Elias e a pedra

(Joel Carlos Santana Santos – 07 e 26/10/2007)

Elias havia se desentendido pela primeira vez com seus pais. Era início de ano letivo e seus pais o obrigavam a ir à escola contra sua vontade; não queria ir, pois cria já estar adulto para resolver suas próprias vontades e problemas. Não houve jeito para ele: teve de vestir-se, apanhar seus livros ainda cheirando a novos, lápis, borracha, caneta e merendeira (que lhe parecia vexatório, já que, passado à quinta série, sua mãe ainda o tratava como primário), e partir...

Após longa noite de diversão proibida por D. Marta - levara toda a noite ao pé do computador -, saía revolto a caminho da escola que tanto rechaçava. Caminhava cabisbaixo e indignado com o que era obrigado a passar e contestava o porquê de sua mãe, não mais querida naquele instante como dizia no bilhete que acompanhou o buquê com que a presenteou no ano anterior, não confiar nele.

Já batiam sete e picos, e seu horário apertava a cada passada que dava. Parecia que mais distante ficava o infame reduto aonde iria para passar muitas manhãs até o último mês do ano à medida que se apressava. Tal lugar não lhe refletia confiança. Cria que lá teria inumeráveis e insolúveis entreveros com que lidar, e essa expectativa lhe parecia angustiante, ainda mais que a que teve quando da sua primeira aparição numa escola. "Muita gente em volta!" - era o que pensava enquanto contava as pedras que via pelo chão. "O que vão pensar de mim?" - se perguntava e chutava nervoso com a previsão de se dar mal no fim de tudo. Corriam os minutos e longe avistava o horizonte onde se escondia seu desgraçado objetivo.

Caminhava e observava tudo ao seu redor. Até que avistou num terreno baldio uma pedra, grande e vistosa. Cansado da jornada e desanimado com a opção única que tinha até aquele momento, ir à escola, o pequeno Elias resolveu ver de pertinho o rochedo que tanto o impressionou. Trespassou pequenos obstáculos que havia na entrada do terreno e se achegou à pedra. Suas cores pareciam hipnotizá-lo. Era grande e lisa. Tocou-lhe suavemente com os dedos, como a senti-la. Encantado com sua beleza bruta, inlapidada, resolveu olhar um pouco mais. Soltou os apetrechos com os quais estudaria e assentou-se recostando o ombro na pedra, virou levemente o rosto, suspirou e seus olhos brilharam como a reluzir confiança na situação... Eram 8 da manhã e ao longe iniciava o período estudantil. Estavam lá todos os que temia, menos Elias, que coçava avidamente os olhos impregnados de curiosidade e encantamento pelo pedregulho.

[...]

Como num rompante de desabafo, o triste pequenino faz à pedra uma declaração: "Eu confio em você, Dona Pedra!" - e, em seguida, revelando-se certo de que ela não contaria a ninguém o que lhe confiasse, perguntou: "Por que as pessoas são tão más?" e "Você crê que as pessoas possam ser boas?". Sem resposta a suas dúvidas pueris, fechou lentamente os olhos, recostou a cabeça em Dona Pedra e... suspirou. Parecia mesclar alívio e preocupação. Esta por arriscar-se a ter que confiar a alguém suas angústias e ele por saber que não ouviu nada parecido com o que diria sua mãe em suas historietas moralizadoras de criancinhas...

[...] "Elias, por que você não confia nas pessoas?" - ressoava ao vento uma voz, e os olhos do menino buscavam sedentamente a pessoa. A ninguém viu. A voz se repetia, ressoando agora bem próxima a seus ouvidos: "As pessoas não são más.". Olhando mais ao derredor, viu que era a pedra que respondia a suas perguntas e, assustado, se levantou, afastando-se. Seu pensamento bombardeava-lhe confusão. Punha a mão sobre a cabeça agitada e o cabelo docemente penteado para trás e partido sobre a fronte direita. Fechava e abria ansiosamente os dedos demonstrando sobressalto com o que se dava à frente de seus olhos. Não dizia nada.

"Sou eu, Elias, Dona Pedra! É esse seu nome, Elias, não é?" - O menino não sabia se corria ou gritava, ou se fazia as duas coisas. Suas perninhas não respondiam a seu desejo de sair dali devido ao medo que sentia, já que era apenas uma criança e nunca imaginou ver uma pedra falando com ele.

"Não tenha medo, pequenino! Só quero conversar. Sei que está apreensivo com muitas coisas, inclusive com as pessoas, que não confia nelas e que acha que podem lhe fazer mal." - disse a pedra, abrandando o medo de Elias e criando com ele um ínfimo laço de coleguismo e uma efêmera confiança.

"Ãh hã!" - balbuciou, após profundo alívio da apreensão em que esteve.

- O que ocorreu, docinho? - pergunta a pedra num tom maternal.

- Nada. - resistindo a confiar numa pedra que jamais havia visto antes, respondeu e assentou-se, pondo-se frente a frente a ela e a distância.

- Conte-me o que lhe aflige. Confie em mim e, quem sabe, eu possa ajudar. - disse olhando, com seus olhos foscos de pedra-sabão, bem dentro dos de Elias, que já não-mais tinha medo. Porém, ainda não confiava: o menino se manteve mudo. Olhava-a da base ao topo, por toda a sua dimensão e buscava uma única razão para confiar... mas não achava.

Dona Pedra, então, procurou entretê-lo e – sabe-se lá – convencê-lo a abrir seu coração: (...) Há muitos anos, tive uma amiguinha. Nós éramos de uma montanha e éramos bem diferentes. Não havia razão alguma para haver confiança entre nós. Eu a chamava de Pedrita. Era bem pequenina e parecia um brilhantezinho. Pedrita não gostava de ninguém e vivia dizendo que seu lugar não era ali. Dizia que sonhava com o dia em que iria correr o mundo e fugir das pedras em que não confiava. Tentei mostrar a ela que era considerada por todos parte da montanha, mas jamais quis aceitar e não confiou em mim. Num certo dia, Pedrita desejou que um vento bem forte passasse e a fizesse rolar montanha abaixo para afastá-la dos que não lhe inspiravam confiança alguma. Até que num dia seu desejo se deu e foi jogada à base da montanha, onde tinha uma estrada. Um andarilho passou e a levou presa à fresta de seu velho sapato. Longe, bem longe chegou o andarilho e levou consigo Pedrita. Incomodado com o passo que dava ao longo das dez milhas que percorria e a pedra lhe atrapalhava, o andarilho parou, assentou-se, avistou o que lhe desfazia o passo e a arrancou da fresta onde estava. Olhou-lhe com desdém e disse: "Pedrinha inútil! Não me serve para nada além de me atrapalhar o passo." - respirou, pegando ar que lhe serviria dali a pouco de energia e a arremessou no rio. Bebeu um longo gole d'água e se foi. Lentamente Pedrita afundou para o lugar aonde jamais imaginara chegar e onde não teria razão alguma de existir. Enquanto descia e via faltar-lhe a luz, pensava se havia feito a coisa certa, se não devia ter confiado no que ouviu e como ficaria dali por diante. Hoje estou aqui e Pedrita, nas profundezas do rio, procurando em quem confiar aonde nenhum peixe pode chegar e onde só há pedras que sabem que ela não é de lá. (...)

Impressionado com o que acabara de ouvir e recusando ser uma pedrinha no fundo escuro dum rio, resolveu arriscar umas palavra com a Dona Pedra:

- É... Eu não gosto de ficar perto das pessoas, elas não são confiáveis. Os pais dos meus colegas não gostam de mim. Meus colegas não gostam de mim. Por que é que eu deveria confiar em quem não gosta de mim?

- Abrande seu coração e se dê a chance de ser feliz. Você precisa tentar compreender as pessoas [...]

- Como posso ser feliz se nem meus pais me amam? – disse o garoto sem, ao menos, se esforçar para ouvir o resto da fala da pedra.

O garoto já parecia enturmado com a mais nova amiga que conseguira conquistar. Passaram horas a fio falando sobre si. Um ouvia as lamúrias do outro; ela, mais que ele. O menino parecia ter uns 80 anos de sofrimento. Jamais Dona Pedra ouvira de alguém tanta coisa. Em verdade, inegavelmente, o menino tinha muito do que reclamar. Seus pais não lhe davam a devida atenção e mal lhe olham o triste rosto, que muitas vezes estava molhado por lágrimas que diziam do seu sofrimento. Elias era de poucos amigos e de pouco carinho. Crescia encrudescido pela desconfiança que nutria. Mas, naquele momento, amenizava a 'carapaça' que sua pouca idade já lhe havia construído, confiava em alguém suas confidências.

- Garoto! Garoto! Garoto! – ressoava outra voz.

Ansioso, olhava avidamente por toda parte e nada via além de Dona Pedra. A voz se repetia e repetia e repetia. Ainda entusiasmado com a mais nova amizade que fizera, relevou a voz. Fixou os olhos nas dimensões da sua companheira e suspirou. Como num passe de mágica, uma forte luz ofusca-lhe seus olhos enquanto se abrem. É o sol do meio-dia, bronzeando seu rosto (...).

- Ele está acordando! – disse a bela enfermeira que o socorria por crer que havia desfalecido. Os vizinhos das redondezas do terreno haviam chamado os bombeiros ao verem-no jazido recostado na pedra.

Medicado, Elias é posto no colo e depois na maca. Levado à ambulância, vira a face e tenta ver a pedra. Ao longe consegue avistá-la. Já com muitas saudades, respirou fundo e pensou cheio de encantamento: "Obrigado, Dona Pedra!". Segundos após, notou que ao redor havia uma multidão, em que se misturavam adultos, jovens e as crianças fardadas com uniformes escolares, com quem se relacionaria e, num rompante desejoso de mudar, bradou:

- Quero ir para a escola!