E SE A MORTE E O TEMPO NÃO EXISTIREM?

Duas afirmações da Teologia podem ser comparadas ao oxigênio e aos pulmões, numa situação em que os médicos discutem se desligam ou não os aparelhos que mantêm um doente vivo, quando a eles próprios falta o ar, como se o Planeta inteiro fosse submerso por um dilúvio. O leitor pode imaginar a cena? E a “tradução da parábola”: nós somos os médicos... Então, como se preocupar com um moribundo com enfisema, quando falta o ar até para nós?... Assim é a condição intrínseca dos dois dados teológicos que discutiremos aqui.

Trata-se dos seguintes postulados escatológicos: (1o) A morte não existe; (2o) O tempo não existe. Seria bom que o leitor já antecipasse intimamente o raciocínio sobre o enunciado dos dois postulados para possibilitar que a nossa conversa não se estenda muito. Tempo para pensar. Vamos em frente.

Dadas as limitações da Ciência acerca da vida após a morte, somos obrigados a tratar do tema apenas com intuições, confiança nos testemunhos e raciocínios hipotético-dedutivos. E não é pouco, pois a Ciência inteira praticamente começou assim, e ainda hoje quase todas as descobertas são alcançadas porque algum cientista intuiu alguma coisa a partir de determinado sintoma. Porém, reconhecemos, os dois dados supracitados dificilmente serão objeto de consideração científica, nem hoje nem no futuro, pois a matéria envolvida tem vontade própria e não se deixará esquadrinhar como rato de laboratório. Portanto e com efeito, se a Ciência não pode “entrar” ali, então o jeito é o uso da intuição e da dedução, respaldadas na confiança.

A morte não existe. Todos os ramos do conhecimento extra-científicos e para-científicos, além do bom senso, defendem que o desencarne, i.e, o exato instante em que a alma deixa o corpo e esvoaça, é um átimo indolor e até “imperceptível” para muita gente, como tão magistralmente mostraram filmes como “Ghost – Do outro lado da vida”; “E se fosse verdade?”; “Os outros”; “Passageiros”; etc.. Todavia e inobstante, afora as temerosas investidas intuitivas de alguns mestres da psicologia ou da parapsicologia, foi com pesquisadores como Raymond Moody Junior, Elisabeth Kubler-Ross, Pim van Lommel, G.M. Woerlee, James E. Whinnery, Waldo Vieira e outros, que a Humanidade pôde ter alguma luz sobre a aparentemente inatingível “Tanatologia Prática”, que outrora estava reservada apenas a sacerdotes, xamãs, monges, gurus e oráculos do hermetismo. Até jocosamente se diz que “ir até o outro lado e voltar é Milagre de santo verdadeiro ou piada de devedor trapaceiro”. Até o Novo Testamento, que mostra tantas ressurreições ao vivo na frente de várias testemunhas, tem uma curiosidade instigante: nenhum ressuscitado conta ali nada do que viu do outro lado, e o próprio Cristo que ressuscita os mortos não crê que alguém acreditasse no testemunho de quem voltou da morte (Lc 16,31).

Como então ter certeza de que a morte é indolor e tão sutil que mal pode ser sentida? Só crendo nos depoimentos coletados por Moody, Ross e de todos os heróicos estudiosos das NDEs (Experiências de Quase-morte, na sigla em inglês), ou de gente franca e corajosa como Maitê Proença (veja uma bombástica entrevista dela em Maitê), afora a confiança de que as promessas bíblicas são verdadeiras. Quanto a estas últimas, os teólogos citam 7 passagens como sendo as mais fortes colunas da fé na inexistência da morte; a saber: (1a) Quando Paulo diz que “nenhuma tentação (provação, dor, sofrimento) virá sobre vós acima do que podeis suportar”, em I Co 10,13; (2a) Quando Jesus diz que aquele que crer nEle “tem a vida eterna/.../, e já passou da morte para a vida”, em João 5,24; (3a) Quando Jesus diz a quem deu um enterro como desculpa para adiar o seguimento da missão: “Deixai os mortos sepultar os mortos” (Lc 9,60); (4a) Quando Jesus diz que jamais devemos temer quem pode matar o corpo, e sim, quem pode matar a alma, o que responde à pergunta: “Que mal me poderá fazer o homem?” (Lc 12,4 e Hb 13,6); (5a) Quando Jesus diz que  muitos há que estão aqui que não provarão a morte até que vejam a volta do Filho do Homem” (Mc 9,1); (6a) Quando Jesus diz que  Deus não é deus de mortos, e sim de vivos, porque para ele TODOS vivem” (Lc 20,38); e (7a) Quando Jesus responde a um pai aflito sobre a morte de sua filha: “Ela não está morta, mas dorme” (Mc 5,39).

São todos depoimentos que carregam, nas linhas e/ou nas entrelinhas, a lógica de que a morte não é sentida como morte, e que podem receber, mesmo perante o ceticismo “dos vivos”, nomes como “dormiu”, “desprendeu-se”, “passagem”, “deslocamento”, “ascensão”, etc.. Importa aqui, para o presente argumento, a premissa (sine qua non) de que a idéia da ausência de dor no desencarne seja aceita com bons olhos, mesmo que a metodologia científica não tenha podido dar um parecer conclusivo, numa matéria em que a própria Ciência diz não poder investigar a fundo, literalmente, por óbvio.

Isto posto, se podemos vislumbrar algum consenso na idéia de ausência de dor, ou melhor, na noção de que a morte é tão sutil que se torna imperceptível aos 5 sentidos, sendo assim correto pensar que se nós humanos nada sofremos com o desencarne, segue-se então a dedução óbvia: Jesus nada sofreu com a Sua morte. Entretanto, se é possível deduzir isso, segue-se a inevitável pergunta: “Se não foi pelo sofrimento da cruz, nem pela 'suposta' dor de um desencarne, em que consistiu a nossa salvação?”... A resposta foi dada pelo apóstolo Paulo: “Se não crermos na ressurreição de Jesus, somos os mais infelizes de todos os homens” (I Co 15,16-19). A Teologia cristã tradicional diz que a salvação se deu somente com a Ressurreição de Jesus, e que a nossa própria ressurreição depende disso. Podemos dar um salto agora.

Dizer que a salvação dependeu apenas da Ressurreição de Jesus também tem os ares de uma história mal contada, no sentido de estar incompleta. Porquanto, para o Deus do impossível, fazer alguém ressuscitar não pareceu um milagre tão portentoso quanto nossa Ciência poderia supor, no sentido dos poderes necessários para tal. Na verdade, a julgar pela grande quantidade de defuntos redivivos no Novo Testamento e pela profundidade da 'ofensa moral' sinalizada por Jesus (Mc 2,9), o simples ressuscitar alguém não é lá mesmo um grande prodígio! (Os pais da “Criogenia” tinham profunda fé de que no futuro a Ciência poderia literalmente ressuscitar corpos). Isto é: Se o Deus Encarnado estivesse apenas querendo plantar a fé em seus seguidores, tal milagre provavelmente não LHE daria muitos discípulos, a julgar pela palavra do próprio Cristo, que não acreditava que as pessoas dessem muito crédito a defuntos redivivos (Lc 16,31).

Ora; se a salvação não foi produzida pela Ressurreição de Cristo (embora aquela não possa prescindir desta – pois sem esta a morte não foi vencida), uma retumbante pergunta se faz ouvir: o que teria feito Jesus DURANTE os três dias da crucificação, nos quais esteve morto? [melhor dizer desencarnado, ou melhor ainda, “projetado”]... 'Alguma coisa Ele fez!' – Diriam as crianças. Algum gesto de nobreza tal e de inimaginável humildade deve ter feito para poder perguntar aos fariseus: “Que é mais fácil: dizer a este homem 'perdoados estão os teus pecados', ou dizer 'pega teu leito e anda'?”... Sim. Foi ali, durante os três dias da cruz que tal gesto se fez. O incalculável Amor e a infinita humildade fê-LO criar coragem para descer até o mais fundo e mais imundo da Região dos Mortos, chamada “Hades”, ou 'Abismo', ou “Vale da Sombra da Morte”, ou “Purgatório”, sem medir esforços e sem medir os riscos extremos de tal jornada ao microcosmos lascivo dos demônios (o que novamente não é difícil do ponto de vista do poder requerido, mas da ofensa moral envolvida no gesto, pois ninguém – nem mesmo um anjo de luz – seria bom o suficiente para mergulhar na latrina dos pecados mais imundos e renitentes, de almas que O tinham rejeitado voluntariamente e por opção consciente! É neste sentido que Ele disse ao jovem rico: “Bom só existe um”).

Aqui chegamos ao outro dado teológico ou ao 2o postulado escatológico: “O tempo não existe”. A Teologia atual já está admitindo o consenso entre todas as teologias (sejam católicas ou protestantes) de que “o tempo para Deus não existe”, e que por isso para Ele só há o presente, ou um eterno “agora” diante de Seus olhos. Isto já foi defendido tanto por católicos (Pe. Jonas Abib, Leonardo Boff, Pe. Elílio de Faria Matos Jr. e o próprio papa Bento 16, entre outros), quanto por protestantes e anglicanos, dentre eles C.S. Lewis, W.E. Best, Billy Graham e o próprio Lutero, entre outros.

Ora; se o tempo não existe, e o que há é apenas um eterno presente, então aquele gesto de Jesus, realizado após toda a Via Crucis, é muito mais doloroso e portentoso do que podíamos supor, pois eis que não estaria restrito apenas à época registrada na História humana; pelo contrário, ainda estaria a acontecer HOJE em dia, agora e SEMPRE, até que Ele mesmo decida “fechar o tempo”, por assim dizer. Há alguma indicação bíblica acerca dessa inexistência do tempo para Deus?. Sim. Leia “O Cordeiro foi morto ANTES da fundação do mundo” (Ap 13,8); “Um dia para Deus pode ser mil anos e mil anos um dia” (II Pe 3,8); e “Se alguém pecar HOJE está levando o cristo de novo à cruz (Hb 6,6); etc.. E, além disso tudo, esta última sentença é ratificada, religiosamente, todas as vezes em que o Corpo de Cristo é mastigado em cada hóstia consagrada, no sacrifício incruento da liturgia.

Eis que agora ficou claro o que se chama de “o papel da obra entre a cruz e a ressurreição”: O Amor Infinito de Deus deu-se de tal modo à Missão de resgatar seus filhos amados que levou Jesus a executar algo que até para Ele é um sacrifício “desumano”, a saber (em resumo “otimista”): “nascer pobre; sofrer a vida inteira; passar calado por toda a Via Crucis do ódio satânico implantado nos corações dos carrascos; morrer após chicotadas, cusparadas, coroa de espinhos, lança no peito e pregos enormes; descer aos infernos negros e imundos da região dos mortos, pregar carinhosa e insistentemente ali aos espíritos em prisão, sem ter a mínima certeza de que estava sendo aceito ou mais uma vez rejeitado; subir de volta à Terra ao 3o Dia de nosso tempo e depois de 40 dias ascender aos céus!”...

Se não houve sofrimento em toda a Sua vida terrena porque um Deus não pode sofrer (admitindo isso sem levar em conta a humildade infinita dEle), se Ele jamais provou a morte porque esta simplesmente inexiste, e se a salvação jamais pode significar qualquer coisa (num Juízo que eternamente vê a culpa ou desde a eternidade passada perdoa tudo), então restará entender que fomos criados, e criados livres, por um Milagre ininteligível de seu Infinito Amor, e por este mesmo Amor pode-se vê-LO, se quisermos, a sofrer eternamente na alma a dor de nossa rejeição!... Assim pois, os dois postulados escatológicos que aparentemente derrubavam toda a base de nossa fé, na verdade reconstroem uma visão muito mais pungente do coração de Deus, calando até vozes só ouvidas no Hades e lembrando que nada podemos contra a Verdade que não se volte contra nós (II Coríntios 13,8).

 

 

                                                    Prof. João Valente de Miranda.

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