RESUMO

 

Este trabalho apresenta estudos profundos relativos à Parábola do Filho Pródigo descrita no Evangelho Segundo Lucas. A análise da imutável cultura dos camponeses e beduínos ao longo de mais de dois milênios realizadas por diversos pesquisadores e publicadas em seus trabalhos, ajudou-nos a descobrir as pressuposições culturais nutridas pelo narrador das parábolas em relação aos seus ouvintes. Os mesmos valores que causaram o impacto das parábolas no tempo de Cristo podem ser descobertas hoje, em comunidades agrícolas do Egito, do Líbano, da Síria e do Iraque. Como a passagem do tempo não causou transformações culturais importantes nesses lugares é possível saber, por exemplo, o que significa um filho pedir sua parte da herança antes da morte do pai. Esclarecendo os fundamentos culturais da parábola, apresentamos análises das estruturas literárias, lidando com a seção como um todo e com seus elementos isolados. Por meio da combinação das análises cultural e literária, os estudos aqui apontados possibilitaram grande iluminação do sentido da referida parábola lucana.

Palavras-chave: parábola, fundamentos, imutável, cultura, análise. 

                                                  

ABSTRACT

 

This paper presents in-depth studies on the Parable of the Prodigal Son of the Gospel According to Luke described. Analysis of the unchanging culture of peasants and Bedouins over more than two millennia made by several researchers and published in their work, helped us to discover the cultural assumptions nourished by the narrator of the parables in relation to their listeners. The same values that caused the impact of the parables in the time of Christ can be discovered today in farming communities of Egypt, Lebanon, Syria and Iraq. As the passage of time has not caused major cultural changes in these places, you can learn, for example, which means a child ask his inheritance before his father's death. Clarifying the cultural foundations of the parable, we present analyzes of literary structures, dealing with the section as a whole and its individual components. Through the combination of cultural and literary analysis, the studies mentioned here enabled great lighting the direction of said Lukan parables.

Keywords: parable, foundations, unchanging, culture, analysis.


INTRODUÇÃO

A análise da imutável da cultura dos camponeses e beduínos ao longo de mais de dois milênios realizadas por diversos pesquisadores e publicadas em seus trabalhos, ajudou-nos a descobrir as pressuposições culturais nutridas pelo narrador das parábolas em relação aos seus ouvintes. Os mesmos valores que causaram o impacto das parábolas no tempo de Cristo podem ser descobertas hoje, em comunidades agrícolas do Egito, do Líbano, da Síria e do Iraque. Como a passagem do tempo não causou transformações culturais importantes nesses lugares é possível saber, por exemplo, o que significa um filho pedir sua parte da herança antes da morte do pai.

O problema considera a conservação da vitalidade e dinâmica do texto tal qual o mesmo soava aos ouvintes judeus do primeiro século, objetivamos, por meio de métodos escolásticos descritos a partir do “círculo hermenêutico”, isto é dentro da própria comunidade cristã, trazer à tona, pelo menos em parte, a “vitalidade e dinâmica do texto”, que se encontra disponível quando visto a partir da perspectiva cultural do Oriente Médio. A formulação do problema é: A partir de uma análise histórica é possível realizar, sob a perspectiva do ouvinte judeu do primeiro século, uma análise textual dos elementos socioculturais judaicos na parábola do filho pródigo?

Partimos da hipótese que ao dividir a herança enquanto o pai estivesse vivo era um grande insulto e o irmão mais velho, conforme salienta Bailey (1985, p. 211), "deveria recusar a petição de seu irmão e intervir como um conciliador". Sendo assim, e, por sua vez, o pai cede ao filho a posse e a disposição dos bens demonstrando um ato de amor sem precedente que dá liberdade até para rejeitar a pessoa que ama enquanto o filho primogênito aceita silenciosamente sua parte negando-se a desempenhar o seu papel de conciliador deixando evidente que havia problemas no seu relacionamento tanto com seu pai quanto com seu irmão. Ambos os filhos fracassaram na tentativa de viverem juntos, em unidade com seu pai.

O objetivo geral é apresentar, a partir da perspectiva cultural do judeu do primeiro século, fiando-se para tanto das observações dos mais destacados estudiosos do Novo Testamento, uma visão mais apurada das nuances que permeiam as “entrelinhas culturais” das parábolas de Cristo.  Os específicos são: Apresentar uma visão panorâmica da parábola, analisar a estrutura literária da parábola, fundamentar o palco da narrativa parabólica, analisar sob uma perspectiva sociocultural da época o deslocamento do mais jovem para “um país distante”, apontar as metáforas e implicações cristológicas na parábola, demonstrar, com base na análise das expressões e atitudes idiomáticas dos personagens da narrativa, a pseudolealdade do filho primogênito e, por fim, apresentar as considerações finais sobre este trabalho.

1. VISÃO PANORÂMICA DA PARÁBOLA 

Conforme ressalta O missionário e historiador Kenneth E. Bailey (1985, p. 208): "Durante séculos essa parábola tem sido chamada de "Evangelium in Evangelio". Quase todas as pessoas que se aprofundam seriamente no estudo dessas perícopes, acabam com uma sensação de solenidade e respeito para com seu conteúdo inexaurível". Esta parábola contém os temas de pecado, arrependimento, graça, alegria e filiação. Acerca de sua elaboração e narrativa C. W. Smith (2013, p.19) afirma:

Embora Jesus não fosse filósofo ou teólogo (no sentido formal), as suas parábolas, por si só, propiciam materiais que nem o filósofo nem o teólogo conseguem exaurir. Esta é a característica do supremo gênio de Jesus. Temos uma curiosa tendência, ao lidar com a humanidade de Jesus, de deixar passar despercebida a sua estatura intelectual completa.

 

Não há consenso acerca da autoria, do local da composição e da datação do evangelho de Lucas. Diante da impossibilidade de identificação do autor, o mais sensato seria admitir como descreveu Kummel (1982, p.188) que somente uma coisa se pode afirmar com certeza a respeito da sua autoria: “trata-se de um cristão proveniente da gentilidade”.

Como relação ao local de autoria Mesters (1998), é possível situar este evangelho na cidade de Antioquia, visto que o Livro de Atos guarda uma forte memória da igreja localizada nesta cidade (Atos 11.19-26; 13.1-3) e também por “possuir todos os aspectos de uma cidade fronteiriça”. Assim como não há consenso quanto à localização do evangelho de Lucas, também não há quanto a sua datação. Embora Storniolo (2004) o situe entre 80 e 90 e Kümmel (1982) numa posição mais cautelosa entre os anos 70 e 90, Mesters (1998) situa-o em torno do ano de 85.

O conflito na comunidade lucana parece gravitar em torno da aceitação na comunidade de um grupo de pessoas oriundas do mundo gentílico que não cumpriam as exigências das leis de pureza judaicas. Estas leis, segundo Moxnes (1995, p. 103), tinham grande importância porquanto eram "símbolos da identidade de grupo dos judeus". Após os cativeiros, a destruição e reconstrução do templo, o conceito de pureza, que era espacial-geográfico, passa a ser ritual. O conceito de sagrado, que era ligado à terra e ao espaço, passa a se ligar, a práticas rituais ligadas a pureza. Dessa forma, conforme Garcia (2001, p. 95) "a violência e a exclusão eram dirigidas a todos que não cumpriam os princípios de pureza".

Contrastando com a postura judaica exclusivista, o autor de Lucas nos apresenta parábolas que denunciam tal arbitrariedade e propõe uma inversão da posição dos judeus em relação aos gentios. Ratificando isso temos que uma citação de L. E. Keck no "The New Interpreter's Bible", quando este afirma que:

Cada parábola do capítulo 15 apresenta um duplo escândalo para os judeus religiosos. Por um lado, encarna a figura de Deus em personagens desprezadas pelos judeus do primeiro século (ex. pastor, mulher e um pai desonrado) e, por outro lado, afirma que Deus tem mais prazer em celebrar com um pecador arrependido do que com um judeu religioso. O cumprimento cego das exigências da lei pelos judeus não alegraria a Deus. A celebração da vinda do reino tomou lugar na participação da mesa de Jesus com os rejeitados, por isso, o zelo excessivo no cumprimento da lei judaica tornou-se uma barreira separando os gentios rejeitados e os judeus contribuindo para ausência deste último grupo na mesa.  (KECK, 1994, p. 296).

 

Necessário é, antes de passarmos adiante na análise da parábola, esclarecer alguns pontos acerca das figuras de linguagem utilizadas. A parábola não se trata de uma alegoria. O pai não é Deus incógnito, mas um pai terreno como fica evidenciado de forma conclusiva no verso 18. Não obstante, ele é um símbolo de Deus. Jeremias (1986, p. 128) escreve: "O pai não é Deus, mas um pai terreno; contudo, algumas das expressões usadas têm o objetivo de revelar que em seu amor ele é uma figura de Deus". Geraint Vaughan Jones (1964) afirma que a parábola a respeito do filho pródigo não é, primordialmente, a respeito de um rapaz extravagante, mas a respeito do relacionamento entre Deus e o pecador, e aquele que se julga justo. Não é prudente, portanto, identificar o filho mais velho apenas como um fariseu, pois isso estreitaria indevidamente o âmbito didático da parábola. Em suma, Jesus está basicamente descrevendo um tipo de pessoa. Nessa mesma linha Derret (2005, p. 72) compreende esta parábola argumentando que "se um pai terreno pode agir dessa forma, quanto mais Deus!".

2. ESTRUTURA LITERÁRIA DA PARÁBOLA 

Na análise de Bailey (1985, p.208), os versículos de 4 a 11 da parábola anterior compõem uma espécie de parábola dupla. Cada metade possui uma estrutura semelhante, porém distinta. O mesmo sucede nos verso 11-32. Aqui também temos uma parábola dupla e cada metade tem sua estrutura própria. Novamente, ambas as metades são semelhantes e, concomitantemente, diferentes.  Bailey organiza essa parábola dupla em estrofes que combinam uma com a outra usando paralelismo invertido ou em degrau e outras correspondências semânticas. Dessa forma, a estrutura da primeira metade é a seguinte:

A - Havia um homem que tinha dois filhos

1 Um filho é perdido (v.12)

2 Bens gastos com uma vida cara (v.13)

3 Tudo perdido (v.14)

4 O grande pecado; cuidar de porcos para os gentios (v.15)

5 Total rejeição (v.16)

6 Mudança de mente (v.17)

6’ Arrependimento inicial (v.18-19)

5’ Total aceitação (v.20)

4’ O grande arrependimento (v.21)

3’ Tudo ganho; restaurado a filiação(v.22)

2’ Bens usados na alegre celebração (v.23)

1’ Um filho é achado (v.24).

A segunda metade é uma repetição da primeira. Valendo-se, didaticamente, de um recurso de inversão. Vejamos sua estrutura literária.

B - Ora, o filho mais velho estava nos campos

1 Ele vem (v.25, 26)

2 Teu irmão- ileso- uma festa (v.27)

3 Um pai vem para reconciliar (v.28)

4 Queixa I (como me tratas) (v.29)

4’ Queixa II (como tratas a ele) (v.30)

3’ Um pai tenta reconciliar (v.31)

2’ Teu irmão- ileso- uma festa (v.32)

1’ ............................ (faltando) (BAILEY, 1985, p.208).

A estrutura, portanto, configura uma balada parabólica que, nesse caso, possui doze estrofes que se combinam mutuamente entre si valendo-se de paralelismo invertido. As últimas 6 invertem as primeiras 6 como já observado. O centro da parábola é o ponto de retorno onde é usado o princípio da inversão bastante característica da narrativa lucana, conforme Bailey (1985, p. 210) pontua diversas vezes. Ainda referenciando Bailey (1985, p.210-211), este observa que "a última linha de cada uma das primeiras seis estrofes relaciona-se com os desejos perdas e necessidades físicas. As últimas seis estrofes, em suas linhas finais tratam progressivamente da restauração à filiação e da alegria que se segue." As ligações entre as estrofes ficam evidentes. No centro apoteótico as duas queixas combinam linha a linha em paralelismo em degrau. Na estrofe 3 o pai vem para reconciliar-se, enquanto que na 3’ ouvimos um discurso de reconciliação. A estrofe 2 é um relatório da festa dado por um rapaz, e em 2’ o pai defende o fato de ter iniciado esses mesmos eventos. O término está faltando: não há estrofe 1’, algo está inacabado.

A porção bíblica de Lc 15.11-32 é uma narrativa parabólica. Tal narrativa trata de um acontecimento de caráter único e não costumeiro o qual é narrado pormenorizadamente. Constata-se uma tendência de apresentar os personagens em determinada relação social (estrutura: superior, inferior; ou direito, subalterno), por exemplo, a figura paterna. Com frequência são apresentados dois grupos, um dos quais é preciso escolher. O seu fundo literário geral é o gênero das fábulas antigas, na medida em que se referem a seres humanos. Muitas das narrativas começam como a parábola de Lc 15.11-32, com "havia um homem". As narrativas parabólicas raramente são autônomas com relação ao contexto e tem amiúde função retórica, argumentativa. Para a apreciação sistemática das parábolas, isso acarreta a necessidade de se prevenir contra a tendência de isolá-las de seu contexto.

Bailey (1985), novamente, nota que quanto ao fluir da estória, a terceira linha de 5 é redundante e deslocada, no entanto, do ponto de vista estrutural, funciona maravilhosamente em seu contexto, uma vez que possibilita que se enxergue a estrutura. Com essas correspondências semânticas em mente, é necessário um aprofundamento na análise dos elementos culturais que permeiam a parábola, alguns dos quais, por sua vez, iluminarão outros paralelismos.


3. FUNDAMENTAÇÕES DO PALCO PARABÓLICO 

A primeira estrofe naturalmente serve de introdução para o desenvolvimento de toda narrativa. Depois de afirmar a presença de um pai com dois filhos, a parábola começa com o pedido do mais novo: "Pai, dá-me a parte da propriedade que me cabe". Acerca disso, mais uma vez Bailey, informa:

Por mais de quinze anos tenho perguntado a pessoas de todas as classes sociais, desde o Marrocos até a Índia, e desde a Turquia até o Sudão, a respeito das implicações do pedido da herança por parte de um filho, estando o pai ainda vivo. A resposta quase sempre tem sido enfaticamente a mesma... A conversa ocorre da seguinte maneira:

"Alguém já fez um pedido assim em sua aldeia?"

"Nunca!"

"Alguém poderia fazer um pedido assim?"

"Impossível!"

"Se alguém o fizesse, o que aconteceria?"

"Seu pai bateria nele, sem dúvida!"

"Por quê?"

"Este pedido significa: ele quer que seu pai morra!" (BAILEY, 1985, p. 212).

 

Na Mishnah, a passagem chave, que trata detalhadamente sobre o tema e para a qual voltaremos repetidamente, é Baba Bathra VIII. 7, que diz:

Se alguém cede a sua propriedade a seus filhos, por escrito, precisa escrever: “desde hoje e depois da (minha) morte”... Se alguém cede os seus bens por escrito a seu filho (para que se torne dele) depois da sua morte. O pai não pode vendê-la, visto que ela já está transferida para o seu filho, e o filho não pode vendê-la porque está sob o controle do pai... O pai pode colher (faze-la produzir) e alimentar dela a quem queira, mas o que ele deixar colhido pertence aos seus herdeiros. (NEKIZIN, 1954, p. 212).

 

À frase "depois da (minha) morte" o editor acrescenta esta nota: "Isto se refere a uma pessoa sadia que deseja reter o direito de se beneficiar com as suas posses (usufruto) durante a sua vida.”.

Jeremias (1986) e outros têm aceitado esta passagem como a melhor explicação da situação legal que está por detrás desta parábola.  O Talmude Babilônico apresenta uma nota dando uma ilustração acerca da situação em que um homem em perfeita saúde pode transferir as suas propriedades aos seus filhos. A nota explica a Mishnah citada acima, e diz:

Isto é, poderia tratar-se, num caso incomum, da história de uma pessoa em perfeitas condições de saúde, que desejava, por exemplo, casar-se pela segunda vez, e desejava proteger os filhos do primeiro matrimônio da sua segunda esposa que poderia apostar-se dos bens, como pagamento do seu Kethubah (contrato de casamento judaico, acordo nupcial judaico). (EPSTEIN; HERTZ, 1935, p. 573).

 

Assim sendo, para circunstâncias especiais a Mishnah abre o precedente da feitura do testamento antes da morte, mas não há nenhum indício de qualquer pai tê-lo feito sob pressão de um filho mais novo.

Derrett (2005, p. 59) confirma que a razão principal para que um pai dividisse as suas propriedades e a transferisse aos seus filhos em inda era o objetivo de "determinar o que eles teriam depois da sua morte e evitar disputas." Derrett nunca sugere que o pai fazia isto sob pressão dos seus filhos. Todavia, Bailey, ainda nessa abordagem, enxerga a extrema necessidade de ressaltar que:

[...] o fato notável é que, pelo que me chegou ao conhecimento, em toda a literatura do Oriente Médio (sem contar esta parábola) desde os tempos antigos até o presente momento. Não há nenhum caso de algum filho. mais velho ou mais jovem que tenha pedido a sua herança ao pai que estava ainda gozando de boa saúde. (BAILEY, 1985, p. 212).

 

As ações do pródigo são ainda mais notáveis, porque o seu pedido é duplo. Ele requer a divisão da herança. O seu pedido lhe é concedido. Mas isto lhe dá o direito de propriedade sem o direito de dispor do seu quinhão.

A propriedade é sua, mas ele não pode vendê-la. Ele quer mais e por isso pressiona o seu pai para lhe dar o direito de dispor dela imediatamente. A Mishnah citada acima dá providências para o arranjo legal, mas não para que os filhos disponham da propriedade durante a vida do pai. Depois de transferir as suas posses aos seus filhos. O pai ainda tem o direito de viver do seu produto (o uso-fruto) enquanto viver. Aqui o filho mais jovem o adquire (esse direito de dispor da propriedade), e, portanto subentende-se que ele o exigiu. Para tal disposição ele não tinha direito falando explicitamente, antes da morte de seu pai. A implicação de "Pai não posso esperar até que o senhor morra" está subentendida em ambos os pedidos. Ela é ainda mais forte no segundo.

Linnemann (1966, p. 74) cita parte do material bíblico e rabínico que examinamos acima, mas deixa de notar que “nenhum deles mostra um filho pedindo a sua herança a um pai que goza de perfeita saúde.” Ela nota que havia grande afluxo de judeus seguindo para a diáspora, e presume que esse era um acontecimento normal. Keneth Bailey, no entanto, demonstra a inverossimilhança de sua afirmação ao demonstrar que:

Tal assertiva não é verdade. Temos situação semelhante no Líbano hoje em dia. Com quase dois milhões de Libaneses vivendo e trabalhando por todo o mundo, em sua "diáspora" característica. Mas o jovem que tem um pai vivendo em perfeita saúde que sai de casa para fazer fortuna. Não pede recebe e vende a sua parte dos bens da família antes de sair! (BAILEY, 1985, p. 231).

 

O máximo que ele pode esperar é ganhar a passagem e um pouco de dinheiro para as primeiras despesas. Linnemann (1966, p. 10) faz a surpreendente declaração; “Segundo as leis da época, a fazenda era propriedade da família. e juntamente com tudo o que pertencia a ela, passava para o filho mais velho”. Ela deve ter notado este conceito surpreendente concluindo-o a partir de Levítico 25: 23, que diz: “Também a terra não se venderá em perpetuidade." Esta passagem refere-se ao Jubileu, e não tem nada a ver com heranças. O pedido de Lucas 12: 13. “Mestre. ordena a meu irmão que reparta comigo a herança”, demonstra rapidamente que as propriedades eram divididas entre os filhos.

Nem todos os estudiosos deixaram de notar que o pedido do filho mais jovem chega às raias de desejo pela morte do pai. Bornkamm (1946, p. 126) diz a respeito do pródigo que “ele pede a sua parte dos bens, e trata o pai como se estivesse já morto. Miller (1959, p. 60) escreveu que era costume normal “os herdeiros receberem a sua parte por ocasião da morte do pai (Hebreus 9: 16-17). Via (1973, p. 270) capta estas implicações, no segundo pedido; ele escreve: "Desta forma o pedido do pródigo para que tivesse o direito de dispor do seu quinhão, significava tratar o pai como se estivesse morto".

A literatura antiga e os costumes modernos coincidem e o pedido e considerado como uma profunda brecha no relacionamento entre pai e filho. O rapaz de fato está perdido.

A luz das implicações do pedido é ainda mais notável que o pai concorde. No ambiente do Oriente Médio esperar-se-ia que o pai explodisse e disciplinasse o rapaz por causa das cruéis implicações do seu pedido. E difícil imaginar uma ilustração mais dramática da qualidade desse amor, que dá liberdade até para rejeitar a pessoa que ama do que a apresentada nesta cena inicial Derrett (2005, p. 52) sente a natureza radical da ação do pai e argumenta à luz de Ben Sirach (Eclesiástico 33: 2-44) que nenhum pai teria concordado com um pedido desses. sem fazer reservas tácitas mas seguras em seu favor. O pai, diz Derrett, (2005, p. 52) "de maneira alguma prejudicara a sua própria posição”. Ele explica que o pai devia ter feito a "dispensa" com a reserva de que o filho ainda permanecia responsável financeiramente pelo pai, se e quando o pai em sua velhice precisasse de ajuda. Ele pondera acerca da natureza radical da situação. Se o pai atendesse esse pedido está pondo em risco o seu "bem estar." Podemos concordar com Derrett que nenhum pai conhecido do ouvinte/leitor teria concordado com o pedido sem a espécie de reserva sugerido. Todavia, o pai desta estória de fato cede ao filho a posse e a disposição dos bens. O filho adquire a propriedade e o direito de vendê-la. Se o pai tivesse estabelecido alguma reserva quanto à herança. não teria dado o direito ao filho de dispor dela. Quando se permite que o rapaz venda a sua herança e emigra, todas as reservas ficam sem sentido. Obtemos o mesmo conceito diretamente de Sa'id, que escreve:

O pastor, na sua busca da ovelha, e a mulher na sua busca de moeda não fazem nada extraordinário, além do que qualquer pessoa faria em seu lugar. Mas as atitudes que o pai toma na terceira estória são únicas, maravilhosas, divinas, que não foram tomadas por qualquer pai no passado.  (SA'ID, 1970, p. 395).

 

O filho mais velho é mencionado duas vezes nesta cena inicial. Somos informados no versículo 2 que o pai tem dois filhos. No versículo 12 ouvimos que o filho mais velho também recebe a sua Parte na herança. Esperamos que ele reaja de duas maneiras. Primeiro, ele deveria recusar-se a aceitar a sua parte em voz alta como protesto contra as implicações do pedido de seu irmão. O seu silêncio sugere fortemente que o seu relacionamento com o pai não era como devia ser. E segundo, neste ponto o ouvinte/leitor oriental também espera que o filho mais velho apareça verbalmente na estória e assuma o papel tradicional de conciliador. As brechas nos relacionamentos são sempre curadas através de uma terceira parte no Oriente Médio. A terceira parte é escolhida tendo como base a intimidade de seu relacionamento com ambas as partes em conflito. Neste caso, o papel de reconciliador lançado sobre o filho mais velho por todas as pressões e evidências do costume e da comunidade. O seu silêncio significa recusa. O Talmude, em sua Kethuboth, nota especificamente que "eram os filhos que executavam a cerimonia de kezazah" (Ket. 28b). Eles eram responsáveis pela reconciliação, bem como pelo sinal do seu fracasso. Se o filho mais velho odeia seu irmão, assim mesmo tenta fingidamente reconciliá-lo por amor de seu pai. Este filho mais velho na parábola fica em silêncio. Mais uma vez o seu silêncio nos revela que há problemas no seu relacionamento com o pai. Finalmente, como já observamos o pai dividiu os seus bens entre eles. Desta forma, o filho mais velho também se beneficiou com a transação. Ele sabe que o pedido é impróprio e que se espera que ele seja negado com sonoras afirmações de lealdade infinita ao pai. Pelo contrário, ele aceita em silêncio. Contando com os antecedentes da literatura vétero-testamentária que caracteriza os filhos mais velhos como “avarentos, ortodoxos e hipócritas" (DERRET, 2005). É fácil concluir-se o quadro que esta parábola esboça acerca deste filho mais velho quadro já visível nos versículos iniciais.

Em conexão com esta parábola, Daube (1955, p. 326-334) discute o termo técnico do Antigo Testamento “yashabh yehadh” (habitar juntos), que se referia ao fato de irmãos habitarem juntos em uma propriedade depois da morte do pai. Este estado de coisas era considerado a regra; como instituição ele foi idealizado no Salmo 133: 1 (Desta forma Lucas 12: 13 é considerado como pedido deplorável, e de fato assim é tratado na narrativa de Lucas.) Aqui o filho mais novo, vendendo a sua parte e indo embora recusa-se a tentar qualquer futura "habitação junto" com seu irmão. Não obstante indubitavelmente ambos os filhos devem ser culpados por este fracasso. O mal que será evidenciado da parte do filho mais velho no fim da estória não é "raiz de uma terra seca" (ls 53:2).

Na estrofe seguinte, depois de "não muitos dias" o filho mais jovem transforma a sua parte em dinheiro. A razão para a necessidade de se apressar (não muitos dias) é fácil de reconstruir. Não é apenas a sua preocupação de "ir avante." Pelo contrário, ao dirigir-se ele de um comprador em potencial para outro aumenta a intensidade do ódio da comunidade, cresce também o seu desgosto. Para qualquer lado que se volte ele é saudado com espanto, horror e rejeição. O apego do camponês do Oriente Médio à sua terra é tão antigo quanto o relacionamento de Nabote com a sua vinha. As propriedades da família são partes integrantes da identidade pessoal do nativo do Oriente Médio. Embora, como foi indicado acima, o filho pródigo nada tivesse feito para atrair sobre si a Kezazah (Literalmente "o corte"), certamente ele merecia o intenso desprezo de toda a comunidade. Assim sendo, embora no Oriente Médio ordinariamente a venda de uma propriedade se arraste por meses a fio, o pródigo a realizou apressadamente e foi embora.

Para resumir esta cena inicial o pródigo pede e recebe a posse e a disposição da sua parte da herança. Ambos os pedidos são inconcebíveis na vida e no pensamento do Oriente. Cada um deles significa que o filho esta com pressa de que seu pai morra. Espera-se que o pai não o atenda e castigue o pródigo. Pelo contrário em um ato de amor sem precedentes o pedido é atendido. Espera-se que o filho mais velho não aceite a sua parte e desempenha o papel de reconciliador. Ele falha em ambos os casos. Estes fracassos indicam que o seu relacionamento tanto com seu irmão quanto com seu pai, estão rompidos. Ambos os filhos fracassam até mesmo em tentarem viver juntos, em unidade. A cerimônia de kezezah ilustra atitudes coletivas para com membros da comunidade que vendem aos gentios.


4. NUM PAÍS DISTANTE: ANÁLISE SOB A PERSPECTIVASOCIO-CULTURAL DA ÉPOCA

Nesta seção serão tratados os aspectos culturais à medida que aparecem no texto. Aqui o pródigo gradualmente desce até o seu próprio inferno. A estrutura em seis estrofes da primeira metade da estória do pródigo torna clara esta afirmação.

A ação do filho mais jovem relata seu distanciamento e alienação progressiva de sua família, má administração de sua herança e decadência em pobreza e privação. O v.13 nos informa primeiramente que ele ajuntou seus bens e partiu para uma terra distante ou, como diz o texto original: χωραν μακραν ("khoran makran" que significa literalmente, colocar distância). A fim de entendermos este termo é necessário que haja uma compreensão do que viria a ser uma polis grega.

Em segundo lugar, o v.13 nos informa que ele gasta rapidamente sua herança "vivendo dissolutamente". Ademais, o começo de uma grande fome levou o jovem a enfrentar grave necessidade.

No país distante o dinheiro do pródigo acaba depressa. Foerster (1976) explica a frase ζων ασωτως (dzon asôtos) dizendo tratar-se da vida dissoluta do pródigo, sem especificar a natureza dessa vida e simplesmente pintada como descuidada e esbanjadora, em contraste com a escassez iminente.

Esta frase não conta-nos se o dinheiro foi desperdiçado de maneira moral ou imoral. Pelo contrário, as versões orientais são ambíguas. A Siríaca Antiga decide o problema de uma maneira com uma linha adicional que faz o texto dizer: “Ele esbanjou a sua propriedade em alimentos que não são adequados, porque estava vivendo prodigamente com meretrizes." Começando com a Peshitta esta adição é removida e o texto traduzido sem ambiguidade em outra direção. Uma ampla variedade de palavras é usada nas versões árabes, mas todas elas (com a exceção de uma, no século XIX) contêm termos que significa "dispendioso" “indolente." “luxurioso" e “esbanjador." Todas estas palavras fazem com que as versões Peshitta e árabe concordam claramente com a definição de Foerster (Id. Ibid). Não chamam o pródigo de imoral, mas apenas de "esbanjador." E importante o fato de o texto grego e a vasta maioria das versões orientais não condenarem o pródigo por imoralidade e propicia um pano de fundo para se entender adequadamente as observações do filho mais velho no versículo 30, como veremos.

Finalmente no v.15, sem o apoio da família, ele procura trabalho com um cidadão local. Trabalhar para um gentio era algo proibido para um judeu (At 10.28), um fato exemplificado pela sua baixa consideração pelos coletores de impostos (Lc 15.1). Desesperado, o rapaz aceita dar alimento aos porcos, animal considerado impuro e, por isso, um trabalho degradante para um judeu (Lev 11.7; Dt 14.8; 1 Mac 1.47). Portanto, de acordo com Jeremias (1986), esse rapaz se viu forçado a romper com a tradicional prática e vida judaica.

Jeremias pesquisou uma série de dez ocasiões de fome em Jerusalém e ao redor dela, de 169 a. C. a 70 A.D. (excluindo aquelas resultantes de guerras). As fomes tinham uma imagem poderosa para um auditório do século I na Palestina. Além disso, um judeu solitário em um país estranho e distante. Sem dinheiro nem amigos, seria especialmente vulnerável durante uma fome de grande porte. O texto parece notar este fato adicionando um pronome enfático. O versículo 14 diz: “Ele começou a passar necessidades." Ele, mais do que os outros, começou a passar necessidades.

Em seguida o texto nos fala vivamente que ele se "gruda" a um cidadão daquele país. Aquele rapaz era conhecido na comunidade por ter chegado com dinheiro, e desta forma esperava-se que tivesse um resto de respeito próprio. Ademais, Bailey (1985) informa que a maneira polida pela qual o habitante do Oriente Médio se livra de importunos indesejáveis é atribuir-lhes uma tarefa que ele sabe que eles recusarão. Qualquer pessoa que, durante uma fome, tenha comida, tem uma turba de pedintes à sua porta, diariamente. Contudo, o orgulho do pródigo não está ainda completamente reduzido ao pó, e, para a surpresa do ouvinte/leitor, a tentativa do cidadão de se livrar do filho mais jovem, termina em fracasso. Ele aceita o trabalho de cuidador de porcos.

Linnemann (1966, p.75) acha que o fato de ele “juntar-se a um cidadão é uma referência clara aos coletores de impostos e ao fato de estarem a serviço de estrangeiros”. Jeremias raciocina que o pródigo não poderia guardar o sábado. Estava em contato com animais impuros e, desta forma, fora praticamente forçada a renunciar à prática regular da sua religião.

Esse jovem é retratado desejando encher o estômago com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam. Stuhlmueller (1964) pontua que esta sentença apresenta vários problemas. Que eram essas vagens? O pródigo as comeu? Se o fez, não ficou satisfeito? Se não ficou, qual a razão? As vagens de alfarrobeira são quase universalmente identificadas com as "ceratonía siliqua”. A versão Harcleana e a Siriaca Sinaitica Antiga transliteram a palavra grega, mas os restos das versões orientais sem exceção usam a palavra kharnüb. Esta mesma palavra, na literatura rabínica aramaica designa uma vagem comestível usada pelos pobres. Como alimento, simbolizava arrependimento. Todavia, trata-se de recurso nutritivo considerável, conforme referencia Rihbany (1916, p. 158), o que, aparentemente, invalida a hipótese de identificação das alfarrobas como da classe "ceratonía siliqua”.

Em um tempo de muita fome, é difícil imaginar algo com significativo valor alimentício para os humanos, ser dado para alimentar porcos. A resposta a este dilema encontra-se no fato de que o Oriente Médio tem duas espécies de kahrnüb. Isto foi observado há quase cinquenta anos por Rendel Harris. Baylei repete as palavras que Harris traduziu de um dicionário árabe intitulado al-Tàj (a coroa). Como segue:

Alfarrobeira: Abu Hanifa diz: Há uma espécie selvagem e outra síria deste arbusto. A espécie selvagem (também chamada de alfarrobeira espinhosa) tem espinhos e é usada como madeira para queimar. Cresce até cerca de um côvado de altura, tem ramos e produz bagas de pouco peso e infladas, mas essas bagas são duras e não comestíveis, exceto em períodos de emergência. A espécie síria é doce e comestível. (BAILEY, 1985, p. 221).

 

O v.16 retrata de forma dramática a completa queda e a desesperada necessidade enfrentada pelo filho mais novo, o fato de ninguém lhe dar comida o levou a desejar satisfazer-se com alfarrobas que os porcos comiam. Embora não haja consenso quanto ao que realmente são estas alfarrobas, Bailey ainda sugere:

Era simplesmente um arbusto no qual os porcos podem cavoucar a terra procurando as suas bagas. Elas podem ser comidas pelo ser humano, mas é amarga e não tem valor nutritivo. O pródigo não conseguiu encher o estômago com elas". Não importava quanto comesse não se alimentava.  Esta alfarrobeira selvagem e não a "ceratonía siliqua” enquadra-se com as características da parábola. As bagas selvagens não têm valor nutritivo suficiente para manter um homem vivo. Em suma, a parábola retrata um cuidador de porcos tentando desesperadamente conseguir nutrição suficiente para permanecer vivo, comendo bagas pretas e amargas que os porcos arrancam de arbustos baixos. Esse arbusto não é a "ceratonía siliqua”, mas uma alfarrobeira selvagem que cresce nas pastagens do Oriente Médio. “E ninguém lhe dava nada." é o comentário final que dá a última pincelada no quadro. O verbo está no passado imperfeito, e assim pode ser traduzido melhor "Ninguém lhe estava dando nada. (BAILEY, 1985, p. 221-222).

 

Isto possivelmente significa que ele tentara mendigar, mas fracassara até nisso. Provavelmente esta expressão pode ser entendida melhor com o significado de "Ninguém o estava alimentando regularmente." Obviamente, ele recebia algo pelo fato de apascentar os porcos; mas em um tempo de fome, com a disponibilidade de mão de obra barata de pessoas quase morrendo de fome, o que ele ganhava não dava para a sua subsistência. Ele diz especificamente: “Eu aqui pereço de fome.”.

O conteúdo exato desse arrependimento do pródigo precisa agora ser examinado minuciosamente. Na semelhança do mordomo injusto em Lucas 16 o pródigo não pede desculpas. Ele se arrepende, mas de que? Bornkamm (1976) identificou corretamente a motivação do filho no país distante. Ele diz: "Por que não é o seu remorso pelos pecados que cometeu. mas para começar. simplesmente a constatação de que ele chegou ao fim dos seus recursos, o que o leva a voltar". Derrett, escrevendo do ponto de vista judaico, faz a interessante pergunta:

Muitos interrogam por que o arrependimento precedeu aquele retorno. Arrependimento de que? Ele era sincero? Seria o pai tão imprudente em readmiti-lo como fora em dar-lhe a sua parte no começo?”“... “Esta bem pode ser a fraqueza fundamental da parábola”... "Pequei contra o céu e diante de ti" está confessando que falhou por não ter permanecido de prontidão para tomar conta de seu pai na velhice. O pecado que motivou a sua confissão é a perda do dinheiro ao qual estava ligada uma responsabilidade moral que, até então, ele se recusara a reconhecer. (DERRETT, 2005, p.58)

A necessidade de ter o que comer fez com que o filho mais novo perdesse a sua dignidade e recebesse tratamento pior do que os porcos. Essa era a condição de vida de milhões de pessoas no império. Segundo Crossan (2004, p. 457):

No Mediterrâneo oriental, a luta pelo controle do pouco excedente agrário existente era, em geral, mais impiedosa nos limites das grandes cidades. As vítimas eram, de maneira quase inevitável, os camponeses; e o resultado era a condição crônica de escassez e desnutrição, sempre prestes a se transformar em fome e epidemia. Se existia a abundância só se encontrava entre os ricos e seus clientes nas cidades.

 

A implicação desta maneira de entender o seu pecado é essencial. Ele pensa que se não tivesse perdido o dinheiro não teria pecado. Dessa forma o pródigo é motivado pela fome e se arrepende por ter perdido o dinheiro. Ele pensa que se não tivesse perdido o dinheiro, não teria pecado.

No v.17 através de um solilóquio (auto reflexão), um dispositivo narrativo comum nas parábolas lucanas, podemos ver diretamente o coração do personagem (ex. Lc 12.17-19). Assim, o rapaz repensa a sua situação, "cai em si" e percebe que é melhor voltar para casa. Porquanto, na casa de seu pai até mesmo os trabalhadores "μισθιων" (misthion) tinham abundância de comida. Para Jeremias (1986, p. 131) “a expressão "e caindo em si" εις ‘εαυτον δε ελθων (heis eauton de elthon) tanto em hebraico como em aramaico aponta para o significado de "converter-se"”.

Aqui a fome do rapaz estimula o arrependimento. Não existe uma dicotomia entre fome e arrependimento. No entanto, existe uma tensão no entendimento representado nas três parábolas de Lucas 15. Nas duas primeiras parábolas, a ovelha e a moeda são simplesmente encontradas, elas não desempenham um papel ativo. Porém, na parábola ora estudada o filho realiza o movimento inicial e é incondicionalmente recebido pelo seu pai.

O monólogo prossegue no v.18, o rapaz resolve despertar da sua letargia e desespero, isto fica evidente pela expressão "levantar-me-ei e irei". A frase "pequei contra o céu e contra ti" revela a percepção de que o erro cometido não era apenas contra o seu pai, pois ele havia violado o quinto mandamento (Dt 5.16).

O rapaz finaliza seu pensamento no v.19, aqui dominado pela vergonha ele não se vê no direito de ser restaurado como filho e sim como "um dos trabalhadores assalariados" de seu pai. Sendo assim, no v. 20, ele decide levantar e voltar para seu pai.

A questão adicional, dos seus relacionamentos na comunidade natal, precisa ser examinada. Os seus relacionamentos primeiros são para com seu pai, seu irmão e a comunidade da aldeia nesta ordem. A primeira e mais importante destas três é a relação dele com seu pai. A chave para se entender as intenções do pródigo em relação ao seu pai encontra-se em seu piano para salvar as aparências. Ele trabalhará como servo assalariado (estrofe 6'). A natureza exata do servo assalariado geralmente passa despercebida na Literatura. Oesterley (1938, p. 186) identifica os três níveis de servos numa propriedade judaica do século I como seguem: "Servos (δουλοι), que como escravos faziam parte da propriedade, e de fato, quase parte da família. Os escravos de classe inferior (παιδες), que eram subordinados à classe anterior, os servos. Os servos assalariados (μισθιοι)". A respeito desta última classe, Oesterley escreve:

O “servo assalariado” era um estranho; ele não pertencia à propriedade, não tinha interesses pessoais nos negócios do seu senhor temporário; ele era meramente um trabalhador ocasional, que era empregado quando necessário...A sua posição era, portanto, precária..., embora, diferentemente dos outros, ele fosse um homem livre... (OESTERLEY, 1938, p.186).

 

Oesterley declara, todavia, que o "servo assalariado" embora livre, tinha condição inferior à dos outros dois tipos de servos. Esta avaliação da sua condição social é contrariada pelos eruditos judeus. Heinernann escreve:

O trabalho e o trabalhador eram tidos em grande estima na época tanaítica... É fato conhecido que muitos tanains eram artesãos; muitos deles eram diaristas. Não parece ter existido nenhuma diferença de condição social entre o assalariado dependente e o artesão, que era mais independente (a sua condição legal também era idêntica; ambos eram chamados de “trabalhadores assalariados”), e também o trabalhador não era considerado socialmente inferior a seu empregador. (HEINEMANN, 1954, p.116).

 

A obra de Heinemann é bem documentada, e pode ser considerada de muita autoridade. O que ele diz é de suma importância para se entender adequadamente o que o pródigo está propondo como solução para o problema do seu futuro relacionamento com a casa de seu pai. Como “servo assalariado" ele será um homem livre, tendo sua própria renda, vivendo independentemente na aldeia local. Sua condição social não será inferior a do seu nem a de seu irmão.

A premissa de Heinnemann afirma que a proposta do pródigo para a solução do problema do seu futuro relacionamento com a casa de seu pai, baseava-se no fato de que como "servo assalariado" ele será um homem livre, tendo sua própria renda vivendo independentemente na aldeia local. A sua condição social não será inferior a do seu pai ou a do seu irmão. Poderá, assim, manter o seu orgulho e sua independência.

Ademais, se o pródigo se tornar servo assalariado poderá ser capaz de pagar o que perdera. Contudo, quanto a isso Derret (2005, p. 351) afirma que: "Trabalhando como servo assalariado (dormindo fora da propriedade), ele pode tomar providências para que futuramente, como o seu salário, se não de outra maneira, possa dar a seu pai aquilo que, enquanto o pai viver, é tão somente o seu viver".

Se o pródigo for trabalhar como servo assalariado, ele não estará comendo do pão de seu irmão. Ele sabe muito bem que tudo o que foi deixado na propriedade foi transferido legalmente ao seu irmão. Do produto da fazenda, o pai tem o direito de alimentar a quem bem entender. Mas, se a Mishnah pode ser aplicado, “o que não for consumido pelo pai e seus amigos são em seguida acrescentados ao capital que o filho mais velho, com o tempo, herdará” (KET. 28 b). Desta forma, o filho mais velho provavelmente se ressentirá com a presença do pródigo. Vivendo em casa, isso resultaria em reconciliação com o seu irmão, e aparentemente esta perspectiva é rejeitada. De qualquer forma ele elabora uma alternativa que torna desnecessária esta espécie de reconciliação.

O problema final do pródigo é o seu relacionamento com a aldeia inicialmente será difícil. Na verdade, bem difícil, galgar qualquer posição na comunidade. Ele fracassou no país distante. Sempre é difícil para qualquer emigrante, voltar à sua aldeia natal a menos que ele tenha obtido sucesso. No caso do pródigo, o seu retorno à aldeia natal é grandemente complicado pela maneira como a deixou. Ele fora embora tendo ofendido toda a comunidade, tomando posse e vendendo a sua herança enquanto o seu pai ainda estava vivo. Agora ele perdera o dinheiro para os gentios. Dentro de viés, Bailey (1985), ainda salienta que, desta forma, ele pode esperar tranquilamente que os seus parentes e amigos o "cortem" com uma solenidade denominada kezazah da comunhão da aldeia. A sua entrada na aldeia será humilhante e cruel, pois as hostilidades potenciais da aldeia se abaterão sobre ele por ter insultado o seu pai, vendido a terra, e agora tê-la perdido. Para este problema ele aparentemente não tem solução. A aldeia simplesmente tem que ser enfrentada.

Os três relacionamentos primordiais do pródigo, da maneira como ele os vê do país distante, agora podem ser resumidas. Ele planeja viver na aldeia, como servo contratado, assalariado. Com esta posição, a sua condição será assegurada. Ele poderá talvez desincumbir-se das suas responsabilidades para com seu pai, e o problema de quaisquer relações com o seu irmão é eliminado. A aldeia, com a sua zombaria precisará ser enfrentada. Ele precisará pagar este preço doloroso a fim de voltar para casa. Ele precisa ir para casa porque está morrendo de fome.

Tendo verificado o que significava a confissão planejada do pródigo, em termos dos seus relacionamentos primordiais, agora podemos examinar esta mesma confissão à luz dos ensinamentos rabínicos a respeito do arrependimento. Tentaremos mostrar nesta seção que a confissão planejada está em harmonia com as atitudes rabínicas conforme a abordagem realizada por Bailey. Acerca de seu retorno, baseando-se no conhecimento tácito adquirido na vivência com aldeões e beduínos, Bailey lembra que:

Provavelmente o pai espera que o seu filho fracasse. Ele é considerado como morto. Se voltar, será como um mendigo. O pai também sabe como a aldeia (que. para começar. devia ter-Ihe dito que ele não devia ter liberado a herança) tratará o rapaz por ocasião da sua chegada. O pródigo será escarnecido por uma multidão que se reunirá espontaneamente quando a noticia correr a aldeia. (BAILEY, 1985, p. 229).

 

Falando da sua volta. Ben Sirach menciona quatro coisas que o amedrontam. Duas delas são "o Ódio de uma cidade inteira, e a sedição de um povo." (Eclesiástico 26: 5). O filho pródigo retorna para enfrentar ambos os terrores citados por Ben Sirach: o ódio de uma cidade toda, e certamente a reunião de uma turba hostil. Assim que o pródigo chegar aos limites da aldeia e for identificado, uma multidão começará a se ajuntar. Ele será sujeito a cantigas zombeteiras e muitos outros tipos de abuso verbal e quem sabe até físico.

5. METÁFORAS E IMPLICAÇÕES CRISTOLÓGICAS NA PARÁBOLA 

Podemos concordar com Derret (2005) que o pródigo talvez pretendesse trabalhar e, dessa maneira, desincumbir-se das suas responsabilidades morais para com seu pai. Ao perder o dinheiro ele falhara naquelas responsabilidades. Em sua mente, imagina ele, que agora recuperará o que havia perdido. Isto é, ele se salvará. Em suma: Ele não deseja graça.

Todavia, o pai sabe muito bem como o seu filho será tratado se e quando voltar humilhado para a comunidade da aldeia que ele rejeitou. O que o pai faz nesta cena de volta ao lar pode ser, segundo Bailey (1985, p. 230), entendido melhor "como uma série de atos dramáticos calculados para proteger o rapaz da hostilidade da aldeia, e para restaurá-lo à comunhão da comunidade". Estes atos começam quando o pai sai correndo estrada fora. No entanto, ao avistar seu filho, "porém ainda distante", o pai não se contenta em esperar passivamente, ele corre para encontrá-lo e o abraça calorosamente.

Todavia, um nobre oriental nunca corre para lugar algum. Fazê-lo é humilhante. Ben Sirach confirma essa atitude quando diz: "O andar do homem dá a conhecer o que ele é" (ECLESIÁSTICO, 19; 28). Segundo Keck (1996, p. 302): "na antiga Palestina, o fato de um homem correr era visto como inconveniente ou como uma perda de dignidade". O pai estava preparado a violar tradições para reconciliar e dar boas vindas ao seu filho que se encontrava perdido. Um nobre oriental com roupas esvoaçantes nunca corre para parte alguma. Fazê-lo é humilhante. O texto diz: "Ele teve compaixão.” Bailey Sugere que:

Esta “compaixão” inclui especificamente a consciência da punição que o rapaz teria que enfrentar, se voltasse para a aldeia. E então, o pai sofre essa punição por ele, ao correr através da aldeia, assumindo uma postura humilhante enquanto o faz! Um ato desses depressa "atrairia uma multidão para o IocaI. (BAILEY, 1992, p. 230).

 

O pai faz com que a reconciliação se torne pública, na entrada da aldeia. Desta forma o seu filho entra na aldeia sob o cuidado protetor da aceitação do pai. O rapaz tendo enrijecido os nervos para enfrentar aquele vitupério, agora, espantado, vê o seu pai correndo em sua direção. Em vez de experimentar a hostilidade implacável que ele merece e prevê o filho testemunha uma demonstração visível e inesperada de amor em humilhação. Os atos do pai dispensam palavras. Não há palavras de aceitação e boas vindas. O amor expresso é profundo demais para ser mostrado através de palavras. Só atos conseguem fazê-lo. Sa'id escreve: "Cristo nos relata as palavras do filho a seu pai, mas não diz nada acerca de um discurso do pai a seu filho; porque, em verdade, o pai substitui palavras por beijos e substitui afirmação por expressão e os olhos falam pela língua" (SAID, 1970). Ainda lançando luz sobre essa abordagem cultural, Keneth E. Bailey assevera que:

O caráter do pai é definido pelas expressões "teve compaixão", "inclinou sobre seu pescoço" e "beijou repetidamente" refletindo, assim, seu coração compassivo, uma compaixão que precede a confissão do seu filho. A atitude amorosa do pai ao abraçar e beijar seu filho considerado imundo, e, consequentemente morto pelas leis de pureza judaicas, era uma crítica contra a postura judaica de violência e exclusão dirigida àqueles que não se enquadravam nas regras de pureza. O perdão imerecido era o oposto do que era esperado. Em vez de provar a hostilidade, o rapaz entra na aldeia sob o cuidado e proteção do pai.  (BAILEY, 1985, p.230)

 

Ainda na visão de Bailey as implicações cristológicas da referida parábola são indiscutíveis asseverando, para tanto, o seguinte:

Para os ouvintes palestinos, inicialmente o pai seria naturalmente um símbolo de Deus. Em seguida, à medida que a estória se desenrola, o pai sai de casa e, mediante um ato dramático, demonstra publicamente em humilhação um amor inesperado. A estrutura literária e o contexto cultural da estória identificam esse ato dramático como o ponto de retorno da primeira metade da parábola. Certamente Jesus pretendia que seus ouvintes vissem nesse ato uma representação dramática da maneira como ele recebia os pecadores. Quando o pai sai de casa para ir de encontro ao seu filho em amor e humildade, demonstra pelo menos parte do significado da encarnação e da expiação (BAILEY, 1985, p. 237).

 

Enquanto a estrofe 5 trata-se de total rejeição na estrofe 5' há total aceitação. Nessa demonstração de amor público inesperado, o pai procura seu filho tão ansiosamente quanto o pastor e a mulher procuram pelo que haviam perdido. Nessa mesma linha, Citando Bornhouser, Linnermann (1966) assevera que "o beijo no rosto é sinal de igualdade e o pai impede o filho de beijar a sua mão ou o seu pé". A palavra utilizada é καταφιλέω (katafileõo), que, conforme salienta Scholz (2009), pode significar beijar ternamente, ou beijar repetidamente. O primeiro significado seria feminino e, portanto, bastante impróprio. O segundo é no Oriente Médio, um costume plenamente masculino e culturalmente exato.

O filho reage com apenas uma parte do seu discurso preparado. O ouvinte/leitor já conhece o conteúdo do discurso completo, e por isto sabe o que esperar. A oferta de uma solução: “Faze de mim um servo assalariado" está faltando. Os comentaristas numerosos demais para os citarmos, presumem que o pai o interrompeu. Quanto a isso, novamente, Bailey retifica:

Entendemos que esta interpretação deixa passar despercebida a natureza crucial do que está acontecendo no evento, em uma parte importantíssima da estória. Se o rapaz foi interrompido, poderia terminar o seu discurso mais tarde, depois que o pai completasse as ordens que estava dando aos servos. (BAILEY, 1985, p. 231).

Poderíamos subentender que o fato de não fazê-lo indicaria interesse próprio, como a dizer: “Foi melhor do que eu esperava. Por que não receber tudo o que eu puder conseguir? Vou ficar em silêncio e aceitar. Se ele me der a filiação, quem vai querer ser trabalhador?” De maneira incisiva e contumaz, Bailey novamente pontua:

Certamente não é isto o que a omissão significa. Considerando-se a decisão prévia do pródigo, a filiação teria certamente algumas desvantagens; Se ele aceitasse a filiação teria que viver com seu irmão, e alimentar-se da propriedade de seu irmão. Mais uma vez estaria sob a autoridade total de seu pai. Ser-lhe-ia negada a autossatisfação de "ganhar a vida." A aceitação da filiação requereria uma decisão deliberada, com amplas ramificações. E claro que ele mudou de ideia (BAILEY, 1985, p.231).

 

Via (1973, p. 171) entendeu o significado desta mudança. Ele escreve: “O arrependimento finalmente tornou-se a capacidade de abrir mão do orgulho e aceitar a graça". Seguindo esta linha de argumentação, precisamos perguntar: “Por que ele mudou de ideia?" e, mais precisamente, “Quais são as ramificações da sua decisão?" Como já foi observado o pródigo volta para casa com uma maneira rabínica de entender o arrependimento. Ele fica abalado com a demonstração de amor em humilhação, levada a efeito por seu pai. Em seu estado de apreensão e medo, ele naturalmente experimentaria esta libertação inesperada como acontecimento inteiramente irresistível. Agora ele fica sabendo que não poderá oferecer nenhuma solução para o relacionamento entre eles, daí por diante. Ele percebe que o problema não é o dinheiro perdido, mas o relacionamento interrompido que ele não consegue curar. Agora ele entende que qualquer relacionamento novo precisa ser uma inteira dádiva de seu pai. Ele não pode oferecer nenhuma solução. Presumir que ele pode compensar o seu pai com o seu trabalho é um insulto. “Sou indigno" é agora a única reação apropriada.

Depois do arrependimento e da confissão do pródigo (estrofe 4') o pai vira-se para dirigir-se aos servos (estrofe 3'). Os servos estão ali na estrada com a multidão. Eles recebem ordens específicas de vestir o filho, como os servos fazem com um rei. Não lhe é dito para ir, e banhar-se e mudar de roupa. Esta ordem de vestir o pródigo assegura um respeito apropriado da parte dos servos, que naturalmente estão esperando ansiosamente algum indício da parte do pai, que lhes diga como tratar o filho. Se o pai tivesse indicado desprazer tão somente com um indiferente encolher de ombros os servos nada teriam feito por ele.

A melhor roupa certamente é a do pai. Bailey (1985, p. 232), imediatamente pontua que "o ouvinte/leitor oriental imediatamente subentenderia isto". A "primeira" (isto é, melhor) roupa seria a roupa que o pai usava em dias de festa e outras grandes ocasiões. (Et 6: 9). A ideia é que, quando os convidados chegarem para o banquete, e quando o povo afluir para vê-lo, para ouvir a sua história e congratular-se com ele pela sua volta, a roupa do pai assegurará aceitação da parte da comunidade. Com esta ordem o pai assegura a reconciliação entre o seu filho e os seus servos. Ao mesmo tempo, o pai assegura a definição da reconciliação de seu filho com a comunidade.

Terá esta roupa algum significado escatológico? Provavelmente. Jeremias apresenta argumentos extensos em favor desta ideia. Isaías 61 merece atenção especial nos ensinos de Jesus. O versículo 10 daquele capitulo diz: "Porque (ele) me cobriu com vestes de salvação e me envolveu com o manto de justiça." Jeremias escreve:

Pode ser lembrado que Jesus falou da Era Messiânica como uma nova roupa (Mc 2: 21 paz-.), e que ele comparou o perdão com a melhor roupa com que o pai vestiu o filho pródigo (Lc 15: 22);daí, não podemos duvidar que esta é a comparação que está por detrás de Mateus 22: 11-33. Deus lhe oferece as vestes limpas do perdão e da justiça imputada. (JEREMIAS, 1986, p.189).

 

A seguir, o pai passa instrução para que seus servos peguem a melhor túnica, um anel e sandálias para seu filho. É um sinal para o resto da aldeia de que o rapaz será tratado como filho novamente (Gen 41. 42; 1 Mac 6. 14-15). Ele é um homem livre, um convidado honrado, um filho. A demonstração do extremo amor do pai continua (v.23). Nota, então, que o problema nunca foi o dinheiro perdido, mas a restauração do relacionamento interrompido: O maior anseio do pai de família. Após ele assistir a demonstração de amor do Pai, compensar com trabalho é um absurdo.

Por fim o pai ordena que se mate o bezerro cevado. A escolha de um bezerro em vez de um cabrito ou ovelha significa que a maior parte da aldeia, se não toda ela, estaria presente naquela noite. Matar um bezerro e não convidar a comunidade seria um insulto para esta e um desperdício para a família. De fato, a principal ideia ao se matar um animal tão grande é ser capaz de convidar toda a comunidade. Como aconteceu com a mulher e o pastor, a alegria precisa ser compartilhada por todos de todos os lados. Rihbany discute a natureza pactual de se matar um animal por causa de um hóspede. Ele escreve:

O costume antigo, cujos ecos ainda não cessaram no Oriente, era que o hospedeiro honrava o seu hóspede de maneira mais elevada matando uma ovelha no limiar da porta de entrada da casa, a chegada do hóspede, e convidando-o a pisar no sangue para entrar na casa. Este ato formava o “pacto de sangue" entre o hóspede e seu hospedeiro. Fazia deles uma só pessoa. Para nós, uma das expressões mais cordiais e dignas ao convidar um hóspede, especialmente de uma cidade distante, era: “Se Deus nos favorecer com uma visita tua, mataremos um zebíhat!" Neste grande regozijo pela volta de seu filho, o pai do pródigo faz questão de recebê-lo como se ele fosse o hóspede mais honrado. "O bezerro cevado", e não apenas uma ovelha, é morto - como o zebihat de um novo pacto entre pai amoroso e seu filho que "estava morto e está vivo novamente"; estava perdido, e foi achado. (RIHBANY, 1916, p.160).

 

O pedido para matar um novilho cevado representa o clímax de sua hospitalidade. Para Greg Forbes o verbo “regozigemo-nos” que encerra este versículo é de extrema importância, pois:

Aponta para uma celebração comunal, um tema que conecta cada uma das três parábolas deste capítulo. O banquete serve como uma oportunidade para reconciliar o rapaz com a aldeia inteira. Além do que, a celebração e a imagem festiva contrastam com as alfarrobas e ajuda a sublinhar as extremidades do perdido-achado, do pecado-arrependimento e da alienação e restauração. Dando o contexto de perdão-salvação, a imagem aqui pode também carregar ecos do banquete messiânico.   (FORBES, 1999, p. 221).

As palavras do pai no v. 24 traduz o motivo da festa "porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado". O jovem rapaz estava cultural e moralmente "morto" e completamente "perdido", portanto, separado da comunhão da sua família e do amor de seu pai. No entanto, esta situação aparentemente irreversível se reverteu. Por isso, a celebração tem início.

Para os ouvintes palestinos, inicialmente o pai seria naturalmente um símbolo de Deus. Em seguida à medida que a estória se desenrola, o pai sai de casa e, mediante um ato dramático, demonstra publicamente, em humilhação, um amor inesperado. A estrutura literária e o contexto cultural da estória identificam este ato dramático como o ponto de retorno da primeira metade da parábola. Certamente Jesus pretendia que os seus ouvintes vissem neste ato uma representação dramática da maneira como ele recebia os pecadores. Quando o pai sai de casa para ir de encontro ao seu filho em amor e humildade, demonstra pelo menos parte do significado da encarnação e da expiação.

E interessante refletir no que teria acontecido à estória se o pai não tivesse feito uma demonstração visível de amor inesperado. O resultado obviamente seria mais um servo assalariado, mas nenhum filho. Como veremos o pai já tinha em casa um filho do tipo de servo. Ele queria algo mais; e esta era a única maneira de conseguir um filho, dado o fato da desavença e da determinação do mais velho. O amor do pai foi sempre profundo e duradouro. Mas o filho não entendeu este fato. Se o pai tivesse esperado em casa, teria tido outro servo. Se ele sai em uma demonstração abaladora, humilhante, desse amor o rapaz o verá e entenderá talvez. Se isto acontecer, então o pai terá outro filho. Em conclusão, portanto, a expiação é pelo menos “ouvida de passagem" na parábola.

6. O FILHO MAIS VELHO: UMA PSEUDOLEALDADE

A celebração serve como estímulo para a segunda parte da parábola. No verso 25, a cena muda para o filho mais velho que está voltando de seu trabalho no campo. De acordo com o teólogo Scott (1989) "esta imagem evoca o quadro de um filho ainda em casa, porém distante de seu pai". Ao se aproximar ele ouve a celebração, música e dança. Ele chama um dos meninos (Id. Ibid) e pergunta o que estava acontecendo (v.26).

A resposta segue no v.27 "teu irmão está presente, e matou teu pai o novilho cevado, porque em boa saúde o recebeu de volta". No v. 28 o filho mais velho irado, pelo rápido perdão oferecido ao seu irmão, recusa entrar na casa para participar da celebração. Forbes (1999) assevera que o verbo imperfeito "queria" expressar bem sua persistente recusa em entrar para juntar-se na celebração. Novamente a trama é caracterizada pela distância e separação entre o filho e o pai. Bailey (1985) observa que a ira e a recusa de participar da celebração eram insultos profundos contra o pai diante do público. Todavia, o paralelismo continua quando mais uma vez o pai se humilha ao sair de sua casa para se encontrar com seu filho, uma demonstração de amor inesperado. Em vez de censurar seu filho ele suplica para que entre. Forbes (1999, p. 222) evidencia que "a recusa persistente do filho vem ao encontro da persistente suplica do pai".

No verso de número 29 o filho mais velho começa a dar forma a sua ira. Em todo o tempo o irmão mais novo se dirige a seu pai respeitosamente "Pai", mesmo em seu solilóquio (v. 12, 18, 21). Entretanto, seu irmão mais velho recusa em reconhecer sua relação com o seu pai e com o seu irmão. Keck (1996, p. 303), observa que "ele abre seu discurso com a palavra "veja" em vez de "Pai"". Mesmo assim, o irmão mais velho julgava-se um filho modelo e servidor de seu pai. O uso do verbo "sirvo" δούλω demonstra que ele não entendia o que significava a relação entre pai e filho". De fato, ambos os filhos acreditavam de forma errônea que o seu pai os aceitariam por agirem como servos. A ironia lucana transparece na continuação do discurso do filho mais velho. Ele se aproxima e ouve sinfonias (συνΦωνίας) e danças. E quanto a esta palavra Bailey pontua que:

[...] A palavra συνΦωνίας (talvez se refira a uma flauta dupla). As versões orientais antigas incluem universalmente o cântico. Em muitos casos isso parece ter acontecido por se entender como significando "vozes em conjunto". Este versículo tem mais variações de traduções nas versões orientais do que qualquer versículo examinado para este estudo... Está claro que havia uma celebração ruidosa, impetuosa, alegre em curso quando o filho mais velho se aproximou da casa. (BAILEY, 1985, p. 239).

 

Ao chegar em casa o texto mostra que o filho mais velho apresenta suspeitas o que, culturalmente falando, não seria uma reação esperada de um filho que tenha uma relação normal com sua família. Nesse aspecto Bailey, com muita propriedade também adverte que:

Um filho que tenha um relacionamento normal com sua família entrará imediatamente, ansioso por participar da alegria seja qual for a sua fonte. Ao ouvir o ritmo da música ele percebe imediatamente que é uma ocasião festiva. Os ritmos da aldeia são específicos e conhecidos. O filho mais velho não corre, como se era de esperar. Ele fica ressabiado, sem motivo.  (BAILEY, 1985, p. 240).

 

Não obstante, pouco depois de envergonhar seu pai publicamente, ele alega que nunca havia desobedecido a uma só das ordens de seu pai. Indignado, no v.30, ele dirige suas criticas a seu irmão referindo-se de forma depreciativa através da expressão "este teu filho", preocupando-se apenas com a propriedade desperdiçada com as meretrizes. Conforme Thayer (1998) referencia no verbete de número 4349 no “The Greek-English Lexicon of the New Testament. International Bible Translator" a palavra "meretrizes" metaforicamente pode assumir o significado de "idolatria". É possível que tal palavra tenha sido inserida no texto não simplesmente para denotar "uma mulher que vende seu corpo", mas, para fazer menção de forma pejorativa a nação gentílica considerada idolatra e impura pelos judeus. Em sua fala final o filho mais velho novamente demonstra a sua decepção por seu pai ter matado um novilho cevado para festejar o retorno de seu irmão. Na sua concepção, este ato demonstrara certa preferência do pai pelo seu filho mais novo.

Com esse comportamento, de acordo com Bailey (1985), o filho mais velho está idiomaticamente declarando que "não faz parte da família". Sa'id ajuda muito com a sua perspectiva oriental das relações familiares, e a sua maneira de entender as frases usadas. Ele escreve:

Ele (o filho mais velho) mostra insatisfação com a casa de seu pai. (Ele diz) "para me alegrar com meus amigos". Desta forma, ele não é melhor do que o seu irmão mais jovem, que tomou posse da sua porção e viajou para um país distante. A diferença entre eles é que o filho pródigo era um "pecador honrado" pelo fato de ser perfeitamente aberto para seu pai. Ele disse a seu pai tudo o que estava em seu coração. Mas o irmão mais velho era um "santo hipócrita," porque escondia os seus sentimentos no coração. Ele permaneceu na casa todo o tempo, odiando seu pai. Ele nega-se a ter qualquer relacionamento com seu irmão, e desta forma nega qualquer relacionamento com seu pai. Ele diz: "Este teu filho," em vez de dizer "meu irmão"... Com esta declaração o filho mais velho se excluiu da família sagrada, e cominou a sentença de "proscrito" para si mesmo.  (SA'ID, 1970, p. 402).

 

Embora o filho mais velho não tenha se dirigido ao pai de forma respeitosa "Pai", a primeira palavra do pai "filho" demonstra todo o seu afeto por ele (v.31). A sentença quiástica sublinha o relacionamento entre eles: "tu sempre comigo estas e tudo o que é meu é teu." Com efeito, o pai relembra ao filho mais velho que por direito tudo lhe pertence porquanto seu irmão mais novo já havia recebido a sua parte na herança. As ações do pai demonstram o seu amor por ambos os filhos. O novilho cevado não foi morto porque o pai tinha alguma preferência pelo filho mais novo, mas porque ele havia retornado com vida (v. 32). Neste mesmo verso o pai não está somente justificando a festa, antes está convidando o seu filho mais velho a juntar-se a celebração. Bailey (1985, p. 225) notifica que "com a frase "esse teu irmão" o pai enquadra o filho mais velho na mesma categoria do mais novo, eles são irmãos, e relembra o relacionamento que o filho mais velho teimava ignorar (v.30)". O mais velho não tem o direito de fazer distinção. Se ele quer tê-lo como pai é necessário que também aceite a seu irmão. A parábola não diz qual foi a resposta final do irmão mais velho. Ela deixa em aberto. Caberia ao leitor da parábola a tarefa de dar a resposta.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim sendo, nas entrelinhas de nosso texto podemos vislumbrar lampejos do contexto em que estava inserida ao ouvinte judeu do primeiro século. A atitude do pai amoroso, do filho mais novo e do filho mais velho nos remete respectivamente a ação de Deus, em relação a todos quantos se encaixem na proposta da narrativa, sejam fariseus ou gentios. Ambos os grupos possuíam posições antagônicas em suas identidades. A proposta mais tolerante da parábola conflitava com as leis de pureza e com a visão auto-elevada dos fariseus e doutores da lei que, por sua vez, se contrapunham a do ouvinte não judeu. No contexto em questão, os principais religiosos haviam enrijecido suas visões mentais, emocionais, legais (quanto a Torah) e cerimoniais que os distanciavam da prática da comunhão de mesa com os todos (SIRAC, 33:19-23), desvirtuando, desapercebidamente, seu próprios religiosos.

Coblin (1988) salienta que eles desejavam evitar quaisquer processos de assimilação, pois temiam perder a sua própria identidade. Devido a esse conflito, a parábola apresenta um projeto audacioso e inclusivo para ambos os grupos. Sua intenção era romper as fronteiras que geravam violência e exclusão. Tanto o filho que estava geograficamente longe do pai quanto o que estava perto, a miúde, desobedeceram ao mandamento divino.

O perdão do pai, Deus, seria somente concedido por meio do reconhecimento de tal erro e da comunhão de mesa e, dessa forma, ambos seriam aceitos pelo pai no banquete messiânico (Id. Ibid), que independe do esforço individual ou merecimento, mas pura e simplesmente pela iniciativa graciosa do chefe da casa. O texto possui a estrofe final num desenquadre (uma espécie de "hiato" parabólico), que, diferente das outras estrofes, não encontra par junto às demais composições da estrutura. O vazio está posto, o "instar" do chefe de família continua ecoando na conclusão parabólica. Cabe, pois, ao ouvinte/leitor a concessão da resposta.


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