Em Plena Noite de Réveillon.
Silêncio. Escute... Ouça o farfalhar das asas... Ela está vindo... Não há palavras, não há som... Nenhum som além do som das batidas desesperadas do coração que pressente impaciente a sua chegada. Escute... O dia está amanhecendo.... E o sol já vem despontando no horizonte... Ela entra pela janela e senta ao lado da cama. O peito dói, os olhos ardem... Olhe! Olhe! Lá em cima, tremulando no céu, bandos de aves marinhas voando do norte para o sul... Não são essas as mesmas aves que ontem à noitinha vieram do sul para o norte? Deus! Não são aves marinhas, essas aves! São aves de rapina... Abutres... Não trazem notícias de lugar nenhum... Vieram espiar os últimos momentos de um homem agonizante...
***
Ele está com sede... Ao lado da cabeceira da cama, em cima de uma mesinha, está um frasco de comprimidos e um copo d?água. Num esforço hercúleo ele estende lentamente a mão trêmula e pega o copo d?água.... Um ataque tosse o surpreende no momento em que ele leva o copo à boca... Raspa a garganta, cospe no chão, limpa o muco da boca malcheirosa na manga da camisa... Respira fundo... O peito dói dando pontadas profundas na carne envelhecida prematuramente... Parece que seu coração vai explodir a qualquer momento. Pousadas na soleira da janela as aves de rapina o olham impassíveis, esperando... Ele as enxota, mas elas não vão embora. Seriam aves mesmo, aqueles vultos medonhos que ele via dançar diante de seus olhos injetados de sangue?

Joga alguns comprimidos na boca e bebe um gole de água por cima. Recoloca o copo em cima da mesinha e fica olhando para o criado-mudo. Um riso estranho, misto de cinismo e dor brota de seus lábios... A hora havia chegado. Estende a mão, abre a gaveta e toca o aço gélido da arma... Um calafrio corre pelo seu corpo; o calafrio da certeza de que ele está agora a um passo de ultrapassar aquele ponto de onde não há mais retorno... Toma a arma cuidadosamente em suas mãos. É uma arma antiga... A mesma que há muito tempo atrás seu pai havia usado para estourar os miolos... Ele verifica o tambor... A arma está como nova. Fui usada só uma vez, disparou um único tiro em toda a sua existência... Um tiro fatal.

Muitos anos já havia se passado desde aquele dia... Ele estava agora com 40 anos, mas aparentava ter muito mais... A bebida, as infinitas noites insones, as amarguras e decepções sucessivas da vida fizeram com que ele envelhecesse dez anos em um... Muitas coisas haviam acontecido desde então... Muitos demônios haviam se apossado da alma dele, mas a todos ele exorcizara... Contudo, nunca esqueceu aquele dia... Estava só ele e o pai em casa. Ele estava vendo TV, quando de repente escutou um estampido seco e em seguida ouviu o som de um corpo caindo... Um gosto estranho de sangue se lhe misturava à saliva quando ele pensava naquele dia. Ele em pé diante do corpo ensangüentado do pai, caído no meio de uma poça de sangue quente... O cheiro do sangue, os olhos arregalados do pai morto olhando para ele, como que querendo falar alguma coisa... Ah aqueles olhos vidrados! Como esquecê-los?

Os olhos são uma coisa curiosa, não mudam nunca, são os mesmo desde a infância até a velhice, ou até a morte. A face muda, cresce, estica, repuxa, arredonda-se, murcha, enruga, resseca e fica toda manchada; a voz também muda, muda também o corpo, e muda também os modos de pensar e agir. Mas os olhos, esses não mudam nunca, são sempre os mesmos através dos anos, e talvez até através da eternidade.
Ao longo dos anos a imagem do seu pai foi desbotando pouco a pouco até praticamente sumir da alma dele... Mas aqueles olhos... Deus meu! Era como se os estivesse vendo sempre do mesmo jeito, ali, agora, sempre os mesmos olhos desesperados, sempre o mesmo pedido de socorro...
Ele mesmo, já tão envelhecido prematuramente, quando se olhava no espelho, seria capaz de jurar que o reflexo triste que ele via todas as manhãs, não era ele. Mas ele sabia que era ele mesmo que estava lá, escondido dentro de si mesmo, a olhá-lo acusadoramente através do espelho. E sabia isso por causa dos seus olhos... Os mesmos olhos denunciadores de sempre...
Só muito vagamente ele se lembrava de ter visto a cabeça de seu pai levemente tombada para o lado, inerte, morta... Mas os olhos... Os olhos e a arma ainda presa entre os dedos suicidas... Isso ele nunca conseguiu esquecer... Aquela mão morta, crispada pelo desespero, segurando molemente a arma que a matou, como se quisesse impedir a loucura no último instante, sempre esteve diante de seus olhos... A mão, os olhos e a arma...

A mesma arma que agora ele tinha em suas mãos... Colocou a arma em cima do colchão. Acendeu um cigarro e deu uma longa tragada... Em seguida foi acometido por um barulhento acesso de tosse... Olhou mais uma vez para a arma. Lá estava ela... Demônio em forma de aço frio e reluzente, sedutora, lubrificada e pronta para ser usada...

Os pássaros na janela piaram inquietos ? Seria pássaros mesmo, aquilo, aquelas sombras? Uma lufada de vento frio entrou pela janela trazendo em seus braços gélidos, um demônio que lhe sussurra aos ouvidos palavras desafiadoras que lhe encheram a alma de desespero... O que está esperando? Diz o vento. Até quando vai continuar esperando pelo amor daquele Deus que ignora suas orações?

A arma parece brilhar no escuro... Ele toca-a novamente com as pontas dos dedos e uma vez mais sente o arrepio do aço gélido correr-lhe a alma, cortando-lhe as carnes, feito uma navalha... Ele estremece de alto a baixo... Certamente que havia ultrapassado o fatídico ponto sem retorno. A morte entrara pela escuridão do quarto, caminhara até ele e sentara ao lado da sua cama... Retornaria aquele demônio para casa de mãos vazias? Ela nunca tinha chegado tão próxima antes. Teria ele cruzado realmente aquele ponto de onde não há mais retorno? Ele aperta a arma junto ao peito dolorido...

Como uma mãe que consola o filho que sofre, e insiste para que ele sorva, sem vomitar, o remédio amargo que curará sua doença, o Demônio uma vez mais cochicha em meus ouvidos: Porque não usá-la agora? Por que não acabar com isso de uma vez por todas? Coragem homem! Se homem! Sua cabeça parece que vai explodir... Não! Ele grita de repente. Não! Não! E joga a arma em cima da cama novamente. Não! Seus olhos estão marejados de lágrimas... E ele chora um choro há muito tempo reprimido...

Vencido pelo cansaço ele cochilou alguns minutos. Talvez tenha sonhado... Talvez estive sonhando quando de repente um estrondo seguido de um clarão que iluminou por breve instante a escuridão do quarto, explodiu no céu, lá fora. Sua cabeça latejava de dor... Ele olhou ao redor, demorando pára entender o que estava acontecendo... Lá fora as explosões de fogos e luz multicoloridas seguiam-se umas às outras.

Com grande esforço, ele rolou sobre si mesmo, estendeu as mãos e pegou o relógio, um velho rolex de aço polido, em cima da mesinha, e tentou olhar as horas, mas o quarto estava escuro e ele estava sem seus óculos... Tentou encontrá-los tateando em cima da cama, mas não os encontrou, nem se lembrava onde os tinha deixado. Talvez os tivesse deixado na sala, em cima do sofá, mas não tinha certeza... Forçou as vistas, aproximou o velho relógio dos olhos, ouvi o tic-tac da máquina, mas não conseguiu ver os ponteiros... Novamente o céu explodiu numa cascata de luzes coloridas.
Aproximou bem o relógio dos olhos, forçou as vistas, e pareceu-lhe que eram 23 horas, mas não tinha certeza... Que estranho... 23 horas... Mas momentos antes ele era capaz de jurar que o dia estava amanhecendo... A janela onde antes ele vira aquelas aves estava fechada... Lembrou-se da arma em cima da cama. O quarto estava escuro. Tateou a cama procurando-a. Não a encontrou. Olhou para o criado-mudo, abriu e enfiou a mão dentro da gaveta... Lá estava a arma, enrolada num pedaço de flanela. Certamente que tinha sonhado.
Sentou-se na cama, e ficou pensativo, arrastando os pés no piso frio, procurando os chinelos, mas não os encontrou. Enquanto fazia isso seus olhos se fixaram na tênue sombra da caixinha de medicamentos ao lado do copo de água... Desviou os olhos. Já estava cansado de viver dopado. Já estava enojado dessa felicidade em forma de comprimidos... E, além disso... De repente se lembrou, Era noite de réveillon! Noite de Réveillon... Deus ele tinha dormido! Era noite de réveillon... E ele estava só em casa... Lá fora os fogos não paravam de explodir... Em outros tempos uma hora dessas a casa estaria cheia de gente, crianças correndo de um lado para outro... Gente bebendo, se abraçando... As lágrimas ameaçaram inundar-lhe os olhos, mas logo ele as secou com a manga da camisa. Melhor não pensar nisso, não agora. Porque hoje é noite de réveillon...
Agachou-se ao lado da cama e correu a mão embaixo dela, procurando os chinelos. Calçou-os e foi caminhando lentamente para o banheiro, mas por alguma razão, fez meia volta e foi para a sala, pegou os óculos que estavam jogados em cima do sofá, ao lado de um livro, e de lá foi para a varanda. Acendeu outro cigarro e ficou olhando a multidão que se formava lá embaixo, na areia da praia. Sua face estava dura e insensível, os olhos não tinham brilho... Estava se sentido mal, não necessariamente desanimado, apenas não se sentia bem, e isso já fazia alguns dias, na verdade fazia alguns meses, um ano ou mais, talvez, não sabia precisar com absoluta certeza quando foi que começara a sentir aquela angustia... Muito menos era capaz de precisar a causa dela... Tudo que ele sabia é que estava doente, não do corpo, mas ainda assim, estava doente, muito doente, e não sentia a menor vontade de se curar... Sua enfermidade estava alojada em algum lugar além da sua mente, não no cérebro, pois este ainda é corpo, como os braços e pernas, mas na mente, ou além dela, na consciência, na alma ou no espírito, seja lá o que isso for...
Tinha quarenta anos de idade, era forte; não era bonito, mas também não era feio, estava em algum lugar entre a feiúra e a beleza, mas não num equilíbrio perfeito entre as duas, de modo que às vezes se achava feio, outras vezes se achava bonito... Num passado não muito distante tinha sido um homem bonito. Ainda hoje, em certos dias, depois de uma boa noite de sono, achava-se um homem muito bonito... Mas já fazia muito tempo que não dormia uma boa noite de sono. Riu um riso de zombaria.
Podia ter tido muitas mulheres... Sim, podia. Ele via como elas olhavam para ele na rua e no trabalho. Uma vez, só uma vez, quase aconteceu... Ela era mulher de um político importante... Era linda, madura, perfeita, inteligente, corpo no lugar, apesar da idade... Ela era uns anos mais velha que ele, mas não muitos, apenas alguns anos... Deus, como ele desejou aquela mulher, como a quis, e sabia que era desejado também. Que cabelos! Que olhos! Que sorriso! Ele a podia ter tido na hora que quisesse, quantas vezes quisesse, do jeito que quisesse... Mas não teve. Queria, era querido, mas mesmo assim não teve coragem de tê-la... Porque não a teve? Não sabia dizer por quê. Talvez pela mesma razão porque não dava um tiro na boca e punha logo um fim nisso... Não que se arrependesse de não a ter tido, não era isso, não era uma questão de arrependimentos, no fundo ele sabia que agira certo se afastando dela... Ela era casada. Mas de alguma maneira que ele não conseguia explicar, sentia-se como se no quebra-cabeça da sua história estivesse faltando uma peça fundamental que ele bem sabia, jamais teria como conseguir de novo. Sua história seguiria até o fim com esse buraco, essa vontade de ter tido, sem nunca ter tido. Agora era tarde... O tempo passara... Riu de novo se lembrando daquele ridículo jogo de palavras muito usado pelos místicos da Idade Média: Quando eu podia não queria, quando eu não podia queria... Mas na hierarquia das peças do quebra-cabeça de sua história, não era essa a única peça que faltava... Havia outras faltas, outras faltas irreparáveis...
Lá embaixo a multidão não parava de crescer. Vindo de todos os cantos aquela gente se amontoava na areia, procurando um lugar melhor para ver a queima de fogos. Da varanda do décimo andar do seu apartamento ele as olhava com indisfarçável desprezo...
Quantas mulheres daquelas lá embaixo, ele poderia ter se ele se misturasse àquela gente? Ele se perguntou... Talvez nenhuma... Teve duas mulheres em toda a sua vida. Era estranho isso, pois conhecia homens feios, que não tinham um décimo do conhecimento e do papo dele, que saiam direto com um monte de mulher bonita... Alguns, não muitos, um ou dois, três no máximo, diziam que saíam de uma vez só com duas, e até três... E contavam isso com orgulho, com brilho nos olhos, o mesmo brilho, ele imaginava, que havia nos olhos do homem da caverna que saia pra caçar e voltava pra casa com um precioso troféu... Ele nunca fora homem da caverna, por isso só tivera duas em toda a sua vida. Podia ter tido mais, não que se arrependesse de não ter tido, mas podia ter tido. Talvez devesse ter sido mais homem da caverna, talvez devesse ter sido mais homem, talvez devesse ter sido menos puro, menos santo... Talvez devesse descer a se misturar à multidão lá embaixo...
Olhou o relógio, faltavam vinte minutos para meia-noite. Foi ao banheiro... Enquanto urinava seus olhos se fixaram no reflexo de um homem envelhecido a lhe olhar lá do outro lado do espelho... Um par de olhos injetados de sangue lhe observa com expressão triste e decepcionada, virou o rosto...
Voltou para o quarto, e num ato reflexo abriu a gaveta do criado-mudo e pegou a arma e ficou andando de um lado para outro com ela na mão. Estava fora de si, falando coisas sem sentido, rangendo os dentes... Era noite de lua cheia... Abriu a janela e puxou as cortinas para o lado, apontou a arma para a multidão lá embaixo, imitando o som dos disparos com a boca... Apontava, imitava o som de um disparo e dizia: Um... Apontava de novo e dizia: dois, apontava de novo e dizia: Três, quatro, cinco... E então recomeçava tudo de novo: Um, dois, três... Depois ria gargalhando. Ria e chorava... Sabia que não teria coragem de fazer aquilo...
***
Finalmente ele sentou-se no meio da cama e cruzou as pernas sobre o lençol branco... Enfiou o cano da arma na boca... Não era a primeira vez que fazia aquilo... Lá fora os fogos explodiam e iluminava o céu deixando um cheiro de pólvora queimada no ar... Um pensamento lhe surge na mente vazia: O primeiro passo em direção à vida eterna não é o morrer, mas o ressuscitar... Tocou a gatinho de leve, começou a puxá-lo, mas logo afrouxou o dedo... Era sempre assim, na hora H, faltava-lhe coragem para realizar o ato supremo... Não que tivesse medo da morte, pois não tinha... Se não puxava o gatinho era por pensar na família, nos amigos... Mas aquela era noite de réveillon... Olhou ao redor apontando para a casa vazia e disse para si mesmo: Cadê minha família? Cadê meus amigos? Então era por causa deles que ele não puxava o gatilho? Sim.. O que eles dirão se eu fizer uma barbaridade dessas? Um tiro apenas e tudo estaria acabado... Não tenho amigos, e estou tão longe da minha família... Quem se importará? Quanto tempo será que vai levar até alguém encontrar o corpo putrefato estendido sobre o lençol branco, encharcado de sangue coagulado, coberto de larvas e moscas? Ah meu Deus, eu nunca fui um homem corajoso...
Guardou a arma e tornou a se deitar... Queria dormir, mas não conseguiu dormir. Depois de um tempo, um sorriso melancólico, quase que involuntário, brotou em seus lábios ressecados... Era o sorriso de uma decisão tomada...
Pegou novamente a arma e fechou os olhos... Seu rosto estava em paz, seu coração batia tranqüilo... A alma já não estava mais presa às limitações do corpo... As limitações do tempo e do espaço foram todas transcendidas. Não havia mais medos ou preocupações.
Colocou a arma bem fundo dentro da boca, e puxou o gatilho até o fim... Num instante o dia foi interrompido entes do seu ocaso, e as trevas desceram mais cedo sofre a face da terra, e ele mergulhou para sempre na escuridão de uma noite eterna... Enquanto o corpo agonizava seus últimos instantes, ele abriu os olhos e olhou para cima e viu o abismo aberto sobre ele, e não havia estrelas no céu... As cortinas do palco da vida fora fechadas subitamente... Não houve aplausos para a peça que foi encenada pela última vez... O ator principal já não existia mais... Aquele dia nunca amanheceu. À meia noite ele desceu ao reino dos mortos... Murchou a rosa e secou-se pára sempre o roseiral, e morreu o jardim... Uma folha solitária caiu da árvore, e ninguém deu por falta dela... E já não há mais pássaros cantando ao amanhecer... A música cessou para sempre, e a vida tão ávida de vida já não existe mais... Um estampido ecoou ao longe... O corpo morto de um homem desconhecido caiu no meio da sarjeta, e lá ficou com a arma ainda fumegante em punho. Tudo agora é como era antes dele nascer, nada... Era como se ele nunca tivesse existido, como se nunca tivesse amado ou sido amado... Como se nunca tivesse sorrido, beijado uma mulher, feito amor ou brincado com seus filhos à beira-mar. As pessoas passavam olhando de longe, horrorizadas... Sentiam a sua morte mais que ele mesmo a sentira... Porque ele na vida não vivera, apenas existira, existira como a pedra que existe sem saber que existe... Também como a pedra que se desintegra sem saber que se desintegra ele desintegrou a própria existência sem nem ao menos se dar por isso... Tudo foi muito rápido e muito fácil... Um tiro na boca, um tiro no peito, um tiro na fronte... Um salto no vazio... Uma corda no pescoço... Um frasco de veneno de rato, uma overdose... Que diferença faz? É tudo tão fácil, tão rápido... Num instante ele era, no outro já não era mais... Morreu sem sentir que morreu, pois nunca tinha vivido.
O sangue encharcava o lençol e coagulava sob seu corpo... E ele deitado na cama delirava e sorria em seus instantes derradeiros... Sorria da própria morte... Viu-se deitado no caixão, rodeado por duas ou três pessoas que choravam... Ele ria do choro delas. Sua face estava calma, tranqüila e serena, parecia dormir um sono tranqüilo e doce... Não parecia estar morto, talvez pela primeira vez. Já as preocupações mundanas, os pecados, as vaidades, os tempos, as amizades, nem as boas nem as más, lhe esculpiam a face com cinzeladas de dor, angustias, ciúmes e ódios... Já não havia mais lembranças das mulheres que ele nunca amara... Finalmente o Adão expulso do Paraíso voltara a entrar pelas portas do Éden. O seu tempo havia passado, e com ele o mundo inteiro passara também e já não existia também.... A eterna mesmice do existir finalmente chegara ao fim... Cessara o interminável fluxo das gerações... Um estampido, um puxão no alto da cabeça e todo o fluir e refluir da vida fora estancado para sempre num instante de silêncio eterno... O sorriso em sua face morta não era o sorriso de um morto, não era um sorriso despropositado e sem graça... Ria talvez dos que estavam vivos, dos que não compreendiam seu ato supremo... Ria dos que jamais teriam coragem de seguir pelo mesmo caminho que ele seguira, afinal ele era filho de seu pai... Ria do ridículo dos seus orgulhos, das fadigas de suas vidas sem propósito, dos seus amores e das suas paixões vazias, ria de suas festas, dos seus adultérios, e dos seus prazeres e amores pervertidos...
Ouviu vozes de choro e orações... Ouviu palavras de conforto... Até que quatro homens de semblantes entristecidos, dois de cada lado, levaram em silêncio o caixão para o seu destino final. Finalmente! Ele gritou para si mesmo. Até que enfim! Mais orações. O caixão foi fechado e escuridão agora era tudo que havia para ele... Pensou no passado, mas as memórias não lhe vieram à mente. Ele sorriu de novo... Do que lhe serviram agora as lembranças dos seus dias felizes e infelizes? Já não havia memória de mais nada... Melhor assim.
Sozinho ? era como estar de novo no útero de sua mãe -, coberto de terra, abraçado pelo horrível espectro da morte, devorado por vermes insaciáveis, ela ainda sorria... Porque mais felizes são os mortos que os vivos... Porque ele não haveria de sorrir? Arrependimentos? Apenas um... O de não ter se entregado à loucura, ao vinho e aos prazeres e delicias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres... Mas todas as coisas têm seu tempo, e o tempo agora era de esquecer... Sorria porque o dia da sua morte foi mais feliz que o dia do seu nascimento... Amor, inveja, ódio, tudo perecera para ele, e ele para o mundo... Afastado foi do seu coração o desgosto e removido da sua carne a dor... Finalmente encontrara a paz que tanto desejara.
***
Lá fora o mundo comemorava a virada de mais um ano. Fogos multicoloridos iluminavam a escuridão da noite. As pessoas se abraçavam e se felicitavam... Namorados se beijavam e se amavam. Crianças sorriam... A multidão dançava ao ritmo alucinante de uma música qualquer... O tempo corria... Um ano morrera e outro acabara de nascer... Logo o dia também ia amanhecer... A vida seguia seu curso completamente indiferente ao estampido que havia ecoado na madrugada...
Finalmente as coisas começaram a voltar ao normal... A festa acabou e as pessoas foram para casa, dormir. Tudo voltara ser como sempre fora, a mesma mesmice...
Às seis e quinze da manhã o sol despontou no horizonte deixando diante de si, sobre as águas tranqüilas do mar, um rastro dourado... Lá em cima, no décimo andar, um raio tímido de sol entrou pala fresta da janela e brilhou em cima de um corpo inerte e pálido, que estava deitado em cima de uma poça de sangue coagulado, mas não se deteve, seguiu seu caminho pelo meio do céu, até que algum tempo depois a noite caiu novamente, o céu ficou nublado e começou a cair uma chuvinha fina... E naquela noite não havia ninguém na praia, nem fogos para iluminar o céu... O silêncio era tudo que existia... De vez enquando um bando de pássaros cruzava o céu silencioso. A vida seguia seu curso e tudo continuava a ser como sempre foi.