ELEMENTOS DE UM DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL
O marco fundamental de todo Estado é a sua carta de intenções, que consubstancia em um documento solene todo corpo normativo que regerá os passos do novo Estado.
É na sua Constituição que está presente a legitimação do Estado para uso dos mecanismos de proteção dos bens jurídicos relevantes para convívio e desenvolvimento harmônico em sociedade.
Um direito penal Constitucional obrigatoriamente tem que ser irradiado pela força normativa da Constituição, onde os seus elementos estão galgados nos princípios fundamentais, destacando a Dignidade da Pessoa Humana, nos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e nos princípios Constitucionais penais, sem esquecer as teorias incorporadas pela lei fundamental, aplicadas ao direito penal.
A Constitucionalização do direito penal moderno não dá margem à sua atuação máxima, mas de um direito penal mínimo, onde este tutela bens necessários à sociedade, em contra partida o individuo é protegido através do escudo Constitucional de um direito penal absoluto.
Com efeito, o delineamento do Direito Penal nessa perspectiva, fincado em um modelo de Estado Democrático de Direito ou com diz Luigi Ferrajoli apud Rogério Greco (2009, p.10) “Estado Constitucional de Direito”, deve seguir uma série de princípios ou regras estipuladas, explícita ou implicitamente, pela Lei Fundamental do Estado, para que não haja abusos no seu manuseio como instrumento de tutela dos bens jurídicos relevantes que estruturam o conviver coletivo.
    

1.1. A supervalorização dos princípios na busca de um direito penal garantista.
Em um sistema jurídico moderno, é irrazoável a aplicação das leis de forma isolada, sem que se tenha um vetor mestre para guiar a incidência dos seus dispositivos, sendo inaceitável desprezar os valores ontológicos para a sua aplicação.
O processo de Constitucionalização pelo qual vem sofrendo o ordenamento jurídico brasileiro tem atribuído aos vários ramos do direito pátrio, reserva ao direito penal o patamar garantista que se espera de um direito positivo hodierno.
O direito penal brasileiro é exemplo significativo do garantismo Constitucional, porquanto, os princípios Penais Constitucionais procuram nivelar a relação entre o poder punitivo estatal na persecução penal e os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.


1.1.1 Princípios versus Regras
Questão de relevo e corroborador com o fundamento principiológico de todo o ordenamento protetivo é a função normativa desempenhada pelos princípios Constitucionais, pois, mais do que componentes de um instituto jurídico pertencente a um ramo do direito, os princípios exercem verdadeira função normativa a serem observados na aplicação das leis repressoras do ilícito, e também como balizas para a sua interpretação.
Como se sabe, o Direito se materializa por meio de normas e estas por sua vez se exprimem por meio de regras ou princípios.
As regras penais disciplinam uma situação, dada no caso concreto e quando ocorre essa situação, há a incidência da norma penal, quando não ocorre, por sua vez não tem incidência. Desta feita as regras, são mandamentos definitivos, que são cumpridas ou não, dependendo de sua validade, e se validas têm que ser cumpridas nos termos que é exigido.
Em artigo elaborado por Natália Braga Ferreira, ao citar, DWORKIN: (2002, p.39) pode extrair que as regras seguem a forma do tudo-ou-nada, quer dizer, dessa forma que diante do caso concreto os fatos têm que está nos termos que a regra estipula então a regra é válida, se não será invalida, ou não se aplica.
Os princípios consagrados nas Constituições modernas deixaram de ser consideradas meras recomendações de caráter moral, passando ao patamar de norma, exercendo função fundamentadora, quando outras normas extraem deles o seu fundamento de validade, supletiva ou integradora quando diante da lacuna normativa o magistrado os aplica, interpretativa pois o aplicador do direito não pode se esquiva de observá-los ao aplicar a lei material ou processual penal.
Diferentemente das regras os princípios possuem um espectro de incidência muito mais alargado que aquelas. Pois, quando da aplicação dos princípios se houver colisão entre eles não são excluídos do mundo jurídico, mas são utilizadas regras de ponderação para aferir o que melhor se enquadra no caso concreto.
Segundo (ALEXY: 2002, p. 99), os princípios são "mandados de otimização", onde ao ordenar que seja feito algo, isso deve ser feito na maior medida possível, executando-se dentro de um limite da efetividade. Aponta ainda, que estes não têm caráter de definitividade, ou seja, quando um princípio for fundamentador de uma decisão, não quer dizer que determina um resultado definitivo, mas se for necessário diante dos fatos, pode ser substituído por outro de teor contrario, não possuindo um conteúdo de determinação.


1.1.2 Princípios Constitucionais Penais limitadores do jus puniendi Estatal.
Não podemos falar de garantias penais sem nos referir aos princípios penais Constitucionais, partindo do princípio da intervenção mínima que é um dos principais niveladores da intervenção do direito penal na relação entre os indivíduos e o Estado, tornando-se a ultima saída para a resolução dos conflitos entre as partes, sendo assim, a ultima ratio, pois, só justificando a sua atuação quando nenhum outro ramo do direito for suficiente para a resolução do problema.
Destarte, seria desmedida a invenção do direito penal, quando, por exemplo, por falta do dever de cuidado, um entregador de eletrodomésticos deixasse a porta do caminhão que transportava os produtos aberta e estes viessem a cair causando o perecimento dos produtos.
Da mesma forma, seria desmedida a sua intervenção quando no âmbito da administração publica um agente publico cometesse uma falta disciplinar e esta tivesse que ser solucionada na seara penal.
Ao lado da intervenção mínima, atuando no mesmo viés, está o princípio da frangmentariedade, mais do que um principio e uma característica do direito penal, onde o direito penal faz uma triagem dos fatos que tem verdadeira relevância para a sua ingerência, passando por seu crivo aquelas condutas que possuem potencialidade lesiva para causar algum dano aos bens juridicamente tutelados pelas normas incriminadoras, pois, nem todo ato ilícito é alvo merecedor de atenção penal.
Tornando mais contundente o raciocínio desenvolvido supra, comungamos dos ensinamentos de Edilson Mougenot Bonfim e Fernando Capez, apud, Sebastián Soler que no seu estro aduz.

Trata-se de gigantesco oceano de irrelevância ponteado por ilhas de tipicidade [...] O espaço entre uma e outra incriminação é a zona de liberdade [...] Enquanto o crime é um naufrago a deriva, procurando uma porção de terra à qual possa achega-se. (BONFIM e CAPEZ, 2004, p.126).

Mostra-se às claras, que o sistema penal é um sistema fragmentado onde nem todos os acontecimentos ilícitos são de sua guarida, restando demonstrado que esse princípio constitui uma garantia ao individuo de não ter o seu direito à liberdade violado, exceto se realmente praticarem as condutas descritas nos tipos penais violando os seus imperativos legais, e que por conseguinte, possibilitem a causação de prejuízo ao bem jurídico protegido.
Nesta toada, tem-se demonstrado a pertinência do tema no caso concreto por decisão do Superior Tribunal de Justiça em sede de Habeas Corpus:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS .FURTO DE ÁGUA VITIMANDO A COMPANHIA DE ABASTECIMENTO. RESSARCIMENTO DO PREJUÍZO ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. COLORIDO MERAMENTE CIVIL DOS FATOS. CARÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. VIABILIDADE.
1. O Direito Penal deve ser encarado de acordo com a principiologia constitucional. Dentre os princípios constitucionais implícitos figura o da subsidiariedade, por meio do qual a intervenção penal somente é admissível quando os demais ramos do direito não conseguem bem equacionar os conflitos sociais. In casu, tendo-se apurado, em verdade, apenas um ilícito de colorido meramente contratual, relativamente à distribuição da água, com o equacionamento da quaestio no plano civil, não se justifica a persecução penal. 2. Ordem concedida para trancar a ação penal n. 0268968-47.2010.8.19.0001, da 36.ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de Janeiro.ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora." Os Srs. Ministros Og Fernandes, Sebastião Reis Júnior e Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS) votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE). Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, 28 de junho de 2011(Data do Julgamento) Ministra Maria Thereza de Assis Moura Relatora.

Insta destacar também, que outro agente limitador da atuação desenfreada do jus puniendi do Estado é o principio da culpabilidade, sob o postulado basilar do (nulla poena sine culpa), não havendo pena sem culpa e por isso refuta veementemente a aplicação da responsabilidade penal objetiva, porquanto se o agente não agir com dolo ou culpa não há que se pensar em punibilidade.
A observância do referido principio aflora a idéia do nível de reprovabilidade da conduta do indivíduo perante os seus semelhantes, e se essa conduta realmente é atípica e antijurídica, tendo-se também que aferir-se se houve violação dos requisitos que caracterizam a conduta como culpável, por exemplo, imputabilidade penal potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Indubitavelmente, é necessário também que seja considerada culpável, vale dizer, reprovável socialmente. Os crimes de perigo presumido como se pode ver, violam grosseiramente o principio em discussão extrapolando a esfera da culpabilidade, condenando o sujeito por praticar uma conduta imaginária. Nas linhas mestras de Luis Regis Prado:

A pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade - proporcionalidade na culpabilidade – é uma medida lídima expressão de justiça material peculiar ao Estado democrático de Direito delimitadora de toda responsabilidade penal. A culpabilidade Dave ser entendida como fundamento e limite de toda pena. Esse princípio diz respeito à dignidade do ser humano. (PRADO, 2008, p.135).

Neste azo, a responsabilização penal pela pratica de delitos, só se torna digna de aceitabilidade e persecução penal se houver dolo ou culpa na conduta comissiva ou omissiva do agente, e, por conseguinte a aplicação proporcional da reprimenda, havendo presunção relativa na conduta do agente, onde lhe é garantido o devido processo legal, o que não ocorre nos crime de perigo abstrato, pois, estes geram presunção absoluta de culpabilidade sendo inadmissível para o direito penal Constitucional.
Outro princípio de caráter garantista seria o princípio da transcendentalidade ou alteridade, este por sua vez proíbe qualquer incriminação de cunho meramente subjetivo, sem que ocorra lesão a um bem jurídico.
Nesta linha, Edilson Mougenot Bonfim e Fernando Capez, (2004, p16) ao reforçar o entendimento da seguinte forma, “a conduta puramente interna, puramente individual- seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente -, falta a lesividade que pode legitimar a intervenção do direito penal”
Assim, o fato para ter perfil delituoso, necessita de comportamento que ultrapasse a esfera intima do sujeito exteriorizando uma conduta típica, antijurídica e culpável, capaz de causar prejuízo a outrem, não havendo lugar para se perseguir condutas imorais.
Indispensável na analise garantista de um Direito Penal Democrático é o principio da ofensividade ou lesividade, onde sua presença coloca-se como um dos pilares de sustentação do sistema Penal Constitucional.
Tal princípio tem por vertente, a idéia de que não há delito sem que haja lesão ou ameaça de lesão a bem jurídico tutelado pelo direito penal, sendo assim, é repudiada qualquer possibilidade da incidência de um tipo penal na conduta do agente sem que essa conduta tenha pelo menos gerado perigo de lesão a um bem jurídico determinado.
Sob o enfoque do professor Nilo Batista (2001, pp 92-94) este trás quatro vertentes que explicam bem a aplicação do princípios da ofensividade: 1- proibição que digam respeito a atitudes internas do agente; 2- proibição de incriminação de comportamentos que não excedam ao âmbito do próprio autor; 3- proibição de incriminação de simples ou condições existenciais; 4- proibição de incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico  .
Resumindo os pontos apresentados pelo autor acima, engrenamos o raciocínio que o Direito Penal só pode atuar incidindo sobre condutas que extrapolem a esfera do próprio agente e que venham a atingir terceiros ou os seus bens, onde as condutas que se reservam ao intimo do agente não legitimam a incidência penal ante a inexistência de lesão ou perigo de lesão, visto que na realidade concreta não há conduta danosa.
Anota de forma clara o professo Luiz Flavio Gomes apud Rogério Greco que:

Uma vez que se concebe que a ofensividade é condição necessária ainda que não suficiente da intervenção penal e que o delito é expressão de uma infração ao direito (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido), tem relevância impar exigir do legislador a descrição do fato típico como uma ofensa a determinado e especifico bem jurídico. (GRECO, 2011, p.92).

A função do princípio da ofensividade é controlar e limitar a pretensão punitiva desregrada do Estado, evitando que os indivíduos sejam punidos por praticarem condutas sem relevância penal, onde no conteúdo da ação ou omissão não comportam capacidade de ofensa a um bem juridicamente tutelado pelo direito penal e relevante para o estado.
Nestes termos, o sistema principiológico do direito penal garantista moderno fomentado no Estado Democrático de Direito não é apenas vetor de criação de tipos penais incriminadores, mas também encarregados selecionar os bens juridicamente indispensáveis ao desenvolvimento, convívio, equilíbrio e paz social.
Existindo assim, uma adequação social do comportamento que se quer reprimir ou punir. Sendo categoricamente explicitado nas linhas acima, que o Direito Penal fica impossibilitado de atuar naquilo que pertencer à esfera intima do individuo e se não houver ofensa a bem de terceiro, não há que falar na ingerência do Direito repressor.