Aviso prévio: se você for católico, poderá se sentir ofendido com este artigo. Sua abordagem crítica e epistemológica das questões da Igreja Católica medieval, contudo, não é a única interpretação aceitável para o episódio que descrevo.

Às vezes, jovens escritores têm seus momentos de William Irwin, autor de livros abordando o universo filosófico presente em filmes e seriados, e fazem comentários epistemológicos sobre seu(s) filme(s), seriado(s) e/ou desenho(s) favorito(s), e agora chegou minha vez. Achei de enorme pertinência comentar um episódio do desenho As Aventuras de Jackie Chan, onde ele tem uma sobrinha chamada Jade e um tio "sem nome" e luta junto a eles contra inimigos como a gang Mão Negra e o dragão Shendu. O episódio em questão é o 25: "O mundo dos demônios, parte 1", em que identifiquei muitos pontos que, numa interpretação filosófica mais sagaz, podem ser notados como inteligentes críticas subliminares à realidade da Idade Média européia, dominada pela ignorância capitaneada pela Igreja Católica e suas implacáveis normas sociais proibitivas, exacerbações de poder político e perseguições de adversários. Seriam tratáveis como apenas meras coincidências as semelhanças entre o mundo governado por Shendu e seus irmãos demônios e a Europa dominada por aquela Igreja que obliterou as religiões concorrentes de seus domínios? Ou o episódio é sim uma poderosa incitação ao pensamento crítico para os adolescentes que se lembraram das aulas de História Medieval? Minha defesa é que é relevante que levemos a sério todas as críticas implícitas do episódio, em cada detalhe.

Comecemos vendo a versão cartum de Jackie Chan, possuído por Shendu, na câmara do Livro das Eras. Felizmente Jade estava lá e arrancou um pedaço daquela página que o dragão-demônio adulterou. Uma interpretação meio forçada pode estabelecer uma relação metafórica interessante: a possessão de Jackie poderia representar o exercício ideal da vontade de sacerdotes cristãos, ao melhor estilo de "Ah se eu conseguisse calar e submeter à 'minha' religião aqueles sujeitos que tanto incomodam nossa dominação..."; a adulteração do Livro das Eras, por sua vez, seria a manifestação dos desejos de padres e pastores mal-intencionados de que a ciência, o livre-pensamento e o laicismo jamais tivessem sido liberados – assim seria bem mais fácil fazer daquele povo seus cordeirinhos e prosperar em cima de seus dízimos e obediência. Já Jade rasgando a página adulterada do livrão representaria o aproveitamento daquele vão seguro por parte de gente disposta a derrubar a tirania religiosa, como os corajosos pagãos das Idades Média e Moderna que, realizando secretamente seus cultos nos porões de suas casas, conseguiram até o último momento levar adiante um pouco de sua herança religiosa até o advento dos reconstrucionistas neopagãos do pós-Iluminismo, os reformistas religiosos do século 16, os iluministas do século 18 e os "neo-ateus" da atualidade que visam enfraquecer o ainda estupendo poder das religiões dominantes. Vão que, aliás, sempre existe em regimes opressores, por mais cruéis e vigilantes que sejam.

Jade conseguiu, com esse "vão de segurança", preservar a esperança e as chances de reaver o mundo como conhecemos, mas o mundo não deixou de sucumbir à alternativamente perpétua Idade das Trevas, entrou em vigor um contexto histórico alternativo em que os antigos Imortais não haviam aprisionado os oito demônios nos portais interdimensionais. Seu estado de quase-visitante daquele por ela denominado Mundo dos Demônios nos lembra muito aqueles pensamentos do tipo "e se aquilo não tivesse acontecido, como o mundo estaria hoje?", em que o pensador se imagina visitando um mundo alternativo condicionado pelo seguimento global do outro lado da bifurcação do fato histórico decisivo. E assim Jade agiu, como uma deslocada no Mundo dos Demônios. Como uma subversiva aos olhos de Shendu.

E é esse que nos chama a atenção: um mundo dominado pelo obscurantismo, pela ignorância, pela escravidão, pelas inúmeras proibições. Onde a ciência e a tecnologia, tão incipientes, são impedidas de sair do estágio da engatinhação. Semelhanças com aqueles mil anos de uma Europa que tão pouco produziu em termos de ciência (a tecnologia ficou em situação menos delicada, mas pouco houve de realmente revolucionário) são ou não mera coincidência, dependendo da intenção dos produtores do desenho. Para se ter uma idéia da estagnação da ciência e da filosofia secular naquele continente – incluindo o Império Bizantino, cujo legado cultural atemporal não foi muito além do Corpus Juris Civilis –, entre os séculos V e XV não houve nenhuma descoberta que merecesse figurar entre as 140 mais importantes de todos os tempos (vide Kendall Haven e seu livro "As 100 maiores descobertas científicas de todos os tempos"). Sobre a ciência e filosofia no Império Bizantino, diz o historiador Edward Gibbon, citado por Carl Sagan, que "num período de dez séculos, nem uma única descoberta foi feita para exaltar a dignidade ou promover a felicidade da humanidade. Nem uma única idéia foi acrescentada aos sistemas especulativos da Antiguidade". Os poucos cientistas europeus, submissos (ou reféns) ao dogmatismo católico, tinham que lidar com especulações da época da Grécia Antiga, como o geocentrismo e a gravitação que priorizava objetos mais pesados. Ou seja, séculos de estagnação científica, sem quase nenhum avanço. Essa situação foi desenhada no Mundo dos Demônios. Perguntamos nesse momento: e se alguma Jade tivesse rasgado a página do Livro das Eras que a Igreja Católica escreveu quando dominou a Europa? E se alguém publicasse pelo continente descobertas científicas revolucionárias que a Igreja não conseguisse censurar, como a existência de galáxias, vida extraterrestre, evolução e micróbios patológicos? Provavelmente estaríamos alguns séculos à frente em termos de ciência e tecnologia.

E essa questão me passou pela cabeça quando daquela parte em que a menina mostra o relógio do Alce, e um Jackie Chan sem memórias do mundo original se assustou com aquilo que para ele parecia um instrumento de magia. Eis que ela deu uma fala que me foi especial: "não é magia, é tecnologia!" Assim deve ter dito Galileu Galilei quando altos-clérigos se recusaram a olhar as luas de Júpiter no seu telescópio e afirmaram que o equipamento era um aparato de magia que continha os satélites pintados dentro dele. Vários outros inventos provavelmente foram tratados com a mesma leviandade.

As regras absurdas também se fazem marcantes nas regras dos demônios reinantes: o povo devia ajoelhar-se em respeito a Shendu quando sua comitiva passava pelas ruas; magia era proibida; nem mesmo ler era permitido; a escravidão era inquestionável; o tratamento de opositores era implacável. Pensei logo na proibição quase total de outras religiões no continente europeu, na punição da "bruxaria", na escravidão mental e espiritual dos fiéis católicos, enfim, no combate sistemático a quaisquer traços de oposição, algo em voga desde a caça aos arianos, gnósticos, nestorianos, etc. nos primeiros séculos da ICAR como instituição consolidada. Mais à frente na trama, o Tio dá uma leitura rápida num livro de magias e conhece o poder de afugentar ninjas Shadow Khan, e isso se mostra como uma lição de como o conhecimento, ainda que em pouca quantidade, se torna um instrumento de iluminação que dissipa e afugenta o mal. Era algo assim que Shendu e seus irmãos visavam impedir com as proibições, igual a como agiu a Igreja Católica.

E, de instituição governante para outra, assim eram os oito demônios. Os domínios de cada um, na concepção anticlerical, podem ser comparados aos bispados. Neles, como já foi dito aqui, o controle das pessoas à mão de ferro e o combate sistemático a possíveis oposições prevalece. Sendo que há uma diferença fundamental: no desenho, os demônios reinantes são ao mesmo tempo os senhores políticos e as entidades espirituais dominantes enquanto no mundo católico medieval essas atribuições eram divididas entre reis, nobres, clérigos e, por que não, o Deus cristão. Incapaz de manifestar poderes simplesmente por ser alguém apenas imaginário, os clérigos e inquisidores respondiam por ele, infligindo punições não muito menos dolorosas que os castigos bíblicos do Velho Testamento, tais como constam no Malleus Maleficarum, o diabólico "manual de caça a bruxas".

De domínio em domínio, encontramos mais uma representação de crítica implícita no episódio: um Jackie Chan dizendo "A minha alegria é servi-lo, mestre!" serve como uma ótima alegoria para uma questão bem atual: aqueles que, em grande parte das vezes por lavagem cerebral – e Jackie foi de fato lavado no episódio –, abdicam de uma vida de notoriedade secular e obras admiradas pelas massas e caem de quatro perante uma orientação religiosa de confiabilidade no mínimo muito duvidosa. Não sei se muitos pensaram como eu, mas pensei em gente como Chuck Norris, hoje um cristão muito bitolado e ultradireitista, de fazer fãs seus de longa data e até cristãos de crença sóbria sentirem pena dele, e Rodolfo Abrantes, ex-vocalista das bandas Raimundos e Rodox que derrubou toda a sua glória musical secular passada e é atualmente servo inflexível de uma igreja evangélica. Assim, fazendo-se metáfora de casos como esses, foi caracterizado o Jackie cartunado no Mundo dos Demônios: um outrora herói convertido em ovelhinha de "pessoas" muito poderosas e mal-encaradas.

Retomando a questão da ignorância mundial, é um exercício estimulante pensar em como seria hoje um mundo inteiramente dominado por uma religião extremamente opressora e sofrendo carência de avanços científicos. Penso que os avanços seriam tão lentos como eram na Antiguidade: séculos de espera para o desenvolvimento de eventos importantes, em vez da nossa cronologia de eventos históricos e tecnocientíficos cada vez mais compressa, e ainda hoje muitas moléstias tratadas pela medicina seriam vistas como obras demoníacas. Espaço? Só vendo o céu a olho nu mesmo, porque telescópios "mágicos" nem pensar. Energia elétrica? Não, afaste esse poder demoníaco de nós!

Felizmente tanto Jade quanto a classe científica triunfaram na vitória sobre a dominação absoluta vinda dos "demônios": no final, Copérnico, Galileu, Pasteur, Darwin, Kant, etc., a muito custo e esforço e muitas vezes apenas postumamente, derrotaram as sombras opressoras que estagnavam e limitavam a ciência e permitiram que os valores científicos e filosóficos alçassem um vôo incessante em trajetória de desenvolvimento exponencial. Alguns lugares do mundo, entretanto, ainda são verdadeiros "mundos dos demônios", como partes do mundo islâmico que outrora efervesciam cultural e cientificamente mas hoje são rincões de atraso e totalitarismo. Terminando a abordagem metafórica do episódio, vale lembrar a parte em que Jackie reconhece que "demônios governando o mundo não é uma coisa boa". Essa parte nos catapulta a uma perspectiva de esperança: algum dia as pessoas perceberão que religiões controlando suas mentes e sociedades, obstruindo avanços científicos e filosóficos e barrando a liberdade de expressão, consciência e crença definitivamente não é nada aceitável.

O episódio "O mundo dos demônios, parte 1", intencionalmente ou não, foi uma inteligente jogada filosófica que, como já falei, convida os adolescentes a pensar nos males de uma sociedade ou mundo dominado por entidades totalitárias como uma Igreja ou um regime do tipo do livro 1984. Trouxe uma sagaz lição de que o mundo real também tem seus "demônios" que devem ser combatidos e nunca obedecidos e seu passado de "mundo dos demônios" contra o qual todos devem se unir para que nunca mais se repita.