O que é mesmo revolução?

Nesse texto tenho a intenção de expor as recentes conquistas democráticas presentes no mundo Árabe de forma a contextualizá-las como um passo complementar a outros momentos vividos na história recente do ocidente, aplicadas agora, àquela realidade. Tento desmistificar a impressão de que essa revolução caiu de para-quedas na história, supostamente introduzida nela por um fator apenas: a interatividade digital. Parto da premissa de que a história pode dar passos largos ou até mesmo grandes saltos, mas ela sempre parte de algum lugar, sendo inevitavelmente o complemento de conquistas anteriores.

Os primeiros meses de 2011 vão ficar conhecidos na história como o período que disseminou uma onda de revoluções e protestos em nações sedentas por democracia no mundo árabe. A pergunta que se faz sobre tais acontecimentos é: de que forma os interpretaremos e para qual versão dos fatos emprestaremos a verdade? Sim, pois qualquer registro de um fato histórico é sempre uma interpretação sobre o mesmo para o qual emprestamos o conceito de verdade e não necessariamente a verdade em si. Portanto quem escreverá a história provavelmente serão todos aqueles que, discutindo sobre os fatos, pactuarem conceitos sobre o ocorrido em discussões que podem coincidir ou não com o que lá se fez. Injusto?

Enfim? Como será conhecida essa revolução? Uma revolução sem líderes? Mas revolução é revolução se o sistema deposto volta após a revolta com nova roupagem? Isso quer dizer que deverão existir líderes? pelo menos no processo de reconstrução democrática, que a meu ver é no mínimo tão importante quanto a deposição de um ditador. Ela será conhecida como a revolução que reinventou os métodos de atuação democrática por meio da interação digital? Para responder essas perguntas um questionamento deve ser feito a priore: de onde ela surgiu? Já para podermos ampliar tais conceitos e aplica-los a realidades (nem tão ditatoriais, nem tão democráticas assim) como a nossa, devemos perguntar: como podemos fazer igual?



1 ? Desobediência civil e a lei da conveniência

Henry Thoreau, em seu tratado sobre a desobediência civil afirma: "Todos reconhecem o direito à revolução, ou seja, o direito de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis a sua tirania e ineficiência." A definição de desobediência civil, para ele, iniciava na escolha da motivação que governava cada ação. Para Thoreau a ação do homem enquanto peça do quebra-cabeça social deve ser moldada pela conciência, não pela lei. É na escolha entre motivar seus atos pela consciência ou moldá-los pela lei que o homem decide-se pela desobediência ou pela obediência civil, respectivamente. Ele chega a afirmar, como um bom radical, que por mais que uma lei fosse editada sobre a égide de um governo democrático, tal norma não seria necessariamente uma lei justa, exemplificando em seu texto que as massas, por obedecerem a lei da conveniência, tendem a preferir o conforto de injustiças suportáveis, ao desconforto do conflito proveniente da revolução. Segundo ele, para as massas, o ato de pesar as perdas e ganhos existentes nessas duas opções é que determina o processo de escolha entre agir, indo de encontro as leis e praticando a desobediência civil, ou omitir-se, obedecendo-as.



2 ? Quebrando a lei da conveniência: do conformismo à revolução

Partindo desse viés, podemos completar o que foi dito por thoreau no tópico passado, afirmando que se a opção de um povo, num primeiro momento, diante de um sistema ditatorial é conformar-se a ele optanto por suportá-lo, sua tendência é, com o decorrer dos anos romper com o mesmo. Tal processo de ruptura funcionaria como uma natural EVOLUÇÃO social, política, cultural e econômica de qualquer povo que esteja submetido a um sitema político-administrativo. O conflito que permeia o rompimento com o estado de emergência estará tão mais próximo do conceito de revolução, quanto mais próximo estiver tal governo do conceito de uma ditadura. Com isso pode-se perceber que não é necessário estar aprisionado a um governo ditatorial para romper com ele, ou para romper, no mínimo, com características injustas inerentes a ele. O já citado pensador segue confirmando tal constatação quando diz: "O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente."



3 ? A velocidade da evolução

Nessa evolução (partindo da inércia confortável da omissão ao desconforto do conflito necessário) podem atuar componentes destinados tanto a retardar como a catalizar esse processo.



3.1 ? O retardamento

O isolamento cultural, político e geográfico (praticamente impraticáveis nos dias atuais, embora seja plenamente executado como estratégia atuante na Coréia do norte, por exemplo) bem como a alienação dos nacionais provenientes da baixa educação e da exploração estratégica da miséria por tal governo, entre outras situações intrínsecas àquele povo ou sordidamente produzidas a ele podem roubar décadas a uma revolução. A excessiva propaganda governamental seguida de melhorias mínimas às condições de vida causam um efeito alienante semelhante, principalmente se tal sistema administrativo tem um comportamento ditatorial ameno e mascara, de forma eficiente, sua prática política.



3.2 ? A aceleração

É inegável que a interatividade digital proporcionada pela internet tenha um efeito catalizador nas construções democráticas que se avizinham, mas é preciso perceber que o impacto de sua atuação sobre o modo como o homem decide interagir em sociedade foi introduzido por fenômenos, já anteriormente atuantes, que serviram como gênese a tal processo. Exemplos disso são os fenômenos sociais inéditos surgidos no pós Segunda Guerra Mundial, como o fim do veto ao discurso (assim teorizava Michel Focault) facultando a palavra ao homem e permitindo seu protagonismo social. Outro exemplo disso são as recentes alterações no conceito do espaço reservado a atuação e mútua interação do ser humano como agente político, social, cultural e econômico (o espaço digital) bem como a alteração no tempo proveniente da interação entre governados e governo, que tende cada vez mais à instantâneidade. Todos esses processos observados na sociedade atual tem sido determinantes para acelerar esse processo de gradual indignação indispensável a mudança de qualquer sistema político-administrativo. Vejamos então cada um deles:



3.2.1 ? A reinvenção do espaço e a interação político-ideológica

A aceleração de um processo revolucionário dá-se, em grande parte, pela possibilidade que se tem de fazer idéias circularem livremente sobre um determinado território, alvo da revolução, ou fora dele buscando articular uma teia de relações que construirão a militância necessária aos objetivos revolucionários. Num primeiro momento, pode-se perceber que tal distância foi progressivamente diminuída pela globalização que nos trouxe o conceito de aldeia global. Imperialismos e massificação de culturas e comportamentos à parte, sabe-se que trocas entre culturas foi e são fundamentais para a evolução de estruturas sociais. Já num segundo momento esse espaço de interação não foi apenas progressivamente diminuído, como vinha sendo, mas reinventado pela internet. O espaço no qual se interage não é mais o solo de nenhuma metrópole, mas o próprio espaço virtual que a internet projeta. Tal reinvenção criou para a sociedade a possibilidade da articulação em massa dos seus interesses tornando-os exigências imediatas e não apenas remotas possibilidades de ação governamental, dada a eficiência dos canais de pressão pública, que é tão maior quanto mais numerosas são as manifestações de apoio a uma causa. Se esse fenômeno esbarrava em dificuldades geográficas para acontecer hoje não esbarra mais.



3.2.2 Ação governamental e atuação popular: a aceleração dos processos de adaptação institucional:

A reinvenção do espaço gera inevitavelmente uma remodelagem no tempo que permeia a interação. Era senso comum, até pouquíssimo tempo atrás, a noção de que as leis se reformavam, ou de que as instituições eram reconfiguradas e até criadas numa velocidade muito menor que as transformações sociais, naturais e tecnológicas para as quais deviam corresponder. Um novo tema de discussão, ou uma nova prática social devia passar por um lento e complexo trâmite político e cultural para só então adquirir um caráter normativo ou institucional, descontando é claro, o tempo consumido pelos interesses contrários e, na maioria das vezes, dominantes do cenário político local que acabavam por contribuir cada vez mais para o prolongamento desse prazo imposto às mudanças.

Parece que esse processo está mudando bruscamente e que o tempo decorrido entre os fatos delineados no seio da sociedade, com capacidade de alterar suas configurações, e a ação hábil dos governos oferecendo estruturas correspondentes a tais fatos tende a ser cada vez menor. Mudado está também o nível de tolerância que a sociedade tem tido com esse lapso temporal, tendendendo ele a ser cada vez menor. Não se trata do surgimento de novos anseios, mas da intolerância cada vez mais crescente ao seu não atendimento, ou à demora em fazê-lo.

Adiciona-se a esse processo, potencializando-o, o alargamento dos canais de pressão política, característica imediata do surgimento desse novo espaço de interação, como já foi debatido no tópico anterior, e que é proveniente da crescente capacidade de auto-organização da opinião pública, incidindo e corroendo irreversivelmente o muro que distancia os gestores das massas indignadas.

Me parece que em tal movimentação (seja a diminuição do tempo na retroação governamental aos anceios populares, seja no alargamento das vias de interação das massas com seus gestores) o controle político da máquina pública tende a fazer do governo, no jogo do poder, um mero coadjuvante fazendo do povo seu verdadeiro protagonista. Seria de fato a situação prevista por Henry thoreau, quando dizia: "Aceito com entusiasmo o lema "O melhor governo é o que menos governa"; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas conseqüências, este lema significa o seguinte, no que também creio: "O melhor governo é o que não governa de modo algum"; e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão."

O termo conhecido nos dias atuais e cunhado pelos teóricos do modelo neo-liberal, ao qual convencionou-se chamar de Estado Mínimo, não seria tão bem empregado aqui se quiséssemos interpretar o pensamento de Henry thoreau aplicando-o aos moldes atuais. GOVERNO MÍNIMO seria um termo mais adequado. Quando thoreau fala, num nível extremo, que o melhor governo é o que não governa, está falando de governo e não de Estado. Segundo ele o governo seria tão menor, quanto maior fosse a participação popular e quanto mais essa participação fosse movida pela consciência da justiça e não pela obediência cega e pragmática à lei. Inexistência de governo, para ele, seria uma participação popular tão presente e tão consciente, que fizesse dos governantes e das instituições meros instrumentos para o exercício da soberania popular.

Se é assim, me parece que os atuais acontecimentos que se delineiam no mundo Árabe (lá como modelo, mas não só lá, aqui também) refletem a luta de um povo, que influenciados por esses fenômenos, busca cada vez mais uma democracia plena e um governo mínimo. Essa busca é incentivada por algumas práticas que não nascem imediatamente na política mas desembocam principalmente nela. A reinvenção dos espaços de interação e consequentemente o alargamento dos canais de pressão popular ao governo, a diminuição do tempo de resposta governamental aos anceios de mudança motivado pela crescente intolerância à demora desse prazo, são fenômenos que refletem a necessidade de governo mínimo fazendo de qualquer ditadura que com eles coexistam, um sistema político instável e cada vez menos suportável.



3.2.3 ? Da libertação do discurso

Michel Foucault em sua obra "A ordem do discurso" afirma ser o discurso continuamente sabotado em sua expressividade pela institucionalização do poder, veja:

"suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada e temível materialidade. (?) É claro que sabemos, numa sociedade como a nossa, da existência de procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objecto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: jogo de três tipos de interditos que se cruzam, que se reforçam ou que se compensam, formando uma grelha complexa que está sempre a modificar-se."

Esse texto foi escrito em 1970, num contexto de luta contra a exclusão das mulheres, contra a discriminação racial, sexual e tantas outros processos excludentes a que as minorias estiveram historicamente submetidas. É notório que tais movimentos desenvolveram conquistas na últimas décadas que tornaram não só possível o reconhecimento dos direitos civis de grupos que antes eram discriminados, mas facultaram a eles a palavra, tornando possível a expressão de sua individualidade. Mas segundo Foucault, a "libertação" do discurso não se trata de simplesmente permiti-lhes exprimir reinvindicações a direitos básicos, nem mesmo de dar-lhes lugar no corpo docente das universidades, no universo político, no mundo cultural e artístico, nem em qualquer lugar onde se exprima o pensamento ideológico, ou onde, por executa-lo, estabeleçem-se relações de poder. Essa pretensa libertação do discurso que Foucault teorizava não aconteceria quando introduzíssemos essas minorias no seio dessas instituições, mas quando tais instituições, submetendo-se a um processo de reforma (ou revolução) não mais sabotassem o discurso de quem quer que fosse. Me parece que as idéias de Michel Foucault sobrepõem-se as de Henrry thoreau quando os dois, sob diferentes enfoques, pressupõem um GOVERNO MÍNIMO cujas instituições não "filtram" ou "controlam" a participação popular mais delas dependem para desenvolver qualquer ação. Governo mínimo e não Estado mínimo, com já disse. Sob esse ponto de vista penso também ser essa uma tendência que vem sendo edificada nas últimas décadas e que culmina na possibilidade de participação popular viabilizada pela interatividade digital. Tais fatos, entre tantos aspéctos políticos e culturais passíveis de análise, tem ocorrido no mesmo rítmo tanto para o ocidente como para o mundo árabe, mas sob a égide de regimes governamentais diferentes, aqui e lá, o que indica que tais processos democráticos possam ter equivalência proporcional entre revolução e reformas, aplicáveis tanto aqui como acolá.



Conclusão:

Não há! o processo ainda está em curso. Mas a pergunta que não me sai da cabeça é: como podemos adaptar esse processo à nossa realidade e fazermos, nós mesmos, nossa própria revolução, ou no mínimo nossas tão sonhadas reformas, política, educacional, florestal? etc? Penso que antes de tudo é preciso tentar compreender de forma cada vez menos simplória os processos históricos que delineiam os acontecimentos atuais e não olha-los apenas como fenômenos que se criam do nada, pois só então poderemos enchergar de forma prática os métodos e os caminhos a seguir, sem falar das injustiças que nos privaremos de cometer atribuindo a meios fatores o decurso de toda uma revolução. #Jan25