"A carreira militar não é uma atividade inespecífica e descartável, um simples emprego, uma ocupação, mas um ofício absorvente e exclusivista, que nos condiciona e autolimita até o fim. Ela não nos exige as horas de trabalho da lei, mas todas as horas da vida, nos impondo também nossos destinos. A farda não é uma veste, que se despe com facilidade e até com indiferença, mas outra pele, que adere à própria alma, irreversivelmente para sempre”

general Octávio Costa

 

"sempre haverá uma Justiça Militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das armas, não estando pois em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas".

ministro Moreira Alves



Pode ser que o título deste singelo artigo não represente o que ele, de fato, pretende: um esforço para reconhecer a eficácia que a Constituição de 1988 empresta à Jurisdição Militar (CF 124) e, sabemos, a competência é a medida da jurisdição. Boas razões há nisso. E fiquemos, apenas, com duas. A primeira e mais relevante, o fiel cumprimento do que preceituou o legislador constituinte originário; e, a segunda, mais pragmática, a otimização de recursos do aparelho judiciário (MPF e MPM, inclusive), com vistas à celeridade processual, ao combate à impunidade por prescrição etc.

Bom seria, de início e sempre que fôssemos deliberar quanto à competência de a Justiça Militar julgar e processar este ou aquele caso, adotássemos ideário desarmamentista, falto de arrivismo no que se refere à jurisdição militar, empenhado por superar “vetustas” decisões outrora consagradas (malgrado não mais consentâneas com a vigente ordem constitucional). Bom seria, assim, reorganizássemos as ideias acerca do que se convencionou - com elevado grau de subjetivismo, por “sujeitar o civil em tempo de paz à jurisdição militar”; por outro lado, nos despojássemos de histórico rancor. Sim. Tal rancor faz com que muitos vejam jurisdição e competência da Justiça Militar qual espúria forma, quiçá anômala, de julgar “civis”, como se essa Justiça especializada  não integrasse o Poder Judiciário. Contudo, “eppur si muove”.

De fato, há, na História, latente repúdio às injunções militares na vida civil. Nada obstante, impossível esquivar-nos da nova arquitetura constitucional com talhe democrático e civilizatório que, para além de tratar crime militar “ratione materiae”, recebe o Código Penal Militar – CPM - (Decreto-Lei n. 1.001 de 21 de outubro de 1969) e o Código de Processo Penal Militar – CPPM – (Decreto-Lei 1002 de 21 de outubro de 1969), naquilo que lhe não contrarie, como leis ordinárias hábeis ao regramento a que, então, se predispõem.  Tudo isso quer significar que o legislador constituinte deliberou que a Justiça Militar não mais seria foro privilegiado de militares, mas, sim, instância especializada que julgaria e processaria todos quanto ferissem normas de Direito Penal Militar, independentemente do “status” dos agentes.

Boa doutrina constitucionalista – e jurisprudência – apregoam, não sem razão, inexistir princípios absolutos. Perante isso, o legislador sopesa interesses a tutelar e legisla para efetivar a garantia almejada, ou a subsistência de direitos. Falhas há e a hermenêutica deve acodi-las. Por isso as “justiças” especializadas – Eleitoral, Trabalhista e Militar. Daí, a relevância ímpar do Princípio da Proporcionalidade (o caríssimo Verhältnismäßigkeitsprinzip do Direito Constitucional tedesco). Mencionemos,  por arrimo, o HC 106.073 de relatoria de CÁRMEN LÚCIA, 1ª. T., STF,  j. 8.2.2011,  ementado nos termos seguintes:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL MILITAR. PACIENTE DENUNCIADO POR INFRAÇÃO DO ART. 290, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL MILITAR.

1. A posse, por militar, de substância entorpecente, independentemente da quantidade e do tipo, em lugar sujeito à administração castrense (art. 290, caput, do Código Penal Militar), não autoriza a aplicação do princípio da insignificância.

O art. 290, caput, do Código Penal Militar não contraria o princípio da proporcionalidade e, em razão do critério da especialidade, não se aplica a Lei n. 11.343/2006.

2. Ordem denegada.

 Aclaremos: o que, no mundo “paisano”, pode ser tido por crime de pequeno potencial ofensivo, mera contravenção penal, delito sujeito à incidência dos princípios da Insignificância e da Bagatela, não tem nem a mesma medida, nem a mesma carga axiológica em arena mavórcia. O ingresso de ínfima porção de maconha ou de cocaína, por exemplo, em quartel (ou qualquer local sujeito à administração militar) ou, então, na posse de militar, jamais poderia ser valorado por “insignificante” a ponto de receber isonômico tratamento penal conferido àquele da comparte ordinária. Do mesmo modo, p. ex., militar que cometa crime sexual contra menor, em local sujeito à administração militar, não pode furtar-se às consequências de ver-se processado e julgado na Especializada. Isso é conduta grave, censurável, vedada em normas castrenses. E tanto que não é tratada na parte das transgressões disciplinares militares. É que a base por sobre a qual se erigem as Forças Armadas e, logo, o Direito Penal Militar, é a disciplina (e a hierarquia). Conceitos quase insuperáveis, senão de difícil aquilatar, para quem não lida com a questão. A disciplina militar não é tal qual a que se vê no meio civil. O militar é cidadão a quem a própria Carta Magna priva de certos direitos e garantias. Ele sujeita-se às prescrições de sua Arma e das leis e regulamentos militares vinte e quatro horas por dia, onde quer que esteja, em serviço ou não. Ele tem, com o estado, vínculo jurídico absolutamente “sui generis” que não configura nem “relação de trabalho”, nem “relação de emprego” (locuções justrabalhistas de escopo bem definido na doutrina) e deve estar disponível ininterruptamente, inclusive por juramento da própria vida. Observemos o tratamento especial até na legislação de processo civil, com a existência de “domicílio militar”.

Por ilustração, leiamos o que diz a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho – OIT de 1930:

Artigo 2º

1. Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

2. A expressão "trabalho forçado ou obrigatório" não compreenderá, entretanto, para os fins desta Convenção:

a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente militar,

b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas comuns de cidadãos de um pais soberano,”

Também, não poderíamos nos esquecer de que, na atualidade, a Justiça Militar não é tribunal de exceção (houve deles, por aqui, na “era” Vargas) e integra, sim, o Poder Judiciário do Estado brasileiro (CF 92, VI). Pior, ainda, alguns censuram o escabinato, dizem que é forma estranha de julgar civis. Todavia, o que se dizer do Tribunal do Júri, com juízes leigos? A jurisdição castrense, de tal modo concebida, não oblitera o princípio do juiz natural (embora “sorrateiramente” invocado em decisões quejandas para fazer cessar a competência constitucional da JM) desde que atendidos os pressupostos de validez de seu exercício. Ora, essa validez somente se concretiza mediante estrita observância da CF88 e do CPM sem qualquer remissão à pretérita legislação  ou à súmula forjada em tempos de promíscua convivência institucional (o poder Executivo dava as cartas, o Legislativo fingia legislar e o Judiciário aquiescia com quase tudo).

Outra presença assaz indesejável em matéria de diretriz jurisprudencial, muita vez impediente de amplo exercício da Jurisdição Militar na atualidade, é a persistência da anacrônica Súmula 298, editada nos albores do regime ditatorial, mais precisamente em 13 de dezembro de 1963. Verbete semi-secular, aliás, que por total incompatibilidade com a novel Constituição deveria ser defenestrado do repositório do excelso Tribunal. Explicamos: como pode mera súmula do Supremo Tribunal Federal determinar ao legislador o que ele deve fazer? Pois muito bem. Isso é, exatamente, o que temos, às escâncaras, naquele famigerado verbete:

Legislador Ordinário - Sujeição à Justiça Militar - Tempo de Paz - Crimes Contra a Segurança Externa ou às Instituições Militares

O legislador ordinário só pode sujeitar civis à Justiça Militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do país ou às instituições militares.

Curiosamente, por debaixo de pretenso pálio garantista, aqueles que se valem desse nefasto enunciado sumular à guisa de lume intelectual parecem desconhecer que, cronologicamente, ele nasceu, em época fascista, do art. 88, “i” do Decreto-Lei 925 de 2 de dezembro de 1938, ultrapassado Código de Justiça Militar decretado por Vargas; e, do art. 108, § 1º. da Constituição de 1946, que, respectivamente, rezavam (destaques nossos):

Art. 88. O foro militar é competente para processar e julgar os crimes definidos em lei como militares:

(...)

i) os civis, nos crimes definidos em lei que atentem contra a segurança externa do país ou contra as instituições militares;

Art 108 - A Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são, assemelhadas.

§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos, expressos em lei, para a repressão de crimes contra a segurança externa do País ou as instituições militares.

Iteremos, uma vez mais, que, com o advento da CF88 não há margem para exercício de subjetivismo na prolação de decisões quanto à precisa determinação da competência da Justiça Militar. Logo, só há dois diplomas a que o aplicador do direito deve reportar-se e fustigar para fundamentar-lhe a dicção jurisdicional nesse sentido: a Constituição de 1988 e o Código Penal Militar. Trata-se de atividade vinculada e eminentemente objetiva.  Nada de súmula anacrônica, nada de subjetivismo (“id est”: “perquirir” se houve ofensa às instituições militares com a conduta do delinquente etc.), sob pena de menoscabar e vilipendiar preceito constitucional; e, por consequência,  apequenar a especializada Justiça Militar, bem como inchar a Justiça ordinária, privilegiando a prescrição,  tudo isso a um só tempo.

Parece-nos, derradeiramente, que melhor seria, “incontinenti”, propor o cancelamento daquela malfadada, famigerada, dissonante, anacrônica Súmula: ela não se sustenta, não há aprumo em seu teor, não mais ostenta arrimo constitucional, nem intelectual a ponto de  persistir incólume no repositório jurisprudencial do STF.