NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

O direito de propriedade é o mais vasto dos direitos subjetivos concedidos ao homem, na área patrimonial. Embora apresente caráter abrangente, tal direito apresenta várias limitações no que diz respeito ao seu exercício, tanto no interesse coletivo quanto no individual. Há de se destacar, quanto ao interesse individual, as relações de vizinhança.

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As normas que compõem o direito de vizinhança têm como objetivo impedir que haja conflitos de interesses entre proprietários de prédios contíguos. É fundamental que o exercício do direito de propriedade com as relações de vizinhança, sejam conciliados, tendo em vista que o conflito entre confinantes sempre pode se fazer presente.

Há várias diferenças entre as limitações das propriedades contíguas e as servidões. As servidões surgem pela vontade das partes, são direitos reais sobre coisa alheia no interesse do proprietário do prédio dominante e a servidão, com base no  artigo 1227 do CC, só se transmite por atos entre vivos após o seu registro no Cartório de Registro de Imóveis, uma vez que se trata de direito real sobre imóvel. Quantos aos direitos de vizinhança, estes são decorrentes da lei; há uma limitação do domínio, no sentido de que o proprietário de prédios contíguos detém uma série de direitos e deveres; e é dispensável o registro, sendo criados pela mera contiguidade entre os prédios.

Os direitos de vizinhança são obrigações propter rem,ou seja, vinculam os proprietários de prédios vizinhos, os chamados confinantes, acompanhando a coisa. A obrigação que decorre dessa relação de vizinhança é transmitida ao sucessor a título particular. Por se transferir a eventuais novos ocupantes do imóvel, é também denominada obrigação ambulatória.

Vale ressaltar que, existem regras que determinam que o vizinho deve permitir a pratica de certos atos, dessa forma haverá uma invasão na sua área de domínio. Como por exemplo, a sujeição que recai sobre o dono do prédio inferior, obrigado a receber as águas que fluem naturalmente do superior. (Art. 1288, CC) Assim como há normas que obrigam o proprietário à abstenção de determinada prática. Exemplo dessa abstenção é a proibição imposta ao proprietário de fazer mau uso de seu prédio, suscetível de prejudicar a saúde, o sossego ou a segurança do vizinho (Art. 1277, CC).

DO USO ANORMAL DA PROPRIEDADE

O artigo 1277 do Código Civil estabelece que “o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”.  E de acordo com o parágrafo único desse mesmo artigo, as interferências são proibidas considerando-se “a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”. Essas interferências ou atos nocivos recebem tripla classificação: ilegais, abusivos e lesivos.

Os ilegais se relacionam ao ato ilícito, que gera o dano, consoante o artigo 186 do Código Civil. Vale dizer que, ainda que a pessoa prejudicada não se encaixe nos casos previstos no artigo 1277, ele recebe proteção e consequentemente o direito de ser indenizado pelo prejuízo sofrido, de acordo com o artigo 186 e 927 do CC. Um exemplo de ato ilegal e que obriga o causador do dano a ressarcir o prejudicado, é quando o vizinho danifica plantações de seu confinante.

No que diz respeito aos atos abusivos, pode-se dizer que são aqueles que causam incômodo ao vizinho, ainda que o seu causador se mantenha nos limites da sua propriedade, muitas vezes manifestada na forma de barulho excessivo, por exemplo. Os atos praticados com a clara intenção de prejudicar o confinante e os praticados pelo vizinho de forma irregular e em desconformidade com o interesse social, também são considerados atos abusivos. Nas palavras de Orlando Gomes “o conceito de uso nocivo da propriedade determina-se relativamente, mas não se condiciona à intenção do ato praticado pelo proprietário. O propósito de prejudicar, ou incomodar, pode não existir e haver mau uso da propriedade”. Ou seja, o critério é objetivo, não cabendo, portanto, que o vizinho alegue erro ou ignorância. O fato em si já enseja à verificação do direito subjetivo de vizinhança, implicando, consequentemente, na cessação da interferência.

Já os atos lesivos são aqueles em que o agente não faz uso anormal da sua propriedade, mas têm como consequência danos ao vizinho. Um exemplo clássico desse tipo de ato é a atividade industrial, que embora seja lícita e regular, provoca poluição ao meio ambiente, causando obviamente danos às propriedades vizinhas. Estas têm proteção legal em virtude de uso regular de direito, conforme artigo 1279 do CC.

Pode-se concluir, portanto, que os atos ilegais e os abusivos são decorrentes do uso anormal da propriedade, uma vez que ultrapassam os limites toleráveis da propriedade e desvirtuam-se de sua finalidade econômica ou social, a boa-fé e os bons costumes.

 Para medir se o uso de um imóvel é normal ou anormal, é necessário analisar alguns quesitos. Um deles é verificar a extensão do dano ou do incômodo causado, uma vez que não se pode afastar aquilo que se contém no limite do tolerável. Hely Lopes Meirelles diz que “o que a lei confere ao vizinho é o poder de impedir que os outros o incomodem em excesso, como ruídos intoleráveis, que perturbem o sossego natural do lar, do escritório, da escola, do hospital, na medida da quietude exigível para cada um destes ambientes”.

Outro quesito a ser observado é o exame da zona onde o conflito ocorre, bem como os usos e costumes locais. Nesse sentido, não se pode analisar o uso da propriedade em um bairro residencial e um industrial com os mesmos critérios. Cada um possui um padrão de normalidade diferente. Deve-se observar a natureza da utilização bem como a localização do prédio, conforme estabelece o parágrafo único do artigo 1277 do CC. Exemplo disso são as residências de zona mista, que devem suportar os ruídos da indústria e comercio, nos horários normais das atividades, desde que esses ruídos estejam no limite razoável da tolerância e não estenda aos dias e horas reservadas ao repouso humano.

Por fim, há de se considerar a anterioridade da posse. Existe a teoria da pré-ocupação segundo a qual, o morador que se afixa primeiramente na região estabelece certos padrões sociais de habitação, sendo estes investigados com o escopo de aferir a normalidade da atuação do vizinho que se estabelece posteriormente. Essa teoria não é absoluta, portanto, não deve ser aceita em qualquer situação. Se o barulho for excessivo ou se há uma proibição legal quanto ao incômodo, o proprietário não pode valer-se dessa teoria e prosseguir prejudicando o vizinho.

O artigo 1277 do CC tem como bens tutelados, a segurança, o sossego e a saúde, abrangendo-se as situações que possam ofender a segurança pessoal, como a exploração de indústrias de explosivos e inflamáveis; o sossego, com ruídos exagerados em geral; e a saúde, com emanações de gases tóxicos, entre outros.

DAS SOLUÇÕES PARA COMPOSIÇÕES DE CONFLITOS

Grande parte da doutrina e jurisprudência propõe soluções para que haja composição dos conflitos relacionados à vizinhança. O vocábulo “vizinhança” não está restrito a propriedade confinante, possuindo-se, neste caso, um significado mais amplo do que o comumente utilizado. Qualquer ato praticado em um prédio que possa se propagar nocivamente, atingindo não só os confinantes, mas outros prédios localizados nas proximidades estão incluídos nesta denominação.

Podem-se considerar como soluções para esses conflitos sugeridas pela doutrina, em resumo, as seguintes: se o incômodo é normal, tolerável, não há necessidade que seja reprimido, considerando-se apenas as reclamações relativas a danos considerados insuportáveis ao homem normal.

Por outro lado, se o dano for considerado intolerável, o juiz deve, primeiramente, determinar que seja reduzido a proporções normais, por exemplo no caso do funcionamento de atividade considerada nociva em que o juiz pode determinar os horários de funcionamento ou a colocação de aparelhos de controle de poluição, entre outros.

O artigo 1279 do Código Civil afirma que: “Ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis”.

Se não for possível reduzir o incômodo a níveis suportáveis, determinará o juiz a cessação da atividade. Essa medida é prevista nos casos em que o incômodo não se reduz a níveis suportáveis, ainda que aplicada as medidas adequadas com este intuito, ou quando a determinação judicial não é cumprida, o juiz poderá assim determinar o fechamento do estabelecimento, a cessação de suas atividades ou até mesmo demolição da obra, se for de interesse particular.

Não será determinada a paralisação da atividade ou sua cessação se aquele que for o causador do incômodo for indústria ou qualquer atividade de interesse social. Nas hipóteses em que os graus de tolerabilidade não puderem ser reduzidos, o causador do dano terá obrigação de indenizar o seu confinante, conforme previsto no artigo 1278 do CC, que estabelece que: “o direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as interferências forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal.”

Neste caso, percebe-se que há um conflito de interesses entre o particular e o publico, sendo que ambos são protegidos pela legislação. No entanto, o interesse público prevalece em detrimento do privado, sem que seja o proprietário sujeitado ao dano, assegurando-lhe a lei que o vizinho receba indenização do causador das interferências.

Para tutela dos direitos mencionados, é assegurada ao prejudicado uma ação apropriada, determinada ação cominatória, na qual se impõe ao réu a obrigação de se abster das práticas dos atos prejudiciais ao vizinho, ou que pratique medidas adequadas que visem reduzir o incômodo, sob pena de pagamento de multa diária, com base nos artigos 287, 461, § 4º, 644 do CPC. Os legitimados para compor o polo ativo desse tipo de ação são o proprietário, compromissário comprador, titular de direito real ou o possuidor. Ressalte-se que havendo dano consumado, é cabível ainda ação de ressarcimento de danos.

O Código Civil assegura ainda, em seu artigo 1280 que “o proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição ou a reparação deste, quando ameace ruína, bem como que lhe preste caução pelo dano iminente.” O vizinho ameaçado pode simplesmente forçar a reparação, exigindo que a outra parte preste em juízo caução pelo dano iminente (CPC, arts. 826 a 838), uma vez que a ameaça de desabamento de prédio em ruína constitui negligencia por parte do proprietário. Nesta situação, o prejudicado pode escolher entre a “caução do dano infecto” acima referida ou mover ação cominatória contra o proprietário negligente com pedido de ação demolitória, ou de reparação do prédio em ruínas.

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