É a vida...

 

Veja só, disse-me ela, feriado, todos vão viajar e eu sou obrigada a ficar em casa. Minha sogra está com a pressão alta. É um tal de sobe e desce e tenho que cuidar dela. Chatice. Não me conformo com essa situação. Por que ela não vai para a praia com você, pergunto. Dizem que lá a pressão abaixa. Pois é, a dela sobe... Eu sou nova, quero e preciso aproveitar a vida. Sabe, ela está cada vez mais exigente, está muito carente. Vou falar com minha cunhada. Precisamos arrumar alguém para cuidar dela. Estou cansada. Ela já viveu a vida dela, mas eu ainda não vivi a minha. Sempre sobra para mim. Nessas horas minha cunhada some. Quando eu ficar velha, que Deus me livre de ser esse tipo de pessoa que precisa dos outros, que fica sempre atrapalhando todos.

Imagino que ela está a se espelhar e sente medo, aquele medo silencioso que adentra a alma e a faz tremer, que faz confrontar com sentimentos escondidos, sombrios, com o que há de mais negativo, pois quer pensar ser possível colocar sua velhice de lado e seguir em frente sempre jovem. Nem se apercebe que só se torna velho aquele que não morre cedo. E isso tem um preço a pagar. Caro para alguns, barato para outros.

É a vida...

Quando a velhice chegar ela não estará pronta, penso eu. Talvez se torne um ser gemebundo, resmungão, amiga da vitimização. Só o tempo dirá se é possível desviar do caminho a ser percorrido.

Sogra e nora têm origens e histórias de vida muito diferentes, percorreram caminhos diversos. Cada qual viu o mundo através de sua percepção.

Conversamos mais um pouquinho, depois ela foi embora carregando sua amargura e eu fiquei pensando no que ouvi e coloquei-me no lugar das duas. Ambas eu conheço. Cada uma do modo que a mim se apresenta.

Ela, não tão jovem quanto pensa, mas o suficiente para sentir sua vida postergável, como se o seu tempo não fosse suficiente para que ela o vivesse plenamente.

É a vida...

Muitas vezes eu encontrava a sogra, uma senhora dinâmica, sempre muito bem arrumada, trabalhando em prol dos menos favorecidos e perguntava se ela estava bem. Uma dorzinha aqui, outra ali, mas é normal em quem está na casa dos oitenta, não é? Eu vou levando a vida. Essa era sempre a sua resposta. A resposta de uma bem aventurada que aceita continuar o caminho da velhice molecular.

Fiquei um tempo sem vê-la e quando nos encontramos achei-a mais magra. Tudo bem com a senhora? Tudo. Só o joelho dando um pouco de trabalho. Mas eu vou levando  vida. Como pensar que ela estaria agora dando trabalho à sua família? Era difícil para mim imaginá-la em tal situação. Parece que não mais enxergavam suas qualidades. Que eram tantas...

E assim aos poucos a sua exclusão vai acontecendo. Será que ela percebe que não a julgam mais tão útil? Ou velha sábia que é, vai cuidar para que a centelha de vida que tem a ajude a encontrar novos caminhos para viver longe do tédio, despertando o Si – mesmo através de suas realizações, consciente de que o corpo sinaliza a chegada do outono e que mesmo não descuidando da aparência, as mudanças físicas vão aparecendo, interferindo em suas atividades corriqueiras.

Mesmo que os mais próximos se alienem dela, ela nunca vai se alienar da vida.

Passam-se os dias e há dias em que a chuva aparece e o cheiro de terra molhada trás um cadinho de saudade da infância; há dias em que a ventania forte, o bater das portas, o cair das folhas nos fazem perceber a finitude da vida... E nesse passar do tempo eu a encontro novamente. Bem arrumada com sempre, mostrando um pouco mais o tempo que passou. E a senhora como vai?Como sempre, ela responde que tudo está bem, só a pressão que resolveu subir e me faz viver a mercê dos fármacos. Mas fazer o que, não é? Vou levando a vida. Sabe, eu me considero uma pessoa muito feliz, pois tenho uma família maravilhosa, carinhosa, que cuida de mim, não me deixa sozinha. Não tenho filhas, mas tenho noras que são como se filhas fossem. Sem elas não sei o que seria de mim. A pouco tempo até sugeriram que alguém ficasse comigo quando elas, por um motivo ou outro não pudessem e eu aceitei de bom grado. Afinal, elas têm filhos, marido, precisam viver, não é?

Interessante, muitos a vêm a vida de modo tão diverso e sofrem por isso. Tornam-na mais amarga.

Ela não. Sua maneira de ver a vida tornou-a mais fácil de ser vivida. Ela não perdeu sua luz, não perdeu seu perfume de mulher.

 

 

                                                                                                                                                                        
 “Eu vim para que todos tenham vida; que todos tenham vida em abundância”. Jo 10,10

 

Heloisa, fevereiro de 2010

 

 

                                                                                       

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