta no dispositivo 306 da legislação de trânsito, verificou-se dois entraves: a necessidade de se aferir com o exame de sangue ou etilômetro, bem como a faculdade (não obrigatoriedade) do condutor a se submeter aos testes, tendo vista que ninguém é obrigado a produzir prova com si mesmo. Destarte, a legislação ainda precisa de uma reformulação, no tocante aos meios de prova para a consequente ação penal, tal seja, o exame clínico realizado pelo médico legista, faria com que a lei tivesse uma aplicabilidade maior.

8. Referências bibliográficas

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11681 - Embriaguez zero ao volante, infração de trânsito e penalidades administrativas.Comentários aos arts. 165, 276 e 277 do CTB. - João José Leal - Ex-Procurador Geral de Justiça de Santa Catarina e Promotor de Justiça aposentado. Professor do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica ? CPCJ/UNIVALI. Rodrigo José Leal Mestre em Ciência Jurídica ? UNIVALI. Doutorando em Direito ? Universidade de Alicante. Professor de Direito Penal ? UNIVALI e UNIFEBE.
http://jus2.uol.com.br - CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E ATIVISMO PUNITIVISTA DO STJ (PARTE 1 e 2) - LUIZ FLÁVIO GOMES e Silvio Maciel (Mestre PUC-SP).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm.
FERNANDES, Og., Jurisprudência. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. nº 36, jun-jul/2010.
SANTORO FILHO, Antônio Carlos, Fundamentos de Direito Penal ? Introdução Crítica, Aplicação da Lei Penal, Teoria do Delito, Ed. Malheiros, Ano 2003.
CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal ? Parte Geral, Vol. 1, Ed. Saraiva, 11ª Edição, ano 2007.