A partir da sua introdução, Paulo Freire orienta o capítulo tentando confirmar suas teses sobre o que é compromisso, o fato de que o ser humano já possui compromisso por sua própria existência, sua capacidade de agir e refletir. A partir daí, Paulo Freire demonstra que o indivíduo que não consegue refletir e agir no mundo é passível à submissão e inação. Releva também a importância de ter consciência da sua consciência condicionada, o que faz com que ele não tenha controle algum sobre seus atos e não consiga criar mudanças no seu meio, pois somente se comporta de forma a reproduzir o sistema já existente e a manter as estruturas ideológicas de valores por gerações de “estabelecido”. Trazendo para nosso campo, a aproximação de muitos profissionais de saúde com o movimento da Educação Popular e a luta dos movimentos sociais pela transformação da atenção à saúde possibilitaram a incorporação, em muitos serviços de saúde, de formas de relação com a população bastante participativas e que rompem com a tradição autoritária dominante.

Freire também ressalta sobre a questão da incapacidade da abstração da realidade, de vincular a um compromisso. Isso demonstra a questão da exclusão em que vivemos hoje, onde muitas pessoas ficam absortas e incluídas no sistema e, quando há um questionamento sobre o comportamento. “O ser imerso nele somente está em contato com ele. Seus contatos não chegam a transformar o mundo, pois deles não resultam produtos significativos, capazes de marcá-los” (Freire, 17). A educação em saúde é o campo de prática e conhecimento do setor saúde que tem se ocupado mais diretamente com a criação de vínculos entre a ação médica e o pensar e fazer cotidiano da população. Diferentes concepções e práticas têm marcado a história da educação em saúde no Brasil. Mas, até a década de 1970, a educação em saúde no Brasil foi basicamente uma iniciativa das elites políticas e econômicas e, portanto, subordinada aos seus interesses. Voltava-se para a imposição de normas e comportamentos por elas considerados adequados.

Freire explica que o homem é um ser histórico e somente ele é capaz de comprometer-se. Há a necessidade de que o homem seja empreendedor “com a capacidade de atuar e refletir... transformar a realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem” (Freire, 17). A atuação de muitos profissionais e movimentos, orientados pela

Educação Popular tem avançado muito na desconstrução do autoritarismo dos médicos, do desprezo ao saber e à iniciativa dos doentes e familiares, da imposição de soluções técnicas para problemas sociais em comuns. Um elemento fundamental é o fato de tomar, como ponto de partida do processo pedagógico da educação em saúde, o saber anterior do profissional ali engajado.  No trabalho, na vida social e na luta pela sobrevivência e pela transformação da realidade, as pessoas vão adquirindo um entendimento sobre a sua inserção na sociedade e na natureza. Este conhecimento fragmentado e pouco elaborado é a matéria prima da Educação Popular.

A ação e a reflexão são inseparáveis e também provocadas pela “realidade em que está o homem” (Freire, 17). Assim, a ação e a reflexão podem ser entendidas como o resultado da transformação e contato com o mundo. São “nestas relações que o homem desenvolve sua ação- reflexão, como também pode tê-las atrofiadas” (Freire, 18).

Conclui Freire que o compromisso só se realiza a partir do engajamento com a realidade. Desta forma, como o próprio Freire diz, “o verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em “coisas”.

Para muitos serviços de saúde, a Educação Popular tem constituído uma ferramenta fundamental na construção histórica de uma medicina integral, na medida em que se dedica ao alargamento da inter-relação entre as diversas profissões, especialidades envolvidas num problema exclusivo de saúde, fortalecendo e conduzindo suas práticas, conhecimentos e ações. Esta redefinição da prática médica se dá pela articulação de múltiplas, diferentes e até contraditórias iniciativas presentes em cada problema de saúde, em um processo que valoriza especialmente os saberes e aprendizado dos sujeitos freqüentemente desconsiderados devido a sua raiz popular.

Uma análise interessante de Freire gira em torno da sistematização dos tipos de homens: aqueles “autenticamente comprometidos”, “falsamente comprometidos” ou “impedidos de se comprometer verdadeiramente”. O primeiro seria aquele que tem consciência da consciência condicionada, o segundo não necessariamente e o terceiro poderia ser representado pelo excluído da sociedade, o frustrado. Todos os três são reflexos de perspectivas, no que tange ao compromisso em si na sua relação com a prática do indivíduo na sociedade.

Sobre o profissional de saúde, há um questionamento importante quanto à dicotomia do papel do mesmo, no que se refere ao seu compromisso. O excesso de tecnicismo é demonstrado por Freire como algo que pode invadir a vida pessoal do indivíduo (o compromisso de si como ser humano), gerando fragmentação do compromisso do mesmo em torno de técnicas ou visão sob somente alguns ângulos e não holística. A atribuição de papéis específicos a cada ser para a produção maior e o aumento da movimentação do capital, o exagero dessa atribuição de papéis a grande parte dos homens que não estão ligados à gestão do sistema (onde esses indivíduos são forçados a se adequar a um sistema como máquinas executoras de papéis programados, analogicamente como uma máquina pensante). Outra forma a ser ressaltada é o excesso da humanização do ser humano. Freire diz que é importante ter equilíbrio. “O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do homem, de sua forma de estar sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos” (Freire, 24). Passa-se a criar formas inovadoras no processo de aprendizagem entre um número significativo de profissionais de saúde que, munindo-se de uma metodologia de ação pedagógica na relação de serviços de saúde/população, cujo objetivo fundamental é a colaboração no esforço das classes populares pela conquista dos seus direitos e enfrentamento de seus problemas de saúde. Essas práticas compreendem relações entre sujeitos sociais, ocorrem em diferentes espaços, portam diferentes saberes, e são práticas dialógicas, estratégicas, apresentando-se de maneira formal ou informal, sendo desenvolvidas em espaços públicos ou privados. A sua avaliação consiste em julgar se o esforço empreendido foi alcançado, como foi realizado e quais foram os beneficiados com tais ações

Talvez isto tudo explique o fato de que o brasileiro, em geral, não tem consciência histórica. Foge da “concretização deste compromisso” e nega-se a si mesmo como nega o “projeto nacional” (Freire, 25). Percebe-se, então que, o indivíduo permanece na consciência condicionada, como Freire aborda neste capítulo e que a consciência histórica é de suma importância para que o indivíduo tenha consciência da existência do compromisso social e consigo mesmo. Também se conclui que o indivíduo que não tem consciência do compromisso em si, não entende o que é compromisso do profissional, visto que foi abordada a dualidade do profissional técnico-humanista, na qual tende para um lado sem considerar a visão global. Além disso, quando o indivíduo entende o compromisso e profissional, entende a relação de compromisso “do” profissional, fica mais fácil de interagir com a sociedade e, conseqüentemente, compreender “o compromisso do profissional com a sociedade”.

Este capítulo traz noções interessantes que podem ser aplicadas na realidade brasileira, o compromisso do profissional com a sociedade é um tema que deve ser mais discutido e analisado para que haja a possibilidade de mudança holística da sociedade. Talvez o que falta seja a análise da própria vida em sociedade no dia-a-dia, considerando os fatores históricos, para modificá-la de forma a favorecer os homens que nela vivem. Para tanto, faz-se necessária a utilização de metodologias educativas que possibilitem o confronto de saberes, a apreensão da realidade e os seus questionamentos, buscando identificar as raízes culturais, econômicas e sociais presentes e que ocasionam situações vivenciadas pelos doentes, conseqüentemente, a busca de uma transformação. Isso, porém, não se deve limitar ao repasse de informações ou mesmo sugerir o auto-cuidado frente aos agravos de saúde, mas desvelar conhecimentos, formas de enfrentamento e atitudes diante das políticas de saúde das mesmas.

Faz-se necessária a implantação de ações eficazes que contemplem o empenho dos profissionais de saúde, levando em consideração as interações dos fatores sociais e as diversidades culturais das famílias, pelas quais torna-se possível atingir metas positivas nesta temática. Nesta perspectiva, sugere-se a viabilização da educação popular em saúde na construção de alternativas aos grandes desafios que a saúde coletiva vem enfrentando, promovendo, desta forma, mudanças e constituindo novos sujeitos e práticas comprometidas com o rompimento das barreiras sociais, econômicas e políticas, bem como com o desenvolvimento da cidadania.

 

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 12ª Edição. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1979.