EFEITOS DA FALÊNCIA TRANSNACIONAL: a necessidade de uma legislação internacional única à luz do Caso Varig[1]

 

 

Diego Montelo[2]

Eldiane rodrigues[3]

José Humberto Gomes de Oliveira[4]

 

 

Sumário: Introdução; 1 – Breve histórico sobre os institutos falimentares; 2 – Processo Falimentar; 3 – Falência transnacional no caso Varig; 3.1 – O modelo da UNCITRAL; Considerações finais; Referências.

RESUMO

O presente artigo visa refletir acerca da necessidade de adoção de uma legislação uniforme acerca da insolvência transnacional, a ensejar a confecção de um modelo padrão que possa ser aplicado aos Estados, observadas as particularidades do direito interno de cada um, de forma a pacificar e tornar uniforme as questões falimentares que tenham repercussão internacional. O presente estudo aborda, ainda, a lei modelo da UNCITRAL, que proporcionou a criação de instrumentos de cooperação jurídica internacional nos casos de falências que atingem a jurisdição de mais de um país, e os benefícios decorrentes de tal adoção, exemplificando, no caso brasileiro, a falência decretada em desfavor da empresa VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense S.A.

Palavras-chave: Falência Transacional; Processo Falimentar; Varig; UNCITRAL.

INTRODUÇÃO

 

Comumente, em um mundo globalizado, surgem, a todo momento, novas tecnologias que encurtam a distância entre as nações e possibilitam um mundo virtualmente sem fronteiras. Observa-se facilmente esses fatores ao se verificar as relações jurídicas formalizadas por meio da rede mundial de computadores, a massificação do comércio internacional, entre outras questões. Com isso, cada vez mais as situações advindas dessas operações conclamam a ingerência estatal como forma de tentar proteger, o quanto possível, as relações jurídicas consolidadas internacionalmente. A partir dessa conjuntura, surgem problemas de ordens diversas e um, em especial, tem merecido com mais frequência a atenção dos países: cuida-se da falência transnacional.

Considerando que cada nação disciplina, em seu direito interno, os efeitos jurídicos do processo falimentar, faz-se necessário que cada país elabore uma legislação capaz de prever tais efeitos quando estão envolvidos na demanda litigantes de Estados diferentes e, ipso jure, sujeitos a regimes jurídicos distintos. A partir da confecção de um modelo único que pudesse solver as controvérsias entre os países que aceitassem se submeter a esse regime jurídico uniforme, a cooperação internacional aumentaria e, consequentemente, o processo falimentar com efeitos transnacionais seria dotado de maior segurança jurídica.

Neste estudo, esse será o ponto de análise. Abordar-se-á, no primeiro tópico, a evolução histórica que envolve os institutos falimentares e seus desdobramentos até os dias atuais, com a promulgação da Lei n. 11.101/2005, que disciplina a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

Posteriormente, no segundo tópico, será examinado o processo falimentar e suas peculiaridades, com o estudo da competência e todas as circunstâncias que lhe são inerentes.Por fim, no último tópico, que abrange a questão central a ser discutida neste estudo, o eixo do debate cinge-se à falência da empresa brasileira VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense S.A., e os efeitos transnacionais decorrentes dessa situação, com ênfase para o aparente conflito de jurisdições que se desencadeou entre Brasil e os Estados Unidos da América, que servem de ilustração para o entendimento que ora nos propomos a defender.

Será analisado, ainda, nesse último tópico, a lei modelo da UNCITRAL, que proporcionou a criação de instrumentos de cooperação jurídica internacional nos casos de falências que atingem a jurisdição de mais de um país, e os benefícios decorrentes de tal adoção, legitimando, portanto, um instrumento de otimização do processo falimentar estrangeiro que pode ser a saída mais sensata para muitas nações.

1 BREVE HISTÓRICO SOBRE OS INSTITUTOS FALIMENTARES

 

Tecendo sobre os institutos falimentares, a preocupação que vamos analisar aqui é sobre a questão de credor e devedor, se hoje podemos pedir a falência de alguém é por causa de uma evolução histórica. Na antiguidade vemos que era muito comum que ocorressem castigos para aqueles devedores que deixassem de cumprir os seus compromissos. O que acontecia comumente eram prisões desses devedores, morte, escravidão; tendo como maior característica envolver a vida ou a liberdade desse devedor, ou seja, o próprio corpo respondia pelas dívidas. Quando falamos em escravidão, o devedor seria o escravo do credor, mas não só o devedor, toda a família iria como escrava do credor. Havia também a exclusão, a expulsão do lugar, ou seja, se tornaria sem nacionalidade. As pessoas também podiam ser vendidas como escravas para fora da fronteira. E diversas formas de torturas até a morte.

O motivo para fazerem isso era como exemplo para que os demais devedores não deixasse de cumprir as suas obrigações. Temos exemplo também na Índia, em que, era um pouco diferente, por mais que houvesse escravidão não iria agredi-lo, matá-lo. No Egito, além transformarem o devedor em escravo em vida, eles sequestravam os cadáveres dos devedores. O propósito disso era trazer castigo a família que não poderia fazer todo o ritual de passagem tradicional dos egípcios.

Na Grécia também tinha os castigos tradicionais como escravidão e morte. Mas foi a primeira vez que apareceu uma legislação especifica para a relação devedor-credor. A Grécia também trouxe outra novidade. Até antigamente quem levasse alguém para a prisão, tinha que sustentar o preso em relação a sua alimentação, e a novidade foi liberá-la desse tipo de castigo. Liberando o preso solvente, se a família não tivesse condição de pagar a alimentação passava para o credor o dever da alimentação, mas depois dessa novidade o credor podia liberar o preso insolvente para não ter que arcar com a sua alimentação.

Sobre os institutos primitivos temos: Bonorum Cessia: Significa que é entregue o patrimônio pelo devedor de boa vontade, sabendo que tinha algo a dever e por ação própria entrega algo para saldar sua divida. Manus Injectio: Retirada de bens pelos credores.  Aqui é o credor que retira dos bens do devedor bens que possam equiparar ao valor da divida. Venditio Bonorum: vender os bens para o pagamento das dividas.  Na idade Média os devedores de má fé, que usavam de maneira dolosa para que fizessem as dividas, seriam punidas penalmente. Tinha também o critério de prioridade ao primeiro credor, ou seja, sabendo que o devedor estava quebrando o primeiro devedor poderia chegar primeiro e exigir a falência.

Nos institutos modernos, os Estados Unidos inventaram a Reorganização Societária: durante a reorganização o dono da empresa é retirado da administração desta, e é nomeado alguém, que será pago para que faça a administração da empresa no lugar, que se denomina de sindico. O dono perde temporariamente todo o direito de ação, não podendo então nem comprar e nem vender nada, assim como não pode retirar dinheiro da empresa. Não tem um prazo para que a empresa possa ficar se organizando. Na França, temos um instituto que se assemelha. A grande diferença para a reorganização societária americana é que possuem prazos de três anos, é o prazo máximo, caso não consiga seja considerada como falida. E para os franceses, quem administra a empresa nesse tempo é o comissário.

Outros institutos da modernidade são: Estado de direito concursal: O Estado passa a administrar, quais procedimentos que empresa vai fazer na questão de quebra ou para sua reorganização. Essa administração será feita através do judiciário. Expediente preventivo: Para evitar que o empresário quase falido se aproveite da situação e tente agir de má fé por conta disso a primeira ação feita para que ocorra a reorganização da empresa é o afastamento do empresário da administração da empresa. Sendo assim o empresário fica impedido de vender ou comprar qualquer coisa em nome da sua empresa. Participação dos interessados: Os credores passam a participar do processo, sendo olhos e ouvidos do juiz. Qualquer ação que suspeitassem seria informada ao juiz.

Falando um pouco sobre um breve histórico no Brasil, no período Colonial: as leis eram as determinadas diretamente de Portugal. Tinha como as principais punições para os devedores a Prisão e apreensão dos bens, isso acontecia porque a valor dos bens era equiparados ao valor das dividas, dando a possibilidade dos credores escolherem entre ficarem com os bens ou vende-los. Em caso de o devedor agir com má fé existia a Pena de morte nas quebras fraudulentas. Tinha também a falência causal: que fora implantada pelo Brasil, é aquela que não era provocada pelo empresário, eram por questões externas como concorrência, crises financeiras. Deveria ser provada com base nos seguintes requisitos: Provar inocência; Eles têm que provar que possui inocência na sua falência. Livro de documento; As provas que ele pode apresentar são os livros da Contabilidade para que possa demonstrar que os negócios de fato estavam ruins. Termo de confissão; Caso assina o termo de confissão de ser devedor de boa fé, mas quando se avaliam as contas verifica que de fato o devedor teve má fé pode ter os bens apreendidos e em ultimo caso teria pena de morte.

No período imperial, tivemos o primeiro Código Comercial Brasileiro de 1850, chamado Livro das Quebras. Nesse Código tinha um contrato chamado de Contrato União, que era um acordo entre devedores e credores, tendo como a intenção ser uma concorda suspensiva, ou seja, um acordo para suspender a falência. Fazia-se uma proposta para os credores para fazer um pagamento parcelado, desconto da divida, um prazo maior, assim faria a suspensão da falência.  Mas se não conseguisse pagar as dividas, o devedor vende todos os bens para pagar a dívida.  E para que esse acordo fosse firmado teria que ter 2/3 do total de credores ou 2/3 do valor da dívida.

No período Republicano, tem-se uma nova perspectiva: Assembleia de Credores. Levando ideias parecidas com os europeus, foi inventada no Brasil uma maneira para que os credores participem da ação de falência do devedor. Fraude no Processo: pelo fato do Juiz não conhecer a índole do devedor, os juízes acabavam sendo bastante influenciados pelos interesses. Podia também o devedor com conversas com alguns ou com todos os credores, influenciarem o juiz para que decidisse em favor do devedor. Legislação Frágil: a Lei era muito antiga, afinal já havia se passado 60 anos da sua criação. Com o passar do tempo vendo que existia muitas fraudes em relação a falência, eles começaram a modificar a situação. Os credores poderiam dar a sua opinião sobre o devedor em questão, mas a palavra final era exclusivamente do Juiz. Tendo assim maior controle sobre o julgamento.

Em 1945, teve a primeira Lei de Falência, separada do código que trouxe modernidade ao processo, além de trazer um nome novo que passou de Quebra para Falência. Aqui vamos ter as concordatas preventivas e suspensivas: foram criados esses dois tipos de concordata. A preventiva que era feito antes que o credor entrasse com a ação de falência. E a Suspensiva que era feito para suspender a ação já iniciada. Também criaram-se os crimes falimentares: são crimes de conduta empresárias que podem ser enquadradas, são feitas pela figura do empresário.

A Lei n. 11.101/05 (doravante denominada LFR) trouxe para nosso ordenamento os seguintes institutos: Falência, Recuperação Judicial e Recuperação Extrajudicial. O Art. 1º da LFR, a lei se aplica somente para o empresário individual ou sociedade empresária. Sociedade Simples não é contemplada pela LFR porque não tem objeto a atividade de empresário. O juízo competente conforme prevê o artigo 3º: É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil. Os princípios norteadores do processo falimentar são os do artigo 75, parágrafo único, da LFR: Princípio da Celeridade e da Economia Processual. Sobre esse procedimento, abordará o tópico adiante desenvolvido.

 

2 PROCESSO FALIMENTAR

 

O processo falimentar possui três etapas: fase pré-falimentar (inicia-se com o pedido de falência e encerra com a sentença declaratória de falência), fase falimentar (inicia com a sentença declaratória de falência e encerra com a sentença de encerramento), fase de reabilitação (inicia com a sentença de extinção das obrigações do falido).

Na fase pré-falimentar, temo como legitimidade ativa o próprio empresário ou sociedade empresária. Segundo a nova Lei de Falências, a sociedade em comum pode pedir a autofalência e sofrer a falência, conforme art. 105 em seu inciso IV, “desde que haja a indicação de todos os sócios, seus endereços e a relação de seus bens pessoais”. O que a sociedade em comum não pode pedir é a recuperação judicial (art. 98) e pedir falência de um terceiro. Também tem legitimidade ativa o Sócio ou acionista, o cônjuge sobrevivente, herdeiro e inventariante, quando o empresário individual morre (o espólio) pode sofrer a falência, o prazo é de 01 ano, contado da morte (art. 96, §1º).

Temos também, qualquer credor, sendo que, credor que não tem domicílio no país pode pedir falência de um brasileiro ou sociedade brasileira, desde que preste uma caução. A caução comprova-se para impedir pedidos de falências dolosas, sofridas por indagações de empresários. Às vezes, o pedido de falência é injustificado, sendo que alguns deles servem para afetar a clientela. Assim, poderá o juiz, ao julgar improcedente a falência, verificando que o autor agiu com dolo, poderá condenar o autor da ação a pagar perdas e danos. Sendo assim, a caução será levantada pelo autor. Na legitimidade passiva, sofrerá o pedido de falência, o empresário ou a sociedade empresária.

Logo após a citação do devedor, ele pode se manifestar da seguinte maneira: Pode apresentar contestação no prazo de 10 dias (art.98 da LFR), sendo que poderá realizar o depósito Elisivo, consistindo o deposito do valor correspondente ao total do crédito, acrescido de correção monetária, juros e honorários advocatícios, hipótese em que a falência não será decretada. Poderá também fazer a contestação mais depósito. Caso julgado procedente o pedido de falência, o juiz ordenará o levantamento do valor pelo autor (art. 98, p. único da LFR). Também  poderá pedir o plano  de Recuperação Judicial (art. 95 da LFR), desde que seja feito no prazo de contestação.

 Temos nessa fase a sentença. Pode ser tanto uma sentença improcedente (chamada de denegatória da falência) ou uma sentença procedente (chamada de declaratória da falência). Os recursos que cabem em cada sentença são: art. 100 da LFR: “Da decisão que decreta a falência cabe agravo, e da sentença que julga a improcedência do pedido cabe apelação”. Os recursos de agravo podem ser apresentados pelo devedor, o MP na forma de fiscal da Lei e o credor em alguns casos excepcionais; Na apelação, o interessado é o credor, o MP como fiscal da Lei. O devedor pode apresentar apelação nos casos de autofalência.

Na fase falimentar, inicia-se com a sentença declaratória de falência, observando os requisitos do artigo 99 da LFR. Temos como requisitos importantes: a nomeação do administrador judicial, fixação do termo legal da falência, prazo para as habilitações de crédito, observado o disposto no § 1o do art. 7 da LFR, ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o falido, ressalvadas as hipóteses previstas nos §§ 1o e 2o do art. 6º  da  LFR. Os efeitos dessa sentença declaratória de falência em relação ao devedor estão no art. 102 da LFR.  Diz que: “o falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial a partir da decretação da falência e até a sentença que extingue suas obrigações, respeitado o disposto no § 1º do art. 181 desta Lei”. Para os credores temos cinco efeitos: 1º efeito; Constituição da massa falida em que só se pode falar em massa falida após a decretação da falência. O 2º Efeito refere-se ao  juízo universal, consistindo no juízo da falência que tem a “vis atrativa”, ele atrai para si todas as ações envolvendo interesses e bens do falido. O efeito da sentença declaratória é a suspensão de toda as ações e execuções contra o devedor falido. 3º Efeito: Suspensão do curso da prescrição das obrigações do falido. O  4º Efeito é sobre o vencimento antecipado de toda dívida do devedor. O 5º Efeito é a suspensão da fluência de juros, visando igualar os créditos dos credores.

A fase de reabilitação é quando o juiz decreta a falência, o art. 102, diz que o falido fica inabilitado de exercer a atividade empresarial. Essa fase que vai reabilitar o falido, admitindo que ele exerça atividade empresarial. Ele vai precisar de uma sentença de extinção das obrigações do falido. Logo após essa sentença que ele pode novamente exercer a sua atividade empresarial. Segundo o art. 158 da LFR são quatro situações para ocorrer a extinção: Pagamento de todos os créditos; Pagamento de mais da metade dos créditos quirografários (50%). Se não conseguir pagar é possibilitado ao falido o depósito da quantia necessária para conseguir essa porcentagem se todavia  não bastou a integral liquidação do ativo. Se não alcançar o pagamento, deverá aguardar o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei; o decurso do prazo de 10 (dez) anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por prática de crime previsto na Lei de Falências.

 

3 FALÊNCIA TRANSNACIONAL NO CASO VARIG

 

Conforme já explanado, o juízo competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, autorizar a recuperação judicial ou decretar a falência é aquele do local do principal estabelecimento do devedor.

Nesse sentido, Rubens Requião (1991, p. 81) esclarece que, tratando-se de “matéria falimentar, portanto, o juízo competente não é o determinado pelo domicílio civil ou estatutário, mas pela localização do domicílio real, onde se situa o principal estabelecimento, como uma nau capitânia numa frota marítima”.

Mas, com base nessas considerações, como seria possível firmar a competência internacional dos tribunais brasileiros para matéria falimentar? Caberia repercussão internacional da previsão do artigo 3º da Lei n. 11.101/05, como norma para fixação da competência internacional? Ou a aplicação desse artigo dependeria de outro instrumento que estabelecesse a jurisdição das brasileiras?

Orlando Celso da Silva Neto (2003, p. 111-112) afirma a existência de determinadas situações que funcionariam como uma terceira opção àquelas de competência concorrente e competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira, aduzindo que

(...) a jurisdição internacional do juiz brasileiro apresenta três vertentes para análise. A primeira delas se dá quando da ocorrência de situações previstas no art. 88 do Código de Processo Civil, a doutrinariamente chamada ‘competência concorrente’, ou ainda, relativa, alternativa ou cumulativa, visto existir a possibilidade de poder a ação correr perante outro foro. A segunda corrente quando de situações previstas no art. 89, e é doutrinariamente chamada de competência exclusiva ou absoluta. Há ainda uma terceira situação, que é aquela existente quando o juiz nacional é provocado a se manifestar sobre situação em que sua competência não está legalmente prevista. (Grifou-se)

Conquanto seja possível vislumbrar a competência da autoridade judiciária brasileira para hipóteses não previstas, quais argumentos poderiam ser utilizados para fundamentar essa atuação? Parte da doutrina mostra-se favorável à aplicação, por analogia, das normas estabelecidas internamente para solução dos casos falimentares. Outra vertente trabalha com a adesão aos princípios.

Aplicar, analogamente, normas que possuem validade somente interna não soa muito sensato, tampouco a solução juridicamente mais razoável. Inicialmente, pela distinção existente entre as normas de direito internacional e as normas de direito interno, que são nítidas. Suas finalidades e suas abrangências são, indubitavelmente, distintas. Outrossim, não é bem vista a transcendência de normas de competência apenas interna.

 A adesão aos princípios parece ser a saída mais adequada, já que o uso desses postulados basilares se destina a solucionar as antinomias desencadeadas pelas omissões legislativas. Verifica-se, portanto, que a solução juridicamente mais acertada seria aquela subordinada ao princípio da efetividade das normas.

Existe, ainda, a possibilidade de determinadas situações jurídicas estarem disciplinadas por meio de uma legislação comum que apontaria para a competência internacional da autoridade judiciária brasileira. Tratam-se, em verdade, de circunstâncias em que a competência internacional dos juízes brasileiros seria decorrente da previsão normativa disposta em uma legislação uniforme que cuidasse de matérias específicas, entre as quais destacam-se a questão do foro falimentar, a forma como a insolvência internacional se processará, de que modo as autoridades dos países envolvidos poderiam colaborar umas com as outras, entre outros aspectos.

A importância do debate que se está fomentando se justifica devido ao fato de que as grandes empresas, atualmente, possuem negócios em outros países, e, dessa forma, a falência não se restringe apenas às fronteiras da nação à qual pertencem as empresas, expandindo-se para outras regiões geográficas, tudo isso efeito de um processo intermitente de globalização.

Como forma de ilustrar o ponto de vista ora exposto, tem-se o caso que deu azo ao estudo aqui desenvolvido: a falência da VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense S.A. No caso examinado, havia um processo tramitando junto à autoridade judiciária dos Estados Unidos da América e outro junto ao juízo falimentar do Rio de Janeiro/RJ. Ocorre que a Varig tinha credores nos Estados Unidos, pois havia formalizado contrato de leasing (arrendamento mercantil) de suas aeronaves com empresas sediadas em território norte americano[5].

As decisões exaradas pela autoridade judiciária brasileira acabaram surtindo efeito na situação dos credores que se encontravam nos Estados Unidos. Igualmente, o juiz da falência do Estado do Rio de Janeiro precisou viajar para os Estados Unidos com o intuito de dirimir os conflitos de jurisdições verificados entre a Corte falimentar de New York e o Juízo falimentar do Rio de Janeiro.

Tal controvérsia se iniciou, pois, como as aeronaves da Varig estavam atreladas ao contrato de leasing, anteriormente mencionado, esses bens estavam subordinados tão somente ao pacto celebrado e não poderiam ser inseridos no procedimento de recuperação judicial, prevalecendo, para todos os efeitos legais, os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais estipuladas (consoante previsto no art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/05), ressaltando-se, ainda, que esses direitos não poderiam ser suspensos, em nenhuma hipótese, em função do que prevê o art. 199, § 1º, da Lei n. 11.101/05.

Nada obstante essa conjuntura, o arrendador obteve medida liminar favorável no juízo falimentar de New York, determinando o arresto das aeronaves que aqui se encontravam. Essa medida judicial, caso fosse levada a efeito, poderia obstar completamente o processo de recuperação judicial em que a empresa brasileira estava envolvida, vez que, com o arresto das aeronaves, a atividade precípua da Varig restaria prejudicada, inviabilizando o exercício de sua atividade econômica, o que, consequentemente, conduziria a empresa à extinção definitiva.

Percebe-se, ante o exposto, que o conflito estabelecido à época era concernente ao fato de que, de um lado, a lei falimentar brasileira admitia a recuperação da empresa, cumpridos os requisitos pertinentes, e, de outro, a lei estadunidense determinava a entrega das aeronaves arrendadas aos proprietários, em detrimento das atividades desenvolvidas pela empresa de aviação brasileira (SANTOS, 2011, p. 3).

Dessa forma, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro enviou uma equipe composta por magistrados e servidores à Corte de Falências de New York, com o intuito de solver a controvérsia e tratar diretamente com os juízes estadunidenses. Ao explicarem os termos da legislação falimentar adotada no Brasil, bem como os seus efeitos para o devedor, o juiz responsável pelo caso nos Estados Unidos revogou a decisão que determinava o arresto das aeronaves, mantendo a eficácia dos contratos de leasing e a continuidade do processo de recuperação judicial em solo brasileiro (SANTOS, 2011, p. 4).

Isso posto, não parece razoável, muito menos correto – do ponto de vista jurídico –, que as partes envolvidas na demanda estejam subordinadas às mil e uma opiniões dos juízos que possuem competência (prevista no ordenamento interno de cada país, diga-se) para deliberar sobre as questões atinentes ao caso. Mostra-se necessário, portanto, a formalização de instrumentos bilaterais (ou multilaterais) de cooperação que sejam aptos a se antecipar a essas questões e possam regular essa matéria de maneira uniforme para os Estados signatários.

Parece evidente, portanto, a imperatividade com que tais protocolos são sugeridos no âmbito internacional, como forma de providenciar uma cooperação entre os Estados, por meio de um juízo falimentar único, permitindo uma comunicação mais ampla e direta entre as partes envolvidas, que pode ser intermediado, ainda, pelo Ministério das Relações Exteriores. Para servir de exemplo, analisar-se-á a seguir o modelo já existente, que pode amparar a elaboração de um novo paradigma nessa seara.

3.1 O modelo da UNCITRAL

 

Não apenas o caso da Varig, como também o da Vasp, o do Banco Santos e da Parmalat são situações que demonstram a necessidade de se elaborar protocolos de cooperação internacional no âmbito falimentar, eis que são exemplos de empresas que detém contratos formalizados no exterior e que, por essa razão, suscitam a interveniência de autoridades judiciárias distintas no caso.

Impende destacar, uma vez mais, que o juízo universal em matéria de falências para atividades empresariais aqui estabelecidas se consolida em razão do critério territorial, inclusive para sociedades estrangeiras, que aqui funcionem mediante filiais ou agências, que podem estar autorizadas a funcionar aqui, como leciona Sérgio Campinho (2006, p. 40-41):

Deflui do preceito o ‘sistema da territorialidade’ como critério ou princípio para inspirar a regra de competência. Limitam-se os efeitos da falência ou da recuperação ao próprio país, reconhecendo-se a supremacia da Justiça Nacional para conhecer das matérias. A filial, agência ou sucursal da matriz estrangeira, situada no Brasil, fica considerada como um estabelecimento físico autônomo, com administração própria. Os efeitos da declaração da falência, por exemplo, serão produzidos tão-somente em relação aos bens do empresário alienígena situados no Brasil, não envolvendo a matriz situada no exterior.

Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas, com o objetivo de unificar e harmonizar essas questões, criou, em 17 de dezembro de 1966, através da Resolução XXI, a UNCITRAL, sigla para United Nations Commission on International Trade Law (ou Comissão de Direito Comercial Internacional das Nações Unidas). A partir daí, a UNCITRAL, com o escopo de elaborar um instrumento normativo que pudesse sanar os litígios comerciais internacionais, confeccionou a “Lei Modelo”, que constitui notável legislação para a resolução de questões que demandam grande complexidade técnica, sendo capaz de direcionar os conflitos internacionais (SANTOS, 2011).

A aplicação de um padrão como a lei modelo da UNCITRAL “proporciona a criação de instrumentos de cooperação jurídica internacional nos casos de falências multijurisdicionais, fortalecendo e favorecendo a diplomacia judiciária” (SANTOS, 2011, p. 2), situação que poderia otimizar o processo falimentar, como no caso da Varig, que envolveu juízos falimentares distintos.

Os benefícios advindos seriam de ordem múltipla, como maior segurança jurídica para o comércio internacional, administração equânime para os casos de falência transnacional, criação de instrumentos eficazes no combate a fraudes internacionais, maior agilidade na recuperação da empresa falida, entre outras circunstâncias (SANTOS, 2011, p. 3).

Entre os países que já adotam a lei modelo aqui tratada, encontram-se a África do Sul, o Japão, o México, os Estados Unidos da América, a Sérvia, a Colômbia (SANTOS, 2011, p. 6), entre outros, necessitando, portanto, que o Brasil venha a aderir urgentemente a essa legislação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Através deste estudo, pôde-se observar a importância da elaboração de uma legislação uniforme para tratar de casos que envolvam matéria falimentar em juízos de diversos países, exemplificando, para efeitos didáticos, o caso da VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense S.A.

Essa relevância consiste na confecção de uma lei que possa servir de paradigma (a exemplo da lei modelo da UNCITRAL) para as insolvências que transcendem as fronteiras dos países, podendo ser por estes adotada, desde que observadas as peculiaridades do direito interno de cada nação, a fim de pacificar as questões falimentares em âmbito internacional.

No terceiro tópico, que constitui o ponto principal do debate, verificou-se a imperatividade com que tais protocolos são sugeridos no âmbito internacional, como forma de providenciar uma cooperação entre os Estados, por meio de um juízo falimentar único, permitindo uma comunicação mais ampla e direta entre as partes envolvidas, que pode ser intermediado, ainda, pelo Ministério das Relações Exteriores.

REFERÊNCIAS

 

CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da insolvência

empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

MALHEIRO, Emerson Penha. Manual de Direito Internacional Privado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

SANTOS, Eronides Aparecido Rodrigues dos. A insolvência transnacional e a adoção da lei modelo da UNCITRAL. Rio de Janeiro, jun./2011. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Civel_Geral/ms_falencias/ms_fal_diversos/falencias%20doutrina%20UNCITRAL.pdf >. Acesso em: 30 abr. 2014.

SILVA NETO, Orlando Celso da. Direito processual civil internacional brasileiro. São Paulo: Ltr, 2003.

MAMEDE, Gladston. Falência e Recuperaçao de Empresas. São Paulo: Atlas,2011

RAMOS, André L. Santa Cruz. Direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

TOMAZEETE, Malon. Curso de Direito empresarial. São Paulo: Atlas.2011. vol.3

MAIA, Vinícius Fernandes Costa. A Lei nº 11.101/05 aplicada ao caso de recuperação judicial da Varig. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2063, 23 fev. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12374>. Acesso em: 4 abr. 2014.

 

AMORIM, Edgar Carlos de. Direito Internacional Privado. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

 

 



[1] Paper apresentado à disciplina de Recuperação de Empresas do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB, como requisito parcial para obtenção de nota.

[2] Graduando do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[3] Graduando do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[4] Professor da disciplina de Recuperação de Empresas da UNDB.

[5] Estipula-se que a dívida acumulada com as empresas de leasing chegou a US$ 56.000.000,00 (cinquenta e seis milhões de dólares), que foram pagos em 2006 pelo diretor da companhia aérea brasileira, por meio de intermediação do juiz Robert Drain, da Corte de New York. Disponível em: <http://www.bahianegocios.com.br/sem-categoria/varig-quita-amanha-nos-estados-unidos-sua-divida-com-empresas-de-leasing/>. Acesso em: 30 abr. 2014.