DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES

               A MULHER E O ESTUPRO

                                                                                                                               Mittyz Rodrigues**

 

SUMÁRIO: Introdução 1. Dos Crimes Contra os Costumes. 1.1 Dos Crimes contra a Liberdade Sexual; 2. Estupro; 3. Mulher – Sujeito Passivo X Sujeito Ativo; Conclusão; Referência bibliográfica.

 

 

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar dentre os crimes que envolvem a violência de gênero o estupro, mais detidamente no que diz respeito à divergência doutrinária existente na consideração técnica da mulher enquanto sujeito ativo do delito.

Palavras-chave: Crimes contra os Costumes. Crimes contra a Liberdade Sexual. Estupro.

 

ABSTRACT

This work has for objective to analyze amongst the crimes that involve the sort violence the rape, more detidamente in what says respect to the existing doctrinal divergence in the consideration technique of the woman while subject asset of the delict.

Word-key: Crimes against the Customs. Crimes against the Sexual Freedom. Rape.

 

INTRODUÇÃO

Em pleno século XXI testemunhamos verdadeiras injustiças e discriminações preconceituosas em diversos campos no âmbito do convívio social. O que não é diferente, chegando a ser, por vezes, mais evidente na esfera do Direito Penal, que deve por princípio dentro do sistema judiciário, servir de instrumento para a prevenção de bem penalmente protegido e a devida punição quando de sua violação.

De acordo o disposto no DL - 2.848/90[1], nosso Código Penal versa no título “DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES” dos mesmos crimes que eram tratados sob a rubrica “Dos Crimes Contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Público ao Pudor”. Dividido em seis capítulos[2] nos ateremos ao primeiro intitulado por “DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL”, mais especificamente ao tipificado no art. 213 – Estupro.

Originariamente o crime em questão diz respeito à violência contra a liberdade sexual da mulher que se consuma com a conjunção carnal[3], a elementar do tipo. Neste breve estudo abordaremos o tema sob a ótica de renomados doutrinadores jurídicos realizando breve análise do papel da mulher enquanto vítima e também agente do crime de estupro.

1. DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES

Segundo Hungria o vocábulo “costumes”, em sentido restritivo, diz respeito aos hábitos da vida sexual adaptado à conveniência e disciplina social, ao que chama de mínimo ético ligado ao comportamento sexual.

Alguns doutrinadores como Greco acreditam que o legislador perdeu a oportunidade de alterar o Título VI do Código Penal – Dos Crimes Contra os Costumes, por meio da Lei 11.106/05, a fim de possibilitar ao intérprete a identificação do bem juridicamente protegido, pois as infrações penais constantes nas seções e capítulos visam proteger costumes que não estão necessariamente ligados ao da interpretação dada por Hungria, mas à liberdade do próprio corpo, reportando-nos à dignidade da pessoa humana, sem contudo deixar de considerar os costumes.

Neste sentido esclarece Nucci com relação à evolução social e os costumes :

“O que o legislador deve policiar, à luz da Constituição Federal de 1988, é a dignidade da pessoa humana, e não os hábitos sexuais que porventura os membros da sociedade resolvam adotar, livremente, sem qualquer constrangimento e sem ofender direito alheio, ainda que, para alguns, sejam imorais ou inadequados.”[4]

1.2 DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL

Os crimes sexuais eram reprimidos com rigor pelos povos antigos, de acordo com os ensinamentos de Regis Prado, onde havia punições de lapidações, que consistia em apedrejar o condenado até a morte e, previsões quanto ao uso de violência física a fim de manter relação sexual mulher virgem.

O letrado mestre e pós-doutor em Direito Penal nos instrui que o termo vindo do Direito romano stuprum era: “em sentido lato, qualquer ato praticado com homem ou mulher, englobando até mesmo o adultério e a pederastia. Em sentido estrito, alcançava apenas o coito com mulher virgem o ou não casada, mas honesta[5]. (grifo nosso)[6]

O Código Criminal do Império de 1830 qualificava como estupro diversos delitos sexuais e estabelecia pena de prisão e pagamento de dote. Já em 1890 o Código Penal definiu como estupro a cópula violenta, com penas distintas para a mulher honesta, sendo ela virgem ou não, e para a prostituta.

2. ESTUPRO

Art. 213 do Código Penal -  “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.”[7]

De acordo com o art. 1º, inc. V da Lei 8.072/90[8], o crime de estupro, não importando sua modalidade, passou a ser considerado crime hediondo, sendo assim de acordo com o art. 2º da referida lei insuscetível de anistia, graça ou indulto, bem como de fiança[9].

Segundo Greco alguns Tribunais Superiores entendiam que o estupro simples não se enquadrava no rol das infrações penais tidas como crime hediondo. Hoje, após adoção de nova postura por parte do STJ e STF, prevalece o entendimento de que qualquer modalidade de estupro implica o reconhecimento de crime hediondo, já que a natureza hedionda da infração diz respeito ao emprego da violência presumida, conforme dispõe o art. 224 do CP[10].

3. MULHER – SUJEITO PASSIVO X SUJEITO ATIVO

Verifica-se com a interpretação do diploma repressivo que somente a mulher, independente de idade e ou conduta social, pode ser sujeito passivo do delito em estudo, por conseguinte e em função da necessidade de ter de haver a conjunção carnal o sujeito ativo só pode ser o homem, conforme afirma Hungria – “Em matéria de estupro, somente o homem pode ser executor, do mesmo modo que só a mulher pode ser paciente”.[11]

A doutrina especializada nos adverte da impossibilidade de existência do estupro em uma relação homossexual feminina por qualquer meio que venha a ser utilizado para efeito de penetração na vagina da mulher, onde apenas restará configurado o crime de atentado violento ao pudor. Bem como no caso de a mulher constranger o homem a com ela manter conjunção carnal onde o delito aí configurado é o de constrangimento ilegal, posto que se tem descartado o atentado violento ao pudor, por este ser descrito como prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal.

Entretanto, há divergência doutrinária no que diz respeito à definição  técnica da atuação da mulher quando esta figurar como sujeito ativo do crime em questão, uma vez que para tanto basta à mesma exercer coação moral de forma irresistível sobre um homem a fim de obrigá-lo a violentar outra mulher, pois em observância ao verbo do tipo – constranger – entende-se por sujeito ativo qualquer pessoa, somado ao fato de o art. 213 não mencionar que a pessoa que realiza o constrangimento precisa ser a mesma a manter a relação sexual.

No entendimento de Régis Prado a mulher pode ser sujeito ativo via autoria mediata:

“Excepcionalmente, na hipótese de o sujeito ativo da cópula carnal sofrer coação irresistível por parte de outra mulher para a realização do ato, pode-se afirmar que o sujeito ativo do delito é uma pessoa do sexo feminino, já que, nos termos do art. 22 do Código Penal, somente o coator responde pela prática do crime”.[12]

De outro lado encontramos outros igualmente notáveis doutrinadores, Rogério Greco e Zaffaroni, com outra linha de raciocínio que também consideram o disposto no art. 22 do CP – “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestadamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.[13]

Para estes é preciso realizar a análise técnica considerando a classificação doutrinária do tipo penal.

Greco cita Nilo Batista para dizer que os crimes de mão-própria rejeitam co-autoria e autoria mediata, já que o injusto mora na pessoal e indeclinável concretização do ilícito penal.

Ora, se é considerado um crime de mão própria, como de fato é, em relação aos dois sujeitos – ativo e passivo, no que tange ao sujeito ativo, o que nos interessa analisar, por exigência de atuação personalíssima do agente, sem que possa haver por parte deste, delegação da prática da conduta tipificada, não cabe aqui a interpretação da mulher enquanto sujeito ativo, ainda que por meio de coação moral irresistível, onde reside o reconhecimento da autoria mediata.

Conforme definição do douto Damásio de Jesus a autoria mediata:

“Ocorre quando o autor se serve de uma pessoa sem condições de avaliar o que está fazendo para, em seu lugar, praticar o crime. O autor utiliza uma pessoa como se fosse uma arma, um instrumento para praticar o crime (p. ex.: um louco ou uma criança). A pessoa é um simples instrumento da atuação do autor mediato”.[14]

Somos pelo juízo de Greco que entende restar excluída a titulação de autora para a mulher quando da coação de um homem a manter com outra mulher conjunção carnal, considerando-a, coatora, autora de determinação, baseado no entendimento de Zaffaroni de que “a mulher não é punida como autora de estupro, senão que se lhe aplica a pena de estupro por haver cometido o delito de determinar o estupro”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, pode-se observar uma linha tênue na diferença meramente classificatória dentre os doutrinadores no papel da mulher enquanto sujeito ativo do crime de estupro. Delito este que algumas mulheres praticam contra seu próprio gênero, o que chega a ecoar de forma paradoxal já que por muito tempo a mulher sofreu materialmente apesar da existência da proteção legal, porém  puramente formal e muito lutou pra ver seu direito respeitado, garantido.

Uma vez que todos apontam a possibilidade de ela ser penalmente responsabilizada pelo delito enquanto sujeito ativo, vemos uma tentativa da redução da violência de gênero, a violência física, sexual e psicológica praticada contra a mulher.

BIBLIOGRAFIA

BÁSICA

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. vol. III. 5ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

 

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 3: parte especial, arts. 184 a 288. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

 

COMPLEMENTAR

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

 

CÓDIGO PENAL. In Códigos: Penal, Processo Penal e Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v.2

 

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1956.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

 

*  Artigo apresentado ao curso de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco para obtenção de 2ª nota da disciplina Direito Penal Especial II.

** Aluna do 4º período do Curso de Direito noturno na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

 

[1] Nº 69 da Exposição de Motivos da Parte Especial do CP. (Código Penal. In Códigos: Penal, Processo Penal e Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007).

[2]  “Cap. I – Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual; Cap. II – Da Sedução e da Corrupção de Menores; Cap. III – Do Rapto; Cap. IV – Disposições Gerais (qualificadoras,  presunção de violência, ação penal, aumento da pena); Cap. V – Do Lenocínio e do Trafico de Pessoas e Cap. VI – Do Ultraje Público ao Pudor”. Art. 213 – 234. Op. Cit. 1.

[3]  “... a efetiva penetração do pênis do homem na vagina da mulher, não importando se total ou parcialmente, não havendo inclusive, necessidade de ejaculação.”. (Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, vol. III. 5ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 468).

[4]  Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 641.

[5]  Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 3: parte especial, arts. 184 a 288. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 253.

[6]  Não podemos deixar de evidenciar com nosso grifo, uma relação com o que Alessandro Baratta observa com brilhantismo como a ponta do iceberg do sistema capitalista burguês que tem por pano de fundo a manutenção do status quo pela classe dominante, usando de discriminações, de seletividade. Neste sentido há que se considerar a dupla violência sofrida pela mulher vítima de estupro quando da necessidade de comprovação da agressão por ela sofrida, tendo em vista que, na maioria das vezes, há “uma certa” desconfiança, por parte das pessoas que deverão apurar os fatos,  quanto a veracidade ou não do que é narrado pela vítima, principalmente, porque via de regra, nesses casos, não existem testemunhas, mas sim dificuldades em comprovar a materialidade do crime, especialmente quando este tem como sujeito ativo pessoa conhecida, o que não é raro. Então, o que para a mulher deveria ser um meio para buscar a justiça, reveste-se em tormento e por vezes em humilhação, principalmente quando aquela não se enquadra no estereótipo de “mulher honesta”, como o que ocorre com as prostitutas, apesar de também poderem figurar nessa condição.

[7]  Código Penal. In Códigos: Penal, Processo Penal e Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007

[8]  Ibidem.

[9]  A liberdade provisória prevista no inc. II deste artigo foi excluída do diploma legal pela Lei 11.464, de 28 de março de 2007, sendo possível sua concessão nos termos do art. 310 e parágrafo único do Código de Processo Penal. (Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, vol. III. 5ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 489).

[10]  Art. 224 - Presunção de Violência – “Presume-se a violência, se a vítima: a. não é maior de 14 (catorze) anos; b. é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c. não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.”(Código Penal. In Códigos: Penal, Processo Penal e Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007).

[11] Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 124

 

[12]  Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 3: parte especial, arts. 184 a 288. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 195.

[13]  Código Penal. In Códigos: Penal, Processo Penal e Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007

[14]  JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v.2,  p. 111