É praticamente uníssono entre os educadores o entendimento de que a criança só pode ingressar no ensino fundamental com seis anos de idade completos até a data do início do ano letivo, estendida até o dia 31 de março do ano corrente, conforme a Resolução número 5 de 17/12/2009, do Conselho Nacional de Educação.

Não se deve olvidar que a Lei, em regra, dá margem a mais de uma interpretação e que, seu verdadeiro sentido nem sempre será extraído de sua apreciação meramente literal.

É nesse sentido que não se deve aceitar silente a atual recomendação do Conselho Nacional de Educação, ou melhor, a forma como vêm sendo interpretados os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam da educação fundamental no Brasil.

Assim, vale a pena conferir argumentos no sentido de que é possível, porque não há expressa vedação legal - além de alguns outros que serão vistos adiante - a matrícula de uma criança com seis anos incompletos (completos após o dia 31 de março do ano letivo relativo à primeira série do ensino fundamental), sem que tal fato caracterize qualquer tipo de violação legal e, principalmente, prejuízo à formação pedagógica ou emocional do educando.

Torna-se importante, assim, verificar, primeiramente, os aspectos relacionados à ausência de vedação legal e os dispositivos relativos à matéria que serão analisados, quais sejam: Leis Federais 9394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), 11114/2005, 11274/2006 (alteraram a LDB de 1996), a famigerada Resolução número 5/2009 do CNE e, por fim, a Constituição da República.

Os excertos que transcreverei serviram de fundamento ao entendimento do qual ouso divergir e, por isso, tentarei dar aos mesmos uma interpretação sistemática, mais próxima da nossa realidade social e, portanto, integrada aos princípios constitucionais vigentes.

É assim, portanto, que se deve ler o artigo 6º. da Lei 9394/1996, com a redação dada pela Lei 11114/2005:

Art. 6o É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental. (Redação dada pela Lei nº 11.114, de 2005).

Uma interpretação simplista revelaria que somente a partir dos seis anos de idade seria possível a matrícula no primeiro ano do ensino fundamental. Não me parece, porém, ter sido essa a vontade do legislador.

Como se vê, trata-se de uma Lei de diretrizes, ou seja, que estabelece metas, programática, que pretende impor aos pais e, também ao poder público, a responsabilidade de proporcionarem às crianças o acesso à educação fundamental, a fim de que todas elas, ao atingirem a idade limite legal estejam freqüentando um banco escolar num nível presumidamente condizente com o seu desenvolvimento biológico, emocional e pedagógico.

E a Constituição Federal diz exatamente isso, por exemplo, em seu artigo 208, I:

Artigo 208, I, da CRFB: "O dever do Estado com a educação será efetivado com a garantia de: I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria".

Importante reproduzir trecho da cartilha do Ministério da Educação e Cultura (Ensino Fundamental de nove anos – Orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade, 2ª. Edição, Brasília, 2007, p. 5-6):

"A Lei 9394/1996 sinalizou para um ensino obrigatório de nove anos de duração, a iniciar-se aos seis anos de idade, o que, por sua vez, tornou-se meta da educação nacional (...) Com a aprovação da Lei 11274/2006, ocorrerá a inclusão de um número maior de crianças no sistema educacional brasileiro, especialmente aquelas pertencentes aos setores populares, uma vez que as crianças de seis anos de idade das classes média e alta já se encontram, majoritariamente, incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do ensino fundamental...".

E ainda:

"...Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor 'das crianças de zero a seis anos de idade' (CF, artigo 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental...". (RE 410715 AgR/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª. Turma – STF).

Pode-se, assim, exemplificar: seriam responsáveis os pais e o próprio Poder Público por criança que, porventura, aos oito anos de idade, ainda não tenha sido matriculada na educação fundamental, pois esta, a partir dos seis anos de idade, deveria ter iniciado sua formação escolar fundamental; nunca, porém, poder-se-ia responsabilizar os mesmos pais por uma criança de seis anos incompletos que já o estivesse freqüentando, ou seja, cumprindo a meta estipulada pelo Legislador que é a de que lugar de criança é na escola, e não fora dela.

Não se deve deixar de reconhecer que a vedação de matrícula para uma criança com seis anos incompletos no ensino fundamental, principalmente para os infantes que já estão matriculados e cursaram com aproveitamento o período da educação infantil, constitui-se em inegável prejuízo emocional para aquelas e para os seus pais, que seriam penalizados por um retrocesso na vida estudantil de seu filho, arcando, também, com prejuízo de ordem financeira.

O dispositivo acima transcrito (como todos os outros que serão mencionados) não proíbe a matrícula de um aluno com seis anos incompletos no ensino fundamental. Revelam, apenas, a obrigatoriedade do Estado (Artigo 208, parágrafo 2º. da Constituição da República[1]) e dos pais em criarem condições para que as crianças tenham o direito de cursar o ensino fundamental a partir dos seis anos de idade, a fim de que se evitem prejuízos nas suas formações estudantis.

Vale realizar, também, uma singela comparação entre o artigo 32 da Lei 9394/96 (alterado pela Lei 11114/2005), e o mesmo dispositivo já com a redação dada pela Lei 11274/2006:

O primeiro: Art. 32. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública a partir dos seis anos, terá por objetivo a formação básica do cidadão mediante: (Redação dada pela Lei nº 11.114, de 2005).

O segundo: Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública,iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:(Redação dada pela Lei nº 11.274, de 2006).

Lendo-se os dois dispositivos podemos, nos moldes do que já vem sendo dito, entender que a Lei 11114/2005 previa um ensino fundamental que, pelo texto da Lei, poderíamos interpretar como sendo obrigatório apenas na escola pública, a partir dos seis anos de idade.

A Lei 11274/2006, aparentemente, corrigiu essa distorção estendendo a regra a todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados dispondo que: "O ensino fundamental obrigatório – e não apenas o ensino fundamental" e, ainda que "gratuito na escola pública, iniciando-se aos seis anos de idade e, não mais, gratuito na escola pública a partir dos seis anos".

Ou seja, obrigatório é o ensino fundamental para as crianças – artigo 208, parágrafo 2º., da Constituição. Não há referência, por mais que se queira enxergá-la, quanto à obrigatoriedade dos seis anos completos para iniciá-lo. A idade é um marco estipulado para início do ensino fundamental para aquelas crianças que estão fora da escola, não podendo sê-lo, porque a Lei não diz isso, para aquelas que já estão na escola e cumprem a meta de escolarização imposta pelo Estado.

Uma interpretação sistemática da Constituição e dos dispositivos infraconstitucionais leva a esse entendimento.

Outra coisa. Não se pode presumir que a Lei tenha estipulado um limite de seis anos completos no início do ano letivo (ou no prazo da Resolução 05 do CNE), e, nesse sentido, que as crianças que não tenham atingido esse limite não possam ter o direito de acesso à educação fundamental. É princípio geral de hermenêutica jurídica que normas que impõem restrições a direitos (o direito ao ensino fundamental, no caso!) devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, se a Lei não disse expressamente não poderá o intérprete dizê-lo.

Vejamos, agora, a Resolução número 5 de 2009 do CNE:

Art. 5º A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social.

§ 1º É dever do Estado garantir a oferta de Educação Infantil pública, gratuita e de qualidade, sem requisito de seleção.

§ 2° É obrigatória a matrícula na Educação Infantil de crianças que completam 4 ou 5 anos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula.

§ 3º As crianças que completam 6 anos após o dia 31 de março devem ser matriculadas na Educação Infantil.

§ 4º A frequência na Educação Infantil não é pré-requisito para a matrícula no Ensino Fundamental.

A Resolução, além de impor diretrizes que devem ser seguidas pelo Poder Público, regulamenta que "As crianças que completam 6 anos após o dia 31 de março devem ser matriculadas na Educação Infantil ". Como já se disse, e isso se extraiu de uma interpretação sistemática da Constituição e da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394/96), trata-se de metas a serem alcançadas e cumpridas pelo Estado. Uma resolução não poderia dispor contrariamente a normas que lhe são hierarquicamente superiores.

Assim, quando o parágrafo 3º. do citado artigo dispõe que crianças que completam 6 anos após o dia 31 de março devem ser matriculadas na educação infantil, isso deve ser entendido como uma regra para crianças que não estejam matriculadas em escola alguma. Tanto é que o parágrafo seguinte revela que a freqüência na educação infantil não é pré-requisito para a matrícula no ensino fundamental, justamente para alcançar todas aquelas crianças que estão fora do ensino.

Não se questiona a legalidade da norma (resolução) que estipula um prazo limite para a matrícula no ensino fundamental. O que se deve perceber, porém, é que essa data não se deve aplicar aos alunos regularmente matriculados no ensino infantil à época da edição da resolução, os quais, presume-se, possuem maturidade suficiente (se assim foram avaliados por seus educadores durante todo o ensino infantil) para atingir a educação fundamental independente de possuírem seis anos completos por ocasião do início do ano letivo.

Vale, assim, dizer que crianças que ainda não tenham iniciado sua formação escolar e que tenham atingido a idade limite de seis anos completos devem, obrigatoriamente, ser matriculadas no ensino fundamental. (Resolução 5/2009, § 4º, do CNE).

Crianças que tenham completado 6 anos de idade após 31 de março devem ser matriculadas na educação infantil, como revela a resolução, não quer dizer que crianças nessas condições, e que já tenham cursado o ensino infantil não possam ascender ao patamar superior. A norma não diz isso, e uma interpretação nesse sentido, como já disse, viola princípio geral de direito que informa que normas que acarretam limitações a direitos devem ser interpretadas restritivamente (ou seja, não se deve ampliá-la para entender o contrário).

Muito mais grave seria submeter alunos regularmente matriculados na educação infantil e que não possuem 6 anos completos por ocasião do início do ano letivo em que deveriam cursar o fundamental a um critério meramente objetivo, divorciado dos reais aspectos que devem nortear esse processo. Esses são: a maturidade pedagógica e emocional dos alunos, que devem ser avaliadas por seus pais, no trato familiar, e por seus educadores em sala de aula e, nunca, por um critério objetivo-biológico que considera a idade como marco para esse amadurecimento.

Nesse sentido revela o já citado acórdão RE410715Agr/SP:

"...A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda a criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental...".

Cada caso deve ser avaliado de acordo com a individualidade do aluno, seu aproveitamento em sala de aula e sua formação emocional (Lembre-se: a Constituição fala em idade própria e não em idade imposta!). Não se pode tolher o caminho da criança que está plenamente adaptada à escola nos aspectos acima citados, pois isso viola frontalmente seu direito de acesso à educação[2].

Assim, impedir o acesso à educação fundamental conquistado dentro de sala de aula, obrigando o aluno a mais um ano no ensino infantil, constitui violação de direito fundamental da criança (Artigos 6º. e 208, I, CRFB, Artigo 53, I, da Lei 8069/90 e artigo 3º. I da Lei 9394/96), além de prática irrazoável e dissociada do princípio da igualdade.

Veja-se o artigo 3º. da Lei de Diretrizes e Bases que reproduz princípio da igualdade, estampado também no Estatuto da Criança, em seu artigo 53, I:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

Note-se que obrigar uma criança a deixar o convívio de sua turma, mesmo em tenra idade, fere a razoabilidade, além de causar inegável prejuízo emocional. Impedir que a mesma ascendesse ao ensino fundamental, quando nas mesmas condições pedagógicas e emocionais que seus colegas de turma, apenas em razão de um critério objetivo, fere a igualdade formal, na medida em que a norma dá tratamento desigual aos iguais.

E ainda há que se considerar que tal medida, se adotada pelas escolas, acarretará inegável prejuízo financeiro aos responsáveis legais com os custos das mensalidades do ano retroagido.

É claro que tais prejuízos (morais e materiais) podem e devem ser evitados através do acesso ao Poder Judiciário. O que se espera, contudo, é que as autoridades reformulem seu entendimento, adequando-o à realidade social e, principalmente, ao interesse maior das normas que é o de evitar que as crianças em idade escolar estejam fora da escola, esse, sim, o verdadeiro escopo da Lei.

Quanto ao assunto, insta destacar, por sua importância, a Ação Declaratória de Constitucionalidade 17 e a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 682 do Supremo Tribunal Federal.

Na primeira, que ainda se encontra em curso, com os autos conclusos para o Ministro Relator, já existe importante parecer do Procurador Geral da República. Merece reprodução o informe do STF a respeito da manifestação do PGR (extraído de www.stf.jus.br):

"O processo discute a constitucionalidade do artigo 32 da Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), segundo o qual o ensino fundamental se inicia aos seis anos de idade. Em seu parecer, a PGR se manifesta pela extinção do processo, sem discussão de mérito. Entretanto, na eventualidade de a Corte vir a entrar no mérito, sustenta que o disposto no mencionado artigo "não autoriza dizer que é constitucional apenas a interpretação que lhe foi conferida pelo requerente (o governo de MS) e por alguns tribunais do país, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)". Por esta interpretação, a matrícula só pode ocorrer quando a criança já tiver completado seis anos.

O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, entende que não é possível concluir, pela leitura da Lei 9.394 ou do artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal (CF) - segundo o qual a educação infantil se estende até os cinco anos de idade -, que o Legislativo federal possibilitou o ingresso no ensino fundamental apenas à criança que tenha seis anos completos no início do ano letivo.

Segundo ele, a transição dos cinco para os seis anos não se dá, necessariamente, no início do ano letivo, 'e não parece que o constituinte teve o objetivo declarado de provocar um lapso temporal entre o término da educação infantil, na metade do ano, quando findos os cinco anos de idade, e o início do ensino fundamental apenas no ano seguinte, ocasião em que a criança já tivesse completado os seis anos'.

'ambas as interpretações que delas se extraem são compatíveis com a Constituição da República", ou seja, no 1° ano do ensino fundamental é possível tanto a matrícula de crianças com 06 anos completos, quanto de crianças que irão completar 06 anos durante o ano letivo para o qual requerem a matrícula.'".

Essa questão também já foi discutida na ação direta de inconstitucionalidade (ADI 682), na qual o STF julgou constitucional lei estadual que permitia a matrícula de crianças que viessem a completar 06 anos de idade durante o ano letivo:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DO PARANÁ 9.346/1990. MATRÍCULA ESCOLAR ANTECIPADA. ART. 24, IX E PARÁGRAFO 2º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA LEGISLAR SOBRE EDUCAÇÃO. A lei paranaense 9.346/1990, que faculta a matrícula escolar antecipada de crianças que venham a completar seis anos de idade até o final do ano letivo de matrícula, desde que preenchidos determinados requisitos, cuida de situação excepcional em relação ao que era estabelecido na lei federal sobre o tema à época de sua edição (lei 5.692/1971 revogada pela lei 9.394/1996, esta alterada pela lei 11.274/2006). Atuação do Estado do Paraná no exercício da competência concorrente para legislar sobre educação. Ação direta julgada improcedente."

Conclusão.

Não há, como se viu nos dispositivos analisados, qualquer vedação expressa à matrícula de aluno com seis anos de idade incompletos, que já tenha concluído o ensino infantil, na educação fundamental.

Esse texto, porém, não tem a pretensão de fundamentar qualquer tipo de medida judicial. Trata-se, apenas, de um outro ponto de vista que confronta uma interpretação da Lei de Diretrizes e Bases, da Resolução do CNE e da própria Constituição da República, que se crê equivocada.

Nessa medida, atingirá seu objetivo se mostrar aos pais de alunos atingidos pela referida Resolução que se aquietar não é o melhor caminho, e que nem sempre o que nos é imposto deve ser aceito como verdade absoluta.

Talvez a verdade não esteja aqui, mas se as mentes se abrem, ela poderá ser encontrada por outros caminhos.

[1] Artigo 208, p. 2o. da CRFB: "O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.".
[2] Artigo 208, I, da CRFB: "O dever do Estado com a educação será efetivado com a garantia de: I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria".